domingo, 28 de julho de 2019

NATUREZA VIVA

Fonte: Google


NATUREZA VIVA

Elmar Carvalho

Contemplo meu presente de Natal:
dunas, veleiros, coqueiros e um mar
entranhados num frasco de água mineral.
Ah! vontade de me ir pelo ar ...

Resta-me esta ressaca.  Marulhos de Sonrisal ...   

sábado, 27 de julho de 2019

BREVE NOTÍCIA FAMILIAR

Miguel e Rosália, meus pais


BREVE NOTÍCIA FAMILIAR

Elmar Carvalho

Domingo passado, recebi de meu pai breve anotação manuscrita, feita a meu pedido, sobre os nossos avoengos. Ele registrou apenas o que sabia de memória, sem consulta a registros de livros cartorários e outros alfarrábios. Muitas informações contidas nesta nota estão nos livros “Vultos da História de Barras”, de Wilson Carvalho Gonçalves, e em “O Ponta-de Rama” e “Ruas, Avenidas e Praças de Piripiri”, ambos de meu primo Fabiano Melo, de onde as colhi. Meu pai tinha apenas treze anos de idade quando foi chamado ao gabinete do diretor do tradicional Colégio Diocesano, do qual era aluno interno, numa época em que pouquíssimos piauienses conseguiam cursar o antigo ginásio.

Para que se tenha uma pequena ideia de como era restritivo, excludente e elitista o sistema de ensino, basta que eu diga que muitos de seus antigos colegas se tornaram governadores, senadores, deputados, magistrados e detentores dos mais altos cargos públicos do estado. Foi chamado, logo após concluir a prova parcial do dia 30 de setembro de 1939, para receber do diretor Padre Chaves, que depois se tornou um dos maiores historiadores do Piauí, a impactante notícia de que seu pai havia morrido. Era filho único do terceiro casamento de meu avô. Padre Chaves, que conheci e que concedeu a mim e ao jornalista Domingos Bezerra excelente entrevista, que publiquei na revista Cadernos de Teresina, editada pela Fundação Cultural que leva o seu nome, foi afetivo e cuidadoso ao dar a notícia, proferindo palavras de conforto e resignação;   recomendou que meu pai fosse repousar.

Meu avô tivera oito filhos do primeiro consórcio e nenhum do segundo. Diante desse inesperado acontecimento, papai voltou para Barras, a chamado de sua mãe, e só veio a concluir o ginásio muitos anos depois. Meu avô paterno se chamava João de Deus Nascimento; era filho de Emiliana e Silvestre Ribeiro do Nascimento. Graças a seu esforço e labor, fez prosperar uma gleba de terra, situada na data Luiz de Souza, e conseguiu amealhar algumas reses, engenho de cana e casa de farinhada. Era respeitado em sua localidade e na cidade de Barras, onde era muito conhecido. Para que se tenha uma idéia de sua personalidade marcante, basta que eu conte dois episódios de sua vida.

Certo dia, uma de suas noras, deu-lhe a notícia de que o marido estava de namoro com uma mulher da redondeza. Meu avô chamou um agregado de sua confiança e se dirigiu até certo ponto, perto da casa da amante de seu filho, de onde dava para ouvir as gargalhadas e arrulhos dos dois pombinhos nos colóquios e conciliábulos amorosos. Constatada a infidelidade cometida pelo rebento, ficou de tocaia. Quando ele retornava para casa, o abordou de forma enérgica, e lhe disse que se voltasse a “pular a cerca”, iria aplicar-lhe uma sova caprichada, de que ele jamais esqueceria. Não se soube da surra, porque não mais se soube de transgressão do rapaz. Eram os costumes severos da época, de fortes reprimendas.

Morava, na vizinhança, uma parenta de meu avô, creio que sobrinha, cega de nascença e entrevada, como se dizia antigamente. Levava a vida a cantar hinos religiosos e a rezar, em perpétua vigília e penitência. Meu avô, falecido em 1939, pedira para ser enterrado perto de sua cova. Talvez tenha sido recebido por ela, sarada de seus males, coberta pelo manto de glória e beatitude que deve ornar os que levaram uma vida de sofrimento, renúncia e conformação. No cemitério campestre da chapada de Luiz de Souza, perto de faveiras, sambaíbas, paus-d'arcos e pequizeiros, repousam, lado a lado, os restos mortais de meu avô João de Deus e dessa parenta, que aceitou com fé e resignação o sofrimento que lhe coube, e que viveu como um anjo, a orar e a entoar cânticos e “excelências” a Deus.

Meu avô conheceu minha avó na cidade de Barras, onde ela morava em companhia de seu irmão Elpídio Lucas Furtado de Carvalho. Chamava-se Joana Lina de Deus Carvalho e nascera em Piripiri. Era filha de Miguel Furtado do Rego. Era sua mãe Izabel Lina, de antigas estirpes cearense e piauiense.   Muitas décadas após meu pai deixar o seu pago, fui com ele conhecer o local onde ele nascera, que fica a poucos quilômetros da cidade de Barras. Vi meu pai tomado de profunda emoção, com os olhos marejados, a olhar o olho-d'água de sua infância, que ainda corria perene, a rever o buritizal da várzea e o morro verdejante onde se erguera outrora a casa de seu pai.

Meu avô materno se chamava José Horácio de Melo, nascido no lugar Campestre, município de Piracuruca, no dia 5 de agosto de 1893, e falecido em 13 de agosto de 1965. Era filho de Horácio Luiz de Melo e Antônia Quitéria de Carvalho. Horácio Luiz era filho de Antônio Luiz de Melo e Hygina Rosa de Menezes. Meu trisavô Antônio Luiz de Melo era filho de Onofre José de Melo e Cecília Maria das Virgens, oriundos de Pernambuco e fundadores da Casa do Desterro, situada na então Freguesia de Nossa Senhora do Carmo de Piracuruca. Desse casal descendem os Melo do Vale do Longá (Piracuruca, Batalha, Barras, Piripiri e Campo Maior). Antônia Quitéria tinha como pais João Bartolomeu de Carvalho e Mariana Rosa de Carvalho. Eram do município de Piracuruca. Minha avó materna se chamava Maria Carlota, e era chamada de Paroara, dizem que por causa de sua tez alva e rosada como essa flor. Pertencia às famílias Sousa e Mendes, de Piracuruca. Morreu jovem, quando minha mãe tinha apenas onze anos de vida.

Por essa razão, mamãe foi morar com sua tia, irmã de seu pai, Maria Cristina Lima de Melo. Com a morte desta, passou a morar com sua prima Mirozinha, minha madrinha, até casar-se com meu pai. Devo muito a essa madrinha, que me emprestava, através de meu pai, os livros da biblioteca do Grupo Escolar Valdivino Tito e os de seu próprio acervo. Mamãe não guardou traumas e nem mágoas de sua orfandade, e nem de ter morado com esses parentes. Pelo contrário, tinha uma quase veneração por sua tia e por sua prima, e lhes tinha uma devoção de filha e irmã. Quando falava delas, era sempre com saudade e respeito.

Nunca tive paciência para empreender pesquisa histórica e muito menos  genealógica, que acho importante, mas um tanto tediosa, de modo que desejei fazer apenas um breve registro, para que meus descendentes e irmãos conheçam um pouco dos nossos ancestrais. Aliás, meu pai, homem humilde, mas altivo a seu modo e no bom sentido da palavra, sempre foi avesso a empáfias e blasonarias de presumidas e pretensas nobiliarquias genealógicas, sabedor de que todos somos pó e de que ao pó da terra voltaremos. Só me falou, com mais detalhes, de nossos avoengos quando eu já tinha cinquenta anos de idade, por sinal em Piripiri, terra a que somos ligados por laços de sangue, no Auditório Osíris Neves de Melo, quando eu representava várias academias a que pertenço, a convite da professora Clea Rezende Neves de Melo, na solenidade em que foram lançados um livro dela e outro meu, o Lira dos Cinqüentanos.

Meu pai, ainda bem moço, veio para Campo Maior, onde trabalhou na Casa Inglesa. Posteriormente, ingressou no antigo Departamento de Correios e Telégrafos - DCT, através de concurso público, no ano de 1958. No início de sua vida de casado e de servidor público, morou no povoado Papagaio, hoje cidade de Francinópolis, por cerca de dois anos. O DCT virou ECT, e meu pai terminou indo para Parnaíba, onde por vários anos chefiou a agência local dessa empresa. Mas, amante inveterado e incondicional de Campo Maior, terminou regressando mais uma vez a minha terra natal, onde, aposentado, pratica dominó todos os dias com os irmãos Vicente, Antônio Wilson e Chico Andrade. Minha mãe consagrou todo seu esforço e dedicação a cuidar do marido e dos filhos. E como cuidou!...

OBSERVAÇÃO: o vertente registro foi acrescido, posteriormente, por informações contidas no trabalho Casa do Desterro, da autoria do genealogista e historiador Valdemir Miranda de Castro, publicado em 21.08.2015 no blog poetaelmar.blogspot.com.br, que faz parte do seu livro em elaboração A colonização do Vale do Longá.

18 de março de 2010   

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Recebimento de medalha da Medalha do Centenário da APL




Recebimento de medalha da Medalha do Centenário da APL (*)

Organizar um grêmio literário nos moldes existentes em vários outros Estados, foi o propósito abraçado por um grupo de intelectuais da época, sob a liderança de Lucídio Freitas, que se criou a 30 de dezembro de 1917, a  Academia Piauiense de Letras, com o objetivo de desenvolver e apoiar todas as manifestações da cultura piauiense.

O número de cadeiras, inicialmente, era de dez, alcançando, por fim, quarenta como nas demais congêneres. Várias expressões da literatura de nosso Estado ali se imortalizaram, dentre estes o florianense J. Miguel de Matos, nascido, como o próprio gostava de dizer, na rua do Molambo, a nossa rua 7 de Setembro.  Outro que também ali teve assento foi João Coelho Marques, homenageado agora no volume 8 da Coleção Florianenses.

A honraria da Medalha do Centenário da Academia Piauiense de Letras se deve, com certeza, ao trabalho desenvolvido na organização, edição e divulgação da Coleção Florianenses, parte de maior destaque da Fundação Floriano Clube, a que me dedico com todo carinho de filho desta terra.

Quero, aqui, registrar ao poeta Elmar Carvalho, autor da indicação do meu nome, o agradecimento profundo, fazendo-o extensivo ao colegiado da Academia por sua aprovação. Peço-lhe caro poeta, levar meu desejo aos dignos integrantes da Academia Piauiense de Letras que eu possa dividir a honra da Medalha do Centenário com todos os companheiros participantes da Fundação Floriano Clube.   

(*) Discurso pronunciado por Cristóvão Augusto de Araújo Costa, no dia 6 de julho, na sede da Fundação Floriano Clube, por ocasião do lançamento da Coleção Florianenses, quando lhe foram entregues a Medalha e o Diploma do Centenário da Academia Piauiense de Letras.

domingo, 21 de julho de 2019

MULHER NA LAGOA DO PORTINHO

Fonte: Portal Litoral Notícias/Google


MULHER NA LAGOA DO PORTINHO

Elmar Carvalho

Na tarde antiga
de sol e bruma
de luz e penumbra
as dunas mudaram
de cores e formas.

Os belos olhos esplendentes –
pálidas  cálidas opalas ou
esmeradas esmeriladas esmeraldas –
da mulher bonita
de sinuosas dunas e viagens
furta-cores furtaram
outros tons e sobretons.

Ainda guardo a memória viva
daquela tarde morna e morta
e ainda vejo aqueles olhos vivos
furtando furtivos cores e atenção.

E os olhos e as formas curvilíneas
permanecem intactos no tempo
que em mim não passou.

E a mulher, acaso passou,
nos escombros das formas
transitórias da beleza?...   

quinta-feira, 18 de julho de 2019

As lágrimas da vaca




As lágrimas da vaca

Elmar Carvalho

Muitos dizem gostar de passarinhos. Mas os aprisionam numa gaiola. É uma estranha maneira de gostar, sem dúvida. Quem ama não mata nem maltrata. E isso vale para os feminicidas e passarinheiros.

Desde menino minha mãe nos advertia, a mim e a meus irmãos, para que não maltratássemos os passarinhos e os outros animais. Com efeito, nunca tivemos a cultura de engaiolar aves, com exceção de um casal de papagaios, que foi dado de presente a minha mãe, e que ela criou com todo mimo e carinho até seu falecimento. Os dois louros pareciam felizes, até mesmo no brilho e na vivacidade do olhar, e nas cantigas festivas que aprenderam a cantar.

A música “Assum Preto”, cuja letra é de Humberto Teixeira, foi imortalizada pelo genial Luiz Gonzaga, de sorte que é um dos primeiros libelos contra os maus-tratos aos animais. Esse pássaro é o nosso conhecido chico-preto, de canto sofisticado e melodioso. Na canção perpassa o destino cruel dessa ave canora: furavam-lhe os olhos para que ela assim pudesse cantar mais e melhor. Nela é dito que o assum preto cego vivia solto, mas sem poder voar, e que era preferível “Mil vezes a sina de uma gaiola / Desde que o céu, ai, pudesse olhar”. Não só olhar, claro, mas pudesse, livre, leve e solto, voar e planar na dimensão azul e quase infinita do céu; e pousar nas palmeiras e nas frondosas copas das grandes árvores, comendo livremente as frutas e sementes que mais lhe apetecessem.

Foi ao ouvir um comentário televisivo sobre a crueldade de se engaiolar pássaros, que minha mulher me contou a história comovente que lhe narraram a respeito de uma vaca. Obviamente eu conhecia a história de uma macaca, que, ao se defrontar com a espingarda que lhe era apontada, exibiu o filhote que conduzia, não no intuito de salvar a própria vida, como se ele fora um escudo, mas como se dissesse ao caçador: “Tenha piedade desse indefeso inocente, que mal começa a viver... Se você me matar, quem irá cuidar dele?” Consta que o caçador abandonou para sempre essa atividade.

Sempre achei que alguns animais, ao menos os que interagem com o homem, têm alguma espécie de raciocínio e inteligência, não digo sequer inferiores, mas talvez apenas diferentes dos nossos, que fazemos tantas loucuras e maldades e nos classificamos como inteligentes e racionais. Para que loucura e maldade maior do que as guerras étnicas ou religiosas? Que deus aprovaria uma guerra por sua causa ou por causa de uma simples cor de pele?

Pois Fátima me repassou, com viva emoção na voz embargada, a seguinte história: Havia um homem, parente de sua amiga, cuja profissão era matar gado bovino. Era um verdadeiro carrasco de bois. Às vezes enfileirava várias reses, e as ia matando uma a uma, uma vendo a antecedente ser abatida. Abro aqui rápido parêntese: às vezes sinto boiar nos olhos desses animais a névoa de uma profunda e resignada tristeza.

Também tenho conhecimento de que quando algum boi morre, os outras, na hora da melancolia crepuscular, se aproximam do local, e emitem plangentes mugidos, como se estivessem a prantear, saudosos, o companheiro morto, como se lhe prestassem uma homenagem póstuma, como nós humanos fazemos através de necrológios e panegíricos, e do cantochão das “excelências”, às vezes até fingidas e pagas, como no caso das lamentações das carpideiras. Já ouvi até falar de casos em que a boiada presta sentida homenagem, com os seus tristes mugidos, a um fazendeiro ou vaqueiro morto, desde que lhes tivessem estima e amizade.

Numa das vezes em que o nosso “el matador” bovino cumpria o seu macabro e triste mister, uma vaca se aproximou dele e dobrou os joelhos dianteiros, como se estivesse, ajoelhada, a lhe pedir clemência ou perdão por uma culpa que não tinha em sua natural   inocência. Levantou a cara para ele, e o carrasco pôde ver então o que jamais imaginara poder contemplar: do rosto da vaca escorriam lágrimas profusas.

O homem, comovido e cheio de remorso, não cumpriu pela primeira vez o seu dever profissional. E jurou a si mesmo que, daquele momento em diante, jamais mataria outra rês. Conseguiu outro emprego, e cumpriu fielmente o seu juramento.   

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Ativista do movimento negro em Parnaíba participa de evento nacional na Paraíba

Fonte: Google

Ativista do movimento negro em Parnaíba participa de evento nacional na Paraíba

Pádua Marques
Jornalista e escritor

O educador, escritor e ativista do movimento negro Marciano Gualberto A. N. Júnior, teve seu trabalho científico intitulado “Asès da Justiça: Contra genocidas de nossos terreiros e descentralização do opressor”, aceito na XI Semana Nacional de História, que será realizada de 27 a 30 de agosto na Universidade Federal de Campina Grande em Cajazeiras, Paraíba.
Este trabalho trata sobre a intolerância com as religiões de matrizes africadas. O evento contará com a presença de grandes nomes da História como a professora e doutora Mary Del Priori e professor doutor Daniel Aarão Reis. O evento é patrocinado e divulgado pela ANPUH, Associação Brasileira de Historiadores.
O estudante do curso de História da Faculdade Internacional do Delta teve seu trabalho aceito pela terceira vez consecutiva e vai defender a produção intelectual para ser publicada nos anais do evento nacional.    

terça-feira, 16 de julho de 2019

A múmia que dormiu na casa de Simplício Dias na Parnaíba

Fonte: Google


A múmia que dormiu na casa de Simplício Dias na Parnaíba

Pádua Marques
Jornalista e escritor
Da Academia Parnaibana de Letras

Já era boca da noite quando o escravo Elias entrou pela porta dos fundos da casa de Simplício Dias naquele sábado de julho de 1824 pra avisar sem mais tardança que o capitão de um navio francês insistia em falar com o governador da Parnaíba sobre a chegada de uma encomenda que por certo haveria de interessar, uma múmia egípcia.

Simplício naquele momento ao saber da chegada de Elias com noticia de que havia coisa grave ocorrendo no cais, tratou logo de chamar o negro a um canto. O navio francês, Le Prince de Bourbon, comandado por Emile Bornett, vindo do Egito e com escala no Marrocos, havia aportado em Tutoia a caminho de São Luiz e pedia permissão pra entregar uma encomenda ao coronel Simplício Dias da Silva.

E a encomenda, dada o valor e sendo coisa de chamar atenção, não poderia ser desembarcada em plena luz do dia. Simplício mandou o negro de volta com a ordem de que o desembarque da múmia seria pela madrugada antes da mudança de maré e com pouca gente por perto. Deu ordens a Elias de que reunisse logo uns quatro homens de sua confiança pra aquela faina. Havia comprado através de um negociante grego no Cairo aquela que seria a joia da sua loja, a múmia de uma criança, com o que pretendia abrir uma casa com mercadorias do Oriente na Parnaíba.

Pela madrugada os negros chegaram sem fazer barulho e tendo Elias como guia e encarregado do serviço foram depois no rumo do Porto Salgado pra desembarcar a múmia e guardar no prédio da esquina. Deu tudo certo. A madrugada com pouco movimento no cais e o silêncio do outro lado da Ilha de Santa Isabel fizeram com que dentro de pouco menos de meia hora aquela que seria a peça mais valiosa da loja de antiguidades estivesse guardada no armazém.

Simplício, tamanha a curiosidade pelo objeto comprado do Egito, mal dormiu naquela noite e na madrugada. Dia nascido, bem a criadagem de pé e mandou Elias abrir o armazém na parte de baixo do prédio da esquina. Queria ver com aqueles olhos que um dia a terra haveria de comer, uma peça da história da humanidade e que só ele e seu dinheiro podiam comprar.

Seria admirado e temido por toda a região, em São Luiz, Recife, Rio de Janeiro. Finalmente se vingava da ingratidão de dom Pedro I por não ter aceitado seu presente, para as filhas, as princesas Januária, Paula e Francisca, um cacho de bananas feito de ouro maciço e com pedras de rubi nas pontas! Se vingava por estar sendo agora perseguido e sendo acusado de tramar a queda do Império. Os dias, cinco de uma semana, foram passando e a loja da esquina sempre fechada começou a chamar a atenção.

Certa noite, já entrando em agosto, Elias foi na ponta do pé ver como estava a carga, uma peça belíssima de madeira e ornada com cenas de batalha. Foi ver, mas sem o direito de chegar perto e de tocar. Tinha o tamanho de menos de uma braça. Viu a peça e do jeito que entrou calado e se pelando de medo, foi saindo. Apenas Simplício e ele sabiam do que se tratava. Quando saiu na porta do armazém na esquinada da rua Grande, por volta de umas duas horas, achou de tanger um cachorro que dormia enrodilhado. O bicho nem se mexeu. Pegou um pau e fustigou de novo. Nem a pau. Nesse momento lá embaixo no cais uma sineta tocou duas vezes. Com aquele sinal Elias se arrepiou dos pés à cabeça.

Saiu olhando pra os lados em direção dos fundos e foi se aquietar. Mais daqui a pouco haveria de já estar de pé antes que Simplício acordasse. Era lei e ele tinha que cumprir. Mas quando na volta passou pelo cachorro viu que estava morto. Tratou de tirar aquela coisa dali antes de amanhecer. Lá pelo meio do dia foi chamado pelo capitão do porto, Sebastião de Seixas. Dois negros que haviam levado nas costas a encomenda pra o governador Simplício Dias da Silva naquela madrugada, estavam mortos.

Morreram escumando pela boca e se coçando sem que nada desse jeito. Não tinha sido nada de briga entre eles ou coisa de comer. E assim começaram a aparecer e acontecer outras coisas dignas de se meter na cabeça de que aquela múmia trazia coisa ruim pra dentro de casa. Simplício começou a ficar encasquetado com tanta coisa acontecendo dentro de sua casa.

Aquele cachorro, agora dois negros da estiva mortos sem causa, uma sua sobrinha caiu da escada e quebrou as costelas, o armazém ficou de uma hora pra outra infestado de ratos e de morcegos. Sem dar ciência à família e aos amigos, ao chefe de polícia, noutra madrugada Simplício Dias da Silva mandou que pegassem aquele troço e jogassem ou queimassem bem longe. Mas com medo de se repetir com ele o ocorrido com os negros estivadores, Elias acabou foi jogando no barranco do Porto Salgado no lado contrário a alfândega.  

domingo, 14 de julho de 2019

Seleta Piauiense - Alcides Freitas

Fonte: Google


ALMA PIAUIENSE

Novo Anjo

Alcides Freitas (1890 – 1913)

Ouço-te passo leve, ouço-te a melodia
Dos pantufos de seda a cantar no ladrilho
Uma estranha canção de sonho e de magia
Voz do vento, ao luar, nos penachos do milho...

E essa música, Flor, que me prende e extasia
No vago encanto azul de um celeste estribilho...
Ah! mistério bendito! Esquisita harmonia!
Perco o rumo; não ando; e é-me doce o empecilho...

Ouço-te o passo leve... Uma flauta que canta;
Um grego monocórdio um rito acompanhando;
Ânsias de carne moça e suspiros de Santa...

Ouço-te o passo leve... Ai! Amor por quem és!
Dá que eu viva, a sorrir, como um Anjo, escutando
A guitarra de luz que vibra nos teus pés!?...

Fonte: Antologia dos Poetas Piauienses, de Wilson Carvalho Gonçalves  

sexta-feira, 12 de julho de 2019

DESPEDIDA DE CADA DIA

Fonte: Google


DESPEDIDA DE CADA DIA

CUNHA E SILVA FILHO

            A vida é um romance machadiano, e, fosse citar um dos títulos, não hesitaria em citar Dom Casmurro (1899). Nesta crônica, direi por quê. Quero me prevenir de conceitos livrescos ou solenemente eruditos ou highbrow à Aldous Huxley (1894-1963) que tantas vezes nos atrapalham e nos desviam para a ausência de pensamento próprio ou de natureza antropofágica.

            Está o mundo muito livresco e a acumulação é gigantesca. Há teorias para tudo até para baboseiras aplaudidas aqui e alhures e, se falo em alhures, falo do exterior, dos outros países desse planeta ruidoso e com traços apocalípticos, de vez que, numa palavra, o que muda é só a língua, traço, de resto, que não se modificou por causa da conhecida Torre de Babel sobre a qual até linguistas, como Mario Pei (All about language London: The Bodley Head, 1956, p. 9) não deixam de fazer uma alusão ainda que não seja para corroborar a existência ou não do fato.

            A alma humana (William Shakespeare, 1564-1616, e o próprio Machado de Assis ( 1839-1908), mutatis mutandis - que não me deixem mentir - é tão igual quanto todos nós que nos chamamos, amiúde e com alguma arrogância mal disfarçada, de humanos. Que humanos podemos denominar uma pessoa que, por querer disputar ficar com uma cadeira num local e não o conseguindo, mata estupidamente uma outra que desejava também a mesma cadeira?

            Quanto de humano temos em nós em ações brutais e selvagens como estas? Quanto de verdadeiramente humano somos todos nós? Não sei. Talvez ninguém o saiba. Há uma descida de esgotamentos e exaurimento de traços solidários na natureza humana que há tempos está nos igualando a monstros sociais, tanto em indivíduos ditos escolarizados quanto em pessoas sem instrução.

             Vejam as duas imagens emblemáticas do que estou tentando passar-lhe aqui, caro leitor. Uma é a conversa dos coveiros da tragédia Hamlet (c. c,1598-1604, ou "provavelmente", segundo Otis & Needleman,  in An outline - history of English   literature, 4 th edition. Vol. 1: To Dryden. New York: Barnes  & Noble, 1965, p. 204),  obra que, sem peias na língua, nos dá a justa medida do que somos e fazemos jus ao pulvis sumus. A outra é da daquela fieira de notícias de falecimentos, ao longo dos capítulos do romance Dom Casmurro, já mencionado.

             Ora, tanto numa imagem quanto noutra o ponto comum, desponta uma luz sem argumentos contraditórios. Somos aparentemente alguma coisa apenas enquanto vivemos. E entre a vida e a morte, o fio é muito tênue, inesperado, repentino, provocador da surpresa, do inacreditável, de um abrir e fechar dos olhos, do que não imaginávamos que seria assim ou assado, alegre ou triste, barulhento ou silencioso.

            Tanto quanto a imagem introspectiva de que, em idade provecta, por dentro nos achamos ainda moços e prontos até para amar uma ou mais vezes, temos a sensação de que, na vivência do presente, do que por mais de uma vez chamei de primado do presente (embora dando a esse sintagma um sentido diferente, o de privilegiarmos só o instante vivido em detrimento dos dois outros tempos, o passado e o futuro, que também são realidades ponderáveis e latentes ), temos a forte sensação de que não morreremos.

            Não há ninguém que não tenha experimentado essa sensação de eternidade, sensação que localizo mais nos momentos de nossas vidas mais felizes e mais inebriantes. Essa sensação de eternidade nós é muito cara em algumas fases de nossas vidas dado que ela tem o seu tanto de fuga momentânea ao sentimento da finitude da nossa curta e imprevisível travessia do começo ao fim.

            Contudo, a quem leu uma obra e outra, é o próprio narrador machadiano e os coveiros de Hamlet que, volta e meia, nos vêm à lembranças e que mostram que a vanitas vanitatis e o pulvis sumus, ao final e ao cabo, ali estão nos alertando que a vida é breve e que os humanos e os desumanos hão de, uma vez ou outra, ser forçados a engolir a efemeridade de nossos vícios, oportunismos, indiferenças, preconceitos, mesquinharias, hipocrisias, atos vis e abomináveis.

            No mundo em que vivemos, sob o signo do imediatismo, do hic et nunc, somos um tanto meio iludidos pelo dinâmica da multiplicidade de incidentes e acidentes que nos tomam de assalto a mente já por si mesma atolada pelos apelos ao presente utilitarista e dionisíaco.

           O homem se mostra sem tempo e azo de pensar em si mesmo, muito menos deixando o hedonismo escapar para um reflexão metafísica em direção a um mergulho denso, profundo, visceral, voltado para questões como a transitoriedade dos homens, dos objetos e das coisas que nos cercam e, ao contrário, nos fazem ver, diante de nós, não mais pessoas, porém interesses imediatos e inconfessáveis.

          Vida material, amizades datadas ou descartáveis, prazeres, nos quais campeiam as futilidades, a superficialidade, as “mentiras convencionais de nossa civilização”, momentâneas de bons dias insossos, beijos e abraços virtuais, muitas vezes vazios de sentidos, mero ritualismo de protocolos sociais e handshakes do mundo do business, gestualidades mecânicas, verdadeiras as sensaborias pós –modernas.

          Não é de causar espécie quem mesmo no último dia de despedida o ritual, sobretudo no mundo da high society, se revista da suntuosidade nas vestimentas e nos gestos sombrios exigidos pelas convenções sociais com indefectíveis óculos escuros de grife a prantear quem também na vida passou ou agiu da mesma forma e com os mesmos privilégios.

          Assim caminha a humanidade, deixando atrás de si o diálogo final dos coveiros shakespearianos sobre o destino dos homens e os capítulos machadianos assinalando fleugmaticamente a nota fúnebre de seus personagens - perdedores ou vencedores -, tragados pelo voracidade do tempo.   

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Coleção Florianenses nº 8: um belo e festivo lançamento


Fonte: Floriano News/Google


Coleção Florianenses nº 8: um belo e festivo lançamento

Elmar Carvalho

Sábado passado, seis de julho, por volta de uma da tarde, em companhia de meu irmão Antônio José, segui com destino a Floriano, para participar da solenidade de lançamento do anuário, na verdade um livro de mais de 370 páginas, denominado Coleção Florianenses (volume 8), todo em papel couchê, com inúmeras fotografias, organizado por Cristóvão Augusto Soares de Araújo Costa, Rosenilta Maria de Carvalho Attem e Teodoro Ferreira Sobral Neto. Os grandes homenageados da edição foram uma centenária carnaubeira, tombada em 2018, vítima de um impiedoso vendaval, e o saudoso professor Luiz Paulo de Oliveira Lopes, que fora um dos mais entusiasmados membros da Fundação Floriano Clube.

Atendia convite do amigo Cristóvão, um dos seus organizadores e membro da Fundação, que o editara. Iria lhe entregar o Diploma e a Medalha do Centenário da Academia Piauiense de Letras, como representante do presidente Nelson Nery Costa. Tenho a honra de ser o autor da proposta de concessão da honraria, que lhe foi outorgada a unanimidade pelos membros da Assembleia. Cristóvão, após a morte do jornalista e escritor Deoclécio Dantas, tornou-se o presidente vitalício do Sinédrio do Riverside, roda de conversa de que faço parte, na verdade um conselho consultivo e deliberativo de assuntos aleatórios e outros mais.

Do Hotel Maktub, em que nos hospedamos, fomos a pé, eu e meu irmão, conhecer o local do evento, e fazer um lanche. Perguntei a uma jovem que passava onde ficava a sede da fundação e a lanchonete mais perto. Ela indicou a rua e a direção, que por sinal ficava perto de onde estávamos. Acrescentou que estava indo para a lanchonete, e que poderíamos acompanhá-la.

Ao saber de minha missão, disse que era nora do senhor José Bruno dos Santos e filha de dona Maria Amélia, que no dia seguinte lançaria um livro e tomaria posse de uma cadeira na Academia de Letras e Belas-Artes de Floriano e Vale do Parnaíba, de que fazemos parte eu e seu sogro, sendo este o seu presidente. Como eu estivesse defronte a um velho e imenso sobrado, perguntei se acaso ele pertencera aos ancestrais do meu amigo José Demes, funcionário do Banco do Brasil, compositor e instrumentista, tendo ela respondido afirmativamente.

Conheço Bruno dos Santos há muitos anos e tenho conhecimento de suas lutas e biografia. Fez parte do MDB histórico, e ouvi alguns de seus pronunciamentos pelo rádio, em minha meninice, no horário eleitoral, no final dos anos 60, começo dos 70. Diz-se jocosamente que os emedebistas históricos do Piauí cabiam num fusca. Eram eles Josípio Lustosa, Celso Barros Coelho, padre Solon Aragão, Manoel Veloso, João Mendes Nepomuceno, Manoel Nogueira Lima Filho, Severo Maria Eulálio, Filadelfo Freire de Castro, Bruno dos Santos, como dito, e outros que não me acodem à memória de imediato.

Bruno foi deputado estadual e prefeito de Floriano. Quando foi diretor da Comepi, fez duas obras da mais alta importância cultural: criou o Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado (dentro do qual, como presidente da UBE-PI, consegui uma página cultural denominada “Textos e Pretextos”) e publicou duas notáveis obras do poeta popular Hermes Vieira, que entrevistei, com Domingos Bezerra, para a revista Cadernos de Teresina, da qual fui editor. Já conhecia o grande poeta através do Almanaque da Parnaíba, e dele guardei os versos de um poema sobre o lobisomem, que cito de memória (e, portanto, sem exatidão): “A feiura nele é tanta / Que até mesmo ele se espanta / de se ver tão feio assim”.  

Saindo da rápida digressão, em que presto singela homenagem a José Bruno dos Santos, volto a falar da solenidade de lançamento da Coleção Florianenses, na qual ele se encontrava presente. Fui recepcionado por Cristóvão Augusto, que já se encontrava autografando exemplares do anuário. Ele me mostrou detalhes do velho Floriano Clube, e me levou para ver umas excelentes maquetes, que são a memória fiel e em miniatura de antigos prédios da cidade, alguns já demolidos. Pedi-lhe que retornasse à sessão de autógrafos. Encontrei uma pessoa, que disse se chamar Antônio Carlos Torres, que é uma memória viva de Floriano. Disse possuir todos os números da Coleção, e ter comparecido a todos os lançamentos. Prestou-me informações sobre todos os painéis estampados nas paredes da sede da Fundação, que contam muito da história cultural da cidade, sobretudo da área musical, com seus grandes instrumentista e conjuntos.

Compunham a mesa de honra altas autoridades do estado e da cidade, entre as quais o prefeito Joel Rodrigues, o bispo emérito Dom Augusto Rocha, o presidente da Fundação Floriano Clube, Teodoro Sobral Neto, e o ex-deputado federal B. Sá. Após fazer a entrega do diploma e da medalha outorgados pela APL ao amigo Cristóvão Augusto, fiz conciso discurso, em que enalteci as suas qualidades pessoais e o seu trabalho e o de seus companheiros em prol da memória histórica e cultural de Floriano, além de comentar a coletânea biográfica que estava sendo entregue ao público ledor. Enfatizei que algumas de suas peças biográficas poderiam ser consideradas verdadeiros ensaios, como a produzida por Alcebíades Costa Filho, ilustre historiador e meu velho conhecido, sobre seu pai, que despontava como um notável líder operário, quando o seu trágico assassinato lhe interrompeu a carreira, cujos augúrios a anunciavam como auspiciosa.

Parte do que disse foi uma espécie de resumo do que escrevi para a contracapa do volume 5 da Coleção, que segue abaixo, na íntegra:

“A Coleção Florianenses, já em seu quinto número, editada pela Fundação Floriano Clube e sendo sua organização capitaneada por Cristóvão Augusto Soares de Araújo Costa, pode ser considerada um misto de revista, anuário e almanaque, pela diversidade de autores e matérias, algumas pequenas, outras com características de verdadeiros ensaios biográficos. Versam diferentes temáticas, mas todas relacionadas a Floriano. Quase todos os textos são ricamente ilustrados por fotografias, que os documentam, tomando, algumas vezes, o status de ensaio ou reportagem fotográfica. Neste número (cito apenas como exemplo), há uma sequência delas sobre velhos carnavais e folguedos juninos, que nos fornecem a nítida imagem de costumes e sociabilidades de outrora, quase sempre singelos e mesmo ingênuos.

Os perfis biográficos, alguns longos e profundos, em que o caráter e o ideário do biografado são fixados, retratam não só florianenses ilustres, mas também notáveis piauienses e brasileiros, que lhe prestaram bons e inestimáveis serviços, como o barrense Raimundo Artur de Vasconcelos, signatário da lei que elevou a povoação à categoria de cidade. Entretanto, não apenas as figuras proeminentes da história oficial são objetos desses estudos, mas também pessoas humildes, que fizeram ou fazem parte da paisagem humana da comunidade; nessa seara figuram profissionais liberais, mestres dos mais diversos ofícios, artesãos, artistas, poetas e intelectuais, além daqueles que se celebrizaram como figuras ditas folclóricas, pelos episódios engraçados, jocosos de que foram protagonistas, mercê de sua verve ou de seu espírito brincalhão.

A coletânea, logo em suas páginas iniciais, registra as “Curiosidades Florianenses”, tanto através de textos, como de anúncios publicitários e “santinhos”, todos fac-similados, para que o leitor possa ter noção de uma época sem internet, sem redes sociais, em que o tempo parecia escoar com maior lentidão. Nas páginas finais, sob o título de “Verdades, boatos e mentiras contadas na barbearia do Zé Venâncio e no bar do Sinhozinho”, foram relatados os “causos” e as façanhas pitorescas e hilárias de pescadores, caçadores, boêmios, cachaceiros e outros mentirosos e fanfarrões, todos integrantes e enriquecedores da mais legítima fauna folclórica florianense.

Na capa de todas as edições aparece, de forma emblemática e simbólica, a porta principal do Estabelecimento Rural São Pedro de Alcântara, que originou Floriano. Pode-se dizer que ela é o portal por onde entrou, fulgurante em sua glória, a Princesa do Sul. É o seu pórtico inaugural e o seu Arco do Triunfo.”

Os biografados na Coletânea, foram ainda homenageados através de banners e de slides, projetados por data show, além de que suas qualidades e feitos foram sintetizados pelos apresentadores da solenidade. Não bastasse isso, a família de cada um deles teve um representante, que discorreu sobre os fatos marcantes de sua vida, de sorte que a história, a sociologia e os costumes de Floriano foram enaltecidos por diferentes pessoas e familiares. Todos se referiram ao extraordinário serviço prestado pela Fundação Floriano Clube em prol da preservação da memória florianense, sobretudo à Coleção Florianenses, graças à dedicação e esforço de seus organizadores, Cristóvão Augusto  Soares de Araújo Costa, Teodoro Sobral Neto e Rosenilta Maria de Carvalho Attem. 

Nesse ponto, não posso deixar de lembrar o poeta Antônio Veras de Holanda, que clamou em versos aos poetas do porvir: “Lembrai-vos de mim. / Afastai do meu túmulo o anonimato da morte.” Esses versos, literalmente lapidares, estão inscritos na lápide de sua sepultura, em cemitério florianense. A Coleção Florianenses, cumprindo esse testamento literário do saudoso vate, estampou a sua biografia no seu volume nº 5, assim como vem retirando do esquecimento outras ilustres personalidades, que já não eram lembradas ou que não eram conhecidas pela geração atual.

Foi uma esplêndida festa cultural e literária. Em Cadernos de Lanzarote li, em alguma parte, que Saramago já se dava por satisfeito quando a um evento literário compareciam, salvo engano, mais de setenta pessoas. Pois na festa de lançamento do nosso anuário foram contadas 365 pessoas, fora outras que escaparam à contagem ou que chegaram depois, de modo que se acredita que compareceram em torno de quatrocentas. Importa dizer que foram vendidos inúmeros exemplares, o que não acontece no Piauí e nem mesmo do Brasil.  

Foi, repito, uma esplêndida festa cultural.

terça-feira, 9 de julho de 2019

A moeda pra Nossa Senhora da Graça



A moeda pra Nossa Senhora da Graça

Pádua Marques
Escritor e jornalista
Da Academia Parnaibana de Letras

Simplício Dias estava pedindo pressa naquelas obras da alfândega da Parnaíba, já autorizada pelo rei dom João VI há dois anos. Ele descia de casa no rumo do cais do Porto Salgado, acompanhado do escravo Elias. Andava entusiasmado com o movimento no porto e naquela manhã saía pra ver de perto o serviço na nova repartição. Não era lá de deixar o sobrado e a companhia de dona Isabel Thomásia, sua mulher, dos filhos e dos criados.

Não era de gostar e nem poder mais andar pelo meio da rua na Parnaíba. Já temia pela vida e evitava o de sempre, alguém pedindo isso ou aquilo, um adjutório pra um filho estudar em São Luiz ou no Recife, um batizado ou casamento, uma vaga no serviço de sua casa ou das repartições do governo, essas coisas. Mas naquela manhã achou de sair depois do café e seguiu pela rua até o cais. Lá estavam os barcos e canoas, vindos de Tutoia no Maranhão, e de Ilha Grande de Santa Isabel, desembarcando tudo em quanto era tipo de mercadoria.

E naquele sobe e desce de gente, de negros e embarcadiços nus da cintura pra cima dando no meio da canela, aos gritos, o cheiro forte de aguardente, suor, farinha e de sacos úmidos de maresia, Simplício ia se aproximando do cais e o movimento ia crescendo. Ao verem aquele homem tão importante e tido como poderoso aquela gente ia abrindo caminho e os de mais posses e projeção tirando os chapéus naquela reverência costumeira.

Elias era um negro baixo, de pouca graça, os caroços dos olhos amarelados, como quem teve dordolhos, com pouco mais de quarenta anos. Foi presente de um compadre de São Luiz, no Maranhão. Tinha só um braço e caxingava da perna direita. Contava que aquele aleijão foi coisa de uma briga com um paraense por causa de serviço no cais. Andava a pouco menos de dois passos de Simplício sempre que o patrão saía à rua. Por dentro da calça de algodão ordinário, uma enorme faca. Mas que ninguém lhe imaginasse sem um braço não ter destreza.

Simplício ia sendo cumprimentado aqui e ali mais na frente cumprimentando um capitão de navio, um dono de carga de algodão, oficiais da Marinha e gente mais de feição e bem vestida, vinda de São Luiz e até da França entre os embarcadiços. Mas no meio daquele mundo de gente não andavam mulheres. A rua e o cais eram de homens e para os homens.

Simplício e Elias estavam quase chegando à esquina do porto, pra direita, em direção à alfândega quando de longe um negro se abaixou pra pegar alguma coisa no chão. Olhou pra um lado e pra o outro e foi logo colocando a moeda no bolso. Mal deu tempo da moeda esquentar na mão calosa. O coronel da vila da Parnaíba viu e apressou o passo. Antes que o negro se perdesse no meio dos outros estava perguntando quem era e quem era seu dono.

Sem resposta de imediato e tomado pelo susto o negro ficou arquejando de medo. Achou ou roubou aquele dinheiro? Achado não era roubado, calculou responder. Mas se limitou a dizer que quando era achado por um cativo e esse cativo não tinha dono, o achado era de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo. E Deus estava na igreja e a igreja estava lá no alto e era do senhor Simplício Dias da Silva, por merecimento governador da Parnaíba!

Disse daquele jeito submisso de quem pedia amparo. Logo, aquela moeda era do coronel. Tremendo feito uma vara de pé de sabiá verde, o negro baixou a cabeça e foi logo entregando o achado pra Simplício Dias, que no tempo de um piscar de olho colocou a moeda no bolso da calça.

Elias ao ver o rosto de seu dono coberto de suor foi logo pegando um lenço de algodão meio encardido e o enxugou. Era sua função além da segurança pessoal ser serviçal de cuidados extremados. Simplício ainda olhou pra um e pra outro como que mandando que concordassem com sua medida e foi saindo devagar em direção às obras da alfândega naquele final de novembro.

O negro estivador, que até bem pouco tempo estava achando que tinha sorte demais na vida com a moeda, foi saindo e se perdendo no meio dos outros. Simplício agora estava dando ordens no meio dos operários na obra da alfândega. Um pouco longe do cheiro de sacos de algodão, de fumo e carne seca naquele cais cheio de mercadorias empilhadas pra embarque. Meteu a mão no bolso e se sentiu satisfeito. Olhou pra Elias e deu um resmungo curto.

Pra que negro com dinheiro? Pra gastar com mulher da vida e com aguardente, fumo pra mascar e depois sair caçando confusão até ser preso e levar surra amarrado em tronco? Deixasse aquela moeda em quem sabia e conhecia valor de dinheiro! Negro não sabia valor de dinheiro! Negro não sabia nem rezar um Pai e Nosso e queria ficar com dinheiro? Dinheiro era da santa, Nossa Senhora da Graça. Lá no cofre estava seguro.   

domingo, 7 de julho de 2019

AMARANTE

Fonte: Google


AMARANTE

Elmar Carvalho

doce amaro
         pródigo
         avaro amarante
         ante-amar-te
         anti-amar-te
antes sempre após
agora
sem agouro sem demora
sem pressa e sem presságio
        pé ante pé
        perante tuas casas sonolentas
diante das fráguas das serras
que descerras em cortinas de azuis
                        descortinas neblinas
na paisagem – plumagem/brumagem fixada
na retina retentiva redentora do poeta
                        amarante
                        amaranto de
memórias atávicas de catimbós
murmúrios ancestrais de urucongos
requebros lascivos de velhos congos
resquícios longínquos de quilombos
encravados em abissais cafundós
dos antepassados cativos altivos dos mimbós
            perante ti
            amarante
a água escorre lacrimal
pela sinuosidade do morro da saudade
deságua na desembargador amaral
            e de val em val
               de sal em sal
boceja nas bocas de lobo dos esgotos
gargareja nas gargantas gosmentas dos gargalos
            mergulha e deriva singular
nas águas plurais do parnaíba
            amarante
            perante ti
            imperante
o vento verdeja agreste nos ciprestes
rumoreja aguado nos aguapés
sacoleja sem leste oeste
a copa fagueira das faveiras
            tuas tardes tardas dolentes amaras
                        abres das janelas
                        debruçadas em melancolias
            e alicias e (re)velas
as moças nas modorras mormacentas macilentas
em que delicias cilicias e acalentas ...