quarta-feira, 26 de setembro de 2018

SOB A ASA NEGRA DO INFORTÚNIO


Fundadores da APL. Da esquerda para a direita, de pé: Jônatas Batista, Celso Pinheiro, Lucídio Freitas, Antônio Chaves, Benedito Aurélio de Freitas(Baurélio Mangabeira) e Édison Cunha. Sentados, e na mesma ordem: Fenelon Castelo Branco, Clodoaldo Freitas, Higino Cunha e João Pinheiro




SOB A ASA NEGRA DO INFORTÚNIO

Chico Acoram Araújo*

Na imensidão da selva amazônica um barco, rumo a Manaus, deslizava sobre as águas do imponente rio Purus. Um passageiro, deitado em sua rede, agonizava. O pobre coitado delirava por conta de altíssimas febres que contraíra na pequena e doentia cidade de Lábrea(AM), situada à margem direita do rio já citado e da foz do insalubre rio Ituxi. Naquela cidade, este exânime exercia o cargo de um modesto inspetor escolar. Por ser um rio muito sinuoso e com intermináveis voltas e contravoltas, serpenteante durante todo seu percurso, a viagem daquela cidade até Manaus demorava cerca de semana ou mais. O moribundo chamava-se Clodoaldo Severo Conrado de Freitas, conhecido no meio intelectual de Teresina apenas como Clodoaldo Freitas, nascido em Oeiras, antiga capital do Piauí, no dia 7 de setembro de 1855. Era neto de português e filho legítimo de Belizário da Silva Conrado, heroico voluntário na guerra do Paraguai, e de d. Antônia Dias de Freitas, dedicada mãe e muito religiosa.

Segundo Higino Cunha (em discurso proferido no Paço da Câmara Legislativa, onde em 29 de julho de 1924 a Academia Piauiense de Letras realizou uma sessão magna em homenagem à memória de Clodoaldo Freitas, falecido no dia 29 do mês anterior em sua residência), Clodoaldo viajava naquela embarcação entre a vida e a morte. E dado ao seu estado febril e de medonho delírio, alguns passageiros apiedados cercavam a rede daquele infeliz homem.

O ilustre orador disse ainda que Clodoaldo, depois de uma longa e penosíssima viagem, mais morto do que vivo, chegara finalmente a Teresina. Depois disto, viajou para o interior em tratamento. Piorou. Mudou-se para Campo Maior, depois voltou para Teresina, sem melhoras. Sempre doente, decidiu passar uma temporada na fazenda de um amigo, coronel Jeremias Pereira da Silva, no município de Valença, onde permaneceu por nove meses. Ali, Clodoaldo Freitas melhorou consideravelmente a sua saúde. Higino acrescenta que foi nesse lugar onde Clodoaldo teve o maior desgosto político de sua vida ao receber inusitada notícia da extinção do partido Democrata que tanto defendera, prestando “por longos anos, dia a dia, através de amarguras e de tantos sacrifícios, os mais abnegados serviços.

No início do mencionado discurso, Higino Cunha fala que, em 1871, o jovem Clodoaldo Freitas segue para São Luís do Maranhão, em companhia do seu parente Aristides Mendes de Carvalho, para cursar o Seminário das Mercês. Nessa instituição Clodoaldo estudou por três anos, onde escreveu versos, um romance e três dramas que nunca foram publicados. Depois, desistindo da carreira sacerdotal, transferiu-se para o Liceu Maranhense, onde fez alguns preparatórios, já determinado a cursar Direito. Em agosto de 1875, retornou para Teresina. Em fevereiro de 1876, concluiu seus estudos no Liceu Piauiense. Nesse mesmo ano segue para Recife, onde se matriculou na Faculdade de Direito, recebendo o grau de bacharel em Ciências jurídicas e Sociais, em 05 de novembro de 1880. Seus contemporâneos notáveis foram José Maria Martello, Álvaro de Assis Osório Mendes, Jayme Albuquerque Rosa, Miguel José de Britto Bastos, João Alfredo de Freitas, Joaquim Ignácio Amazonas de Almeida, Clóvis Bevilaqua e outros.

Em 21 de janeiro de 1881, Clodoaldo chega a Teresina, em plena situação liberal, estando na presidência da província do Piauí o seu parente Dr. Firmino de Sousa Martins. Por essa época, alguns parentes seus haviam falecidos: Deolindo Mendes da Silva Moura e Constantino Luiz da Silva Moura. Seu muito amigo, David Moreira Caldas, republicano, jornalista e poeta, também havia morrido havia dois anos. Destaca também o orador já citado, que Clodoaldo quando retornou para Teresina já tinha sido nomeado promotor público da Capital por Portaria datada de 11 de dezembro de 1880, iniciando o exercício do cargo em 22 de janeiro de 1881. Depois disto, torna-se juiz municipal de Valença por força do Decreto de 29 de novembro de 1881, só tomando posse do juizado em 16 de março de 1882.

Do supracitado discurso, extrai-se ainda que Clodoaldo Freitas casou-se a 22 de outubro de 1881, com Corina de Noronha Couto, filha de um modesto comerciante de nome Marcelino José Couto. Diz também que Clodoaldo casou-se com Corina por amor, tendo preterido outras duas moças ricas e formosas, por não devotar nenhum sentimento amoroso por elas. O casal teve oito filhos, dentre eles os poetas Lucídio e Alcides Freitas, sendo que apenas o caçula Marcelino Freitas sobreviveu ao pai.

Outro notável acadêmico que discorre sobre a vida e obra de Clodoaldo Freitas foi o teresinense Cristino Castelo Branco (1892 – 1983) - membro da Academia Piauiense de Letras, advogado, desembargador do Tribunal de Justiça do Piauí, escritor e memorialista. Isso aconteceu a 10 de setembro de 1955 na Academia Piauiense de Letras, em discurso proferido em homenagem ao centenário de nascimento de Clodoaldo Freitas.

Dentre outros relevantes fatos narrados nessa belíssima oração, Cristino recorda que Clodoaldo Freitas, mesmo ocupando o cargo de promotor público, após seu retorno para Teresina, não se limitou ao desempenho das funções do cargo. “O espírito público, o patriotismo, a vocação de luta, herdados do pai, impelem-no para a imprensa, para a política, para o jornalismo de combate”.

Complementa o ilustre orador:

"Começa então a sua grande e notável atuação na vida piauiense, a qual se estende, em vários setores, por um largo período, até 29 de junho de 1924, quando falece repentinamente em sua residência, aos sessenta e nove anos de idade, como desembargador, que o fora nos últimos anos de vida, dos mais íntegros e dos mais ilustres que já passaram pelo Tribunal de Justiça do Estado."

No que diz respeito ao jornalismo de combate praticado por Clodoaldo Freitas, Monsenhor Chaves (no seu livro OBRA COMPLETA - capítulo Clodoaldo Severo Conrado de Freitas) assevera que na época o jornalismo era de baixo nível, de linguagem solta ou vulgar, onde as agressões pessoais eram comumente estampadas nas manchetes dos jornais, inclusive noticiando fatos ligados à vida privada dos adversários. Nesse tempo, nem a honra das senhoras escapava daquele jornalismo sujo. 

No seu mencionado livro, Monsenhor Chaves comenta:

"Clodoaldo, no ataque, argumentava, expendia conceitos, mas também revidava com diatribes às que lhe eram assacadas. Ele, tão amigo da verdade, no aceso da luta, deslembra-se dela, se tal lhe parecia necessário ferir o adversário. Então prevalecia o velho princípio de que a quem não tem rabo de palha, prega-se.

Atacando certa feita, o governador Coriolano de Carvalho, escreveu essa enormidade: 'Aqui não tinha família, a não ser dois pretinhos desacreditados que moram em Barras e algumas parentas velhas, tias aposentadas na prostituição'."   

Como se observa nos comentários acima, o jornalismo da época era ferrenho. A luta entre os contendores era implacável. Aos vencidos, o castigo, o desprezo e a intolerância. Não havia perdão.
E foi por isso que Clodoaldo Freitas, muitas vezes derrotado em suas lutas políticas, exilou-se para outros estados, vivendo do pão que o diabo amassou, como foi o caso de sua viagem para o Estado do Amazonas, o refúgio, segundo Higino Cunha, de todos os desprotegidos da fortuna.  É provável que o motivo desse infeliz degredo, em Lábrea, tenha sido em decorrência do entrevero que Clodoaldo teve com o governador Coriolano de Carvalho.

 Historicamente, Clodoaldo era um perdedor nato nas refregas políticas, e, por isso mesmo, teve que morar, várias vezes, em outros estados atrás de recursos financeiros para prover seu próprio sustento e o da família. E esquecer suas desilusões políticas longe da sua terra natal. Assim, andou pelos estados do Amazonas, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso, Pará e Maranhão, exercendo os mais diversos cargos públicos. Tornou-se professor, juiz municipal, juiz de direito, chefe de polícia, jornalista, diretor de imprensa oficial e colaborador de jornal.  Foi também Diretor da Imprensa Oficial em São Luís e colaborador da fundação da Academia Maranhense de Letras. No Pará foi eleito deputado estadual. No entanto, apesar de suas peregrinações pelo Brasil a fora, Clodoaldo amava sua terra natal. Não compreendia, e tampouco sabia viver longe do Piauí. Sua estada em outros estados do Brasil era efêmera; nunca se prolongava por muito tempo. Cristino Castelo Branco lembra que Clodoaldo, de repente, dava na telha de voltar para casa. Abandonava tudo, todos os interesses, todas as posições, todos os cargos, e voltava. Voltava sempre.

Quanto à vida cultural de Clodoaldo Freitas, Monsenhor Chaves afirma que Clodoaldo Freitas foi um importante intelectual da sua época e grande propulsor da vida cultural piauiense ao lado de Higino Cunha e Abdias Neves. A produção literária de Clodoaldo é vastíssima. Sem mencionar as diversas obras inéditas, podemos destacar alguns livros seus: História do Piauí, Vultos piauienses, Memória de um velho, O Piauí – canto sertanejo, Os fatores do coelhado, Em Roda dos fatos, O inferno de Dante, Os últimos dias de Pompeia, Contos a Teresa.

Quanto à República, proclamada em 1889, Clodoaldo teve uma profunda decepção com essa nova forma de governo implantado no Brasil, uma vez que combateu severamente as autoridades monárquicas da época. Sobre isso, Higino Cunha diz que, para Clodoaldo Freitas, a nascente República, “apenas era, no conceito de todos, o amplo horizonte, em que, naturalmente, se teria de espanejar, pois fora ele um republicano histórico e era impossível que os seus serviços fossem esquecidos”.

Em seguida, Clodoaldo interroga:

"Todos acreditavam que, afinal, lhe rompera o dia da separação e da justiça. Quem poderia preteri-lo nesta terra? Quem como ele se batera pela república, sacrificando os proventos de uma carreira fácil no partido?"

Sobre isso, o historiador e emérito professor Fonseca Neto, no livro TERESINA 160 ANOS, diz que Clodoaldo Freitas foi um “infeliz republicano no Piauí - um desenganado”. Clodoaldo acreditava que a República de 1889 traria a renovação e a esperança para o povo do Piauí e do Brasil. Ledo engano! A República tomou rumos diferentes. A oligarquia se fortaleceu, tanto em nível local, regional ou nacionalmente. No interior, os coronéis e as oligarquias tornaram-se fortes mandatários das decisões. Em nível nacional, adota-se uma política oligárquica voltada para atender os interesses do poder central, desconsiderando, portanto, as demais regiões do país. Ou seja, o povo não participava das decisões políticas a nível regional ou local, e tampouco a nível nacional. Daí a grande decepção de Clodoaldo Freitas com a tão sonhada república.

Clodoaldo, apesar das agruras que passou por todo esse tempo, recebeu a maior conquista da sua vida. Foi nomeado desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí por Miguel Rosa no apagar das luzes do seu governo. Essa nomeação foi uma verdadeira fortuna para Clodoaldo, uma vez que isso aconteceu inesperadamente, à última hora, já com mais de sessenta anos de idade.  
“Mas a asa negra do infortúnio acompanhou Clodoaldo Freitas até na última fase da sua vida, quando perdeu o seu extremoso filho, a sua mais fagueira esperança, o talentoso poeta e jurista Lucídio Freitas” - disse Higino Cunha com muito pesar.

O notável poeta e jurista, Lucídio Freitas, faleceu a 14 de maio de 1922, aos 28 anos de idade, em decorrência de uma tuberculose que contraíra anos atrás.  Um outro irmão, Alcides Freitas, médico e poeta, quatro anos mais novo, também faleceu dessa terrível doença, aos 22 anos de idade. Alcides publicou seu famoso e único livro, Alexandrinos (poesias), escrito em parceria com o irmão Lucídio.
No ano anterior, Clodoaldo Freitas vendo o sofrimento do seu querido filho, já vencido pela terrível doença, fez dois sonetos que traduzem os sentimentos de uma insuportável dor que um pai pode passar vendo seu filho, no leito, aguardando a hora da chegada da “indesejada das gentes”. Esses dois belíssimos sonetos foram lidos, com viva emoção, no já mencionado discurso de Cristino Castelo Branco, testemunha ocular da enorme aflição da família dos poetas trágicos. Eis algumas estrofes dos referidos sonetos:
                    
                    Dor de pai

Eu nunca me prostrei ante os altares
Nem jamais invoquei de Deus o nome;
Vendo entretanto o mal que te consome,
Ergo, contrito, ao céu tristes olhares!
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Na agonia mortal dessa certeza,
Contemplo a definhar, cheio de espanto,
Gênio, glória, beleza e mocidade!
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Sofresse o teu sofrer e eu pudesse
Transferir para mim tantos horrores,
Talvez menos horrores padecesse...
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Aqui, abro um parêntese para falar porque decidi escrever sobre Clodoaldo Freitas, um dos maiores intelectuais que o Piauí teve no final do século XIX e primeira quadra do século XX.

 Em 1961, minha família veio de Barras do Marataoan para Teresina, onde fomos morar numa pequena e humilde casa situada na Rua Tiradentes, do lado oeste do Estádio de Futebol Lindolfo Monteiro. Permanecemos ali não por muito tempo. Meu pai alugou outra casa nas imediações também daquele campo de futebol. O novo lar era uma das três casas de uma pequena vila, que ficava no final da rua, já chegando ao rio Parnaíba.  Essa casa tinha o número 46 da Rua Clodoaldo Freitas, conhecida também como Rua Palmeirinha. Em frente à vila tinha uma carnaubeira que presenteava às crianças que moravam na vizinhança, seus deliciosos frutos cor de jambo. Nas madrugadas, a competição pelas frutas era acirrada. Hoje, a vila e a generosa carnaubeira não existem mais; as crianças onde estão?

Na época, ainda muito criança, peguei-me, muitas vezes, matutando, a indagar quem seria Clodoaldo Freitas, nome dado a antiga Rua Palmeirinha. Deve ter sido uma pessoa muito importante, pensava eu. A outra rua em que residimos anteriormente tinha nome de Tiradentes. Esse nome me era bastante familiar, pois já tinha estudado no livro de História do Brasil que se tratava de Joaquim José da Silva Xavier, um herói nacional, o mártir da Independência do Brasil. Nesse didático, não vi o nome de Clodoaldo Freitas. E bem que o seu nome poderia estar lá, uma vez que ele foi um valoroso intelectual piauiense defensor da república no Brasil, ao lado de outros grandes heróis nacionais.

Clodoaldo Freitas foi, nas palavras de Cristino Castelo Branco, “um homem público, republicano histórico, lutou sempre por um regime político diferente daquele em que viveu, um regime sem hipocrisia e sem mentira, além de se tornar uma das figuras mais característica, mais impressionantes, mas representativas da sua terra e da sua gente, do modo de ser, da simplicidade, da pobreza honrada, das lutas políticas, das campanhas de imprensa, das letras e do patriotismo”.

Em 30 de dezembro de 1917, Clodoaldo Freitas, como grande e influente intelectual da época, ao lado do seu filho Lucídio Freitas, Higino Cunha, João Pinheiro, Édison Cunha, Jônatas Batista, Celso Pinheiro, Antônio Chaves, Benedito Aurélio de Freitas e Fenelon Castelo Branco, fundou a nossa gloriosa Academia Piauiense de Letras - APL. Clodoaldo deixou ao filho, Lucídio Freitas, o grande idealizador da Academia, a herança de ser o principal articulador e promotor das primeiras atividades da APL, o que não veio acontecer em razão do agravamento da doença e falecimento do jovem e auspicioso poeta, ocorrido a 14 de maio de 1922.

Clodoaldo Freitas foi o primeiro presidente da APL, ocupando a Cadeira nº 01, que tem como patrono José Manuel de Freitas (Desembargador Freitas). Atualmente a cadeira é ocupada pelo eminente historiador e professor Antônio Fonseca dos Santos Neto (Prof. Fonseca Neto).

(*) Chico Acoram Araújo é Contador, Funcionário Público Federal e cronista.  

Fonte: Blog Folhas Avulsas

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