quinta-feira, 31 de outubro de 2019

CAPAS & DEDICATÓRIAS: Sissi Carvalho





No lançamento dos livros de Homero Castelo Branco, no sábado passado, de que tive a honra de ser prefaciador e um dos apresentadores na solenidade acadêmica, encontrei o amigo Carlos Rubem, que me apresentou a escritora Sissi Carvalho, natural de Oeiras, mas radicada no Rio de Janeiro (RJ) desde os anos 1980, onde exerce as funções de médica epidemiologista. Sua vocação literária nasceu desde que ela era muito jovem, ainda em sua terra natal, quando publicou seus primeiros poemas nos jornais A Luz e o Cometa. Sócia do Instituto Histórico de Oeiras, desde a sua fundação. Foi colaboradora do Portal do Sertão da Fundação Nogueira Tapety.

Para minha satisfação ela me ofertou seu romance O amor desfeito em pó, editado e lançado recentemente. Trata do difícil e, às vezes, trágico relacionamento entre um dependente químico e a mãe. É uma primorosa edição, mesmo caprichosa, formatada pelo grande artista plástico Antônio Amaral, que, além do projeto gráfico, ainda lhe fez esmeradas ilustrações. Em Nota da Autora e no capítulo inicial, podemos perceber que Sissi é de fato uma notável escritora, uma verdadeira estilista, contudo, de frases curtas, concisas, em que a precisão vocabular se reveste de legítima objetividade e clareza, sem a necessidade de supérfluos adornos.

Da orelha, recolho as seguintes palavras de Sônia de Andrade Barros, psicóloga e artista da dança: “A complexidade das relações, ora explicitadas, ora omitidas, mas não menos presentes nesse relato, já nos alerta para uma postura de não julgamento, mas de acolhimento do sofrimento dos personagens envolvidos. A seara de certo e errado não nos aproxima de uma possível e mais aprofundada leitura da realidade, embora estejamos sempre tentados a frequentá-la.” De tudo isso me emerge a convicção de que Sissi construiu personagens de verdade, de carne, sangue e ossos, e não simples simulacros ou mesmo caricaturas, mas criaturas como nós, com virtudes e defeitos.

Como uma homenagem à autora e seu livro, transcrevo o seguinte trecho do posfácio de Edmar Oliveira, psiquiatra de longa experiência, além de notável romancista, memorialista e cronista: “Para finalizar, sugeriria uma releitura do texto de Sissi. Descubram agora a leveza e o humor com que a autora encara uma história de suor e lágrimas. Reveja as estratégias usadas pela personagem mãe para lidar com a sua culpa e não se deixar abater pelo peso do fardo que deve sempre levar ao topo da montanha.”

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Anos 70: por que essa lâmina nas palavras?





Anos 70: por que essa lâmina nas palavras?

Daniel C. B. Ciarlini
Ensaísta, crítico literário e professor

            Do esforço de José Pereira Bezerra em interpretar a complexidade dos anos de 1970 no Piauí, sobretudo as lutas empreendidas e os produtos simbólicos produzidos, surgiu Anos 70: por que essa lâmina nas palavras? (1993). A meu ver, obra fundamental para acessar pormenores da produção cultural que ganhou contornos teóricos sob o signo da “antiestética marginal”. Época de lutas, de experimentações, de desabafos e de muita audácia – pequenas expressões (de grandes significados) que ajudam a compreender o ímpeto dos jovens que fizeram época em resistência ao autoritarismo ditatorial brasileiro, lançando nas lides da literatura o necessário e nunca vencido impulso do engajamento, olhar distanciado da alienação.

Uma resposta já distante no tempo, mas que, como nunca, deve ser remexida, chacoalhada, a fim de inspirar as gerações do século XXI que precisam de um choque, de um símbolo indicativo. Sim, as lições, as resistências ou mesmo as virulências deixadas ali pelas mãos furiosas da geração mimeógrafo devem ser recompostas, devem inspirar, em inescapável auxílio e obstinação a esses duros e obscuros tempos que retomam pouco a pouco, de maneira quase cíclica, a tendenciosa desinformação.

Essencialmente, é com os trabalhos de poetas e contistas que se ocupa o estudo de José Bezerra, concentrando olhares aos dois polos do estado: Teresina e Parnaíba. E desta destaco o providencial nome de Alcenor Candeira Filho, artífice das letras criativas e ensaísticas que nos últimos dez anos me tem inspirado respeito e admiração. Referencio ainda Elmar Carvalho, Paulo Machado, Menezes y Morais, Chico Castro e Rubervam du Nascimento, expoentes do “fenômeno” da poesia marginal, como definira com grande acerto o autor do livro.

Tenho discutido em rodas acadêmicas e entre escritores a importância desse trabalho que, penso eu, devia ser ampliado e reeditado, síntese que é de um olhar dos mais apurados de quem que não só interpretou uma geração, como a vivenciou – daí a singularidade do estudo, daí a profundidade e o testemunho que se desenham nas páginas. O autor, no mais significativo entendimento da poética marginal piauiense, deixa entrever a multiplicidade da década, que não pode ser compreendida sem o imprescindível auxílio da história, da linguística e da análise sociológica, esta que nos permite acessar os meandros da criação e as inter-relações entre produtores, não produtores e seus contextos discursivos.

Mas nada vence o casamento precioso de dois olhares, o dedutivo e o indutivo, responsáveis pela vociferação das fontes consultadas (livros mimeografados autofinanciados e periódicos alternativos – listagem vestigial de pesquisa), em suas mais urgentes especificidades. Acredito ser o momento de a academia ou de instituições de salvaguarda do Piauí buscarem reunir esse material a fim de facilitarem o acesso, a pesquisa e a sua consequente análise, não apenas no campo da história, como se tem feito nos últimos anos com grande propriedade e a duras penas, como também em áreas congêneres, a citar os estudos de literatura, reverberando para o porvir o grito rebelde e verdadeiro dos jovens de 1970, cuja herança nos é não apenas importante, mas um caminho.   

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Os Castello Branco: oração de lançamento II

Elmar Carvalho, Homero Castello Branco, Nelson Nery Costa (presidente da APL) e Dílson Lages Monteiro

Fonte: Google/You Tube


Os Castello Branco: oração de lançamento II

(*) Dílson Lages Monteiro

Senhores e senhoras,

Em “Testemunha ocular da história: o uso da imagem como evidência histórica”, obra que se tornou clássica para pesquisadores, Peter Burker afirma:

“Nos últimos tempos, os historiadores têm ampliado consideravelmente seus interesses para incluir não apenas eventos políticos, tendências econômicas e estruturas sociais, mas também a história das mentalidades, a história da vida cotidiana, a história da cultura material, a história do corpo etc. Não teria sido possível desenvolver pesquisa nesses campos relativamente novos se eles tivessem se limitado a fontes tradicionais, tais como documentos oficiais produzidos pelas administrações e preservados em seus arquivos”. (2017:17)

Conclui Burker: “Por essa razão, lança-se mão, cada vez mais, de uma gama mais abrangente de evidências, na qual as imagens têm o seu lugar ao lado de textos literários e testemunhos orais” (2017:17).

Tais palavras, embora concentradas enfaticamente no valor da imagem, do texto literário e das narrativas orais como documento, endossam, também,  o lugar social da genealogia, ao redimensionar a concepção, segundo a qual, qualquer fonte converte-se  em instrumento válido para, não apenas se desdobrar vínculos causais, consequências e cronologia de fatos, mas também, e sobretudo, o modo de pensar de um tempo, referendando Robert Darton, para quem a história traduz uma maneira de pensar.

A genealogia significou, historicamente, um dos fortes aliados aos mais diversos campos dos estudos em humanidades. Dela, até hoje historiadores se valem, entretanto, sua utilização passou por novos contornos. Se antes estava a serviço notadamente de perfis biográficos eivados da exaltação de grandes feitos ou a serviço do positivismo, foi, a par de novas metodologias e apropriações, convertendo-se como objeto válido para um entendimento mais exato das relações de poder, como o fez pioneiramente a historiadora Tania Pires de Brandão ao estudar a elite colonial piauiense   e, modernamente, entre nós, a seu modo, o historiador e acadêmico Reginaldo Miranda. E mais do que a compreensão das relações de poder, verteu-se em objeto igualmente útil ao entendimento do próprio tecido social em crenças, costumes, valores e outras relações de ordem diversa, capazes de investigar conflitos sociais e identidades dos mais variados grupos.

À luz de teorias recentes, a genealogia vem se constituindo como campo de conhecimento para a construção de autoidentidade. Sob essa ótica, o genealogista Gilberto de Abreu Sodré Carvalho explica:

“A genealogia não é um assunto de interesse restrito a nobres estabelecidos há algum tempo ou há tempos, de arrivistas ou de genealogistas de jeito fidalgo, mas sim estudo seriíssimo para entender o desejo de poder e de imanência (sermos intrinsicamente especiais) de cada um de nós. O impulso pelo poder – que nos garante, ao menos na aparência sobreviver – estabelece a competição pela ascensão social e a fuga da descensão” (2017:28).

A esse propósito, esclarece Sodré Carvalho:

“A ausência de memória vinda de genitores, avós e além leva a invenção de um passado, uma vez que o passado real como conhecido é honrosamente vazio, restrito à expressão das mãos, dos olhos, da cor da pele, dos traços do rosto para dar as pistas. Os humanos, de regra, não aceitam de bom grado não terem um passado conhecido que os ajude a desenvolver uma mais completa identidade” (2017:237).

Por essa razão, argumenta o genealogista que somos “roteiristas e atores de autobiografias em curso de encenação e ajustes”.

Senhores e senhoras,

As duas primeiras décadas do século XXI se desenharam como momento fértil e de surpresas com a publicação de dezenas de obras sobre famílias piauienses e seus entrelaçamentos familiares. Entre as famílias estudadas, poucas receberam atenção tão detalhada quanto os Castello Branco. Em 2008, Dr. Edgardo Pires Ferreira, um dos mais respeitados genealogistas brasileiros, cujo fôlego e vocação para estudos de família legaram um denso conjunto de livros nos quais o Piauí colonial e Imperial e outros estados se fazem representar, lançava o volume 5 de A mística do parentesco – uma genealogia inacabada, publicando tomo específico sobre Os Castello Branco, no qual agrupava mais de 13 mil verbetes. Nessa obra, ele ampliava os esforços dos demais volumes, reinterpretando verbetes por meio de ligações de diversas famílias estudadas aos Castello Branco e aos Carvalho de Almeida, alguns dos pioneiros na colonização do Norte piauiense.

O estudo terminou por resumir os volumes anteriores de A mística do parentesco, cuja edição é 1987, e preencher lacunas, somente descobertas com a circulação dos primeiros cinco volumes da coleção. Por meio do volume específico dos Castello Branco, uma de suas metas era realizar uma releitura de “Apontamentos Genealógicos de Dom Francisco Castello Branco: seus ascendentes e descendentes”, organizada por Antônio Leôncio Ferraz e outros, editada em 1926, hoje rara, livro que a despeito de ter valor incomensurável para a área e seu tempo, exige grande esforço de leitura, muito mais própria aos entendidos no assunto. Ao mesmo tempo, Dr. Edgardo aprimorava mais e mais a metodologia que criou para catalogar verbetes de maneira a que o leitor comum consultasse a obra com relativa facilidade, o que, de fato, tornou-se real. A mística do parentesco é de fácil consulta.

A inquietação em contribuir para um trabalho mais próximo possível dos anseios de pesquisador o conduziria a mover-se incansavelmente na descoberta das lacunas do quinto volume. Assim é que novas famílias descendentes dos Castello Branco do Sul ao Norte do Piauí, com ou sem o sobrenome incorporado ao nome, foram se somando a outras já registradas na obra. O resultado disso apareceu com o mais fascinante volume da Coleção. Poucos anos depois da 1ª. Edição do número 5 de A mística do parentesco, os piauienses e maranhenses receberiam a nova edição desse tomo, mais que triplicada de verbetes, reunindo mais de 45 mil nomes, a que se adicionou estudo do historiador Gilberto de Abreu Sodré Carvalho.

Na esteira dessas publicações ou concomitantemente a elas, o historiador Valdemir Miranda publicava sobre a mesma família o volume 1 de “Enlaces de famílias”, uma genealogia em construção, com registro de quase 15 mil nomes e relações de parentesco. Ele concentrou a atenção na descendência de Antônio Carvalho de Almeida e Maria Eugênia de Mesquita Castello Branco, estabelecidos à época em região hoje pertencente ao município de Batalha em 1725. Interessava ao pesquisador, especialmente, famílias assentadas notadamente entre os munícipios de Piracuruca, Batalha e Esperantina, embora tenha, inevitavelmente, por força da cadeia de casamentos entre parentes, registrado famílias descendentes do casal em outros municípios. Graças a suas pesquisas, catalogaram-se grupos familiares cujo conhecimento de suas raízes jazia quase exclusivamente na poeira da memória oral.

A esses dois estudos, as pesquisas do historiador Reginaldo Miranda, em diversos artigos que investigaram a fundo em fontes primárias não exploradas até então, entre outras questões, Dom Francisco Castello Branco e a história pessoal dele em São Luís do Maranhão, assim como a de outros destacados integrantes dessa família, abriram caminho para novas hipóteses úteis à história, à genealogia e ao memorialismo. Cumpre destacar que todas essas pesquisas se construíram ao tempo em que o genealogista carioca Gilberto Sodré Carvalho investigava em minúcias Os Carvalho de Almeida, família com a qual Os Castello Branco originalmente se consorciam por matrimônio no Piauí, originando uma descendência numerosíssima, aos milhares, descendência da qual muitos dos aqui presentes fazem parte.

À margem do fechamento de uma década, quando o tempo vende a ilusão de que pouco ainda apareceria, pelo menos por enquanto, em torno dos estudos sobre essa família pioneira na colonização do Piauí, eis que a vocação do acadêmico Homero Castello Branco Neto ao memorialismo e à genealogia, vocação já expressa em vários livros de mesmo matiz, como “Ecos de Amarante”, surpreende e fascina, mais uma vez, com publicação que mais do que apenas um publicação vale pela obra completa que o é. Não apenas pela utilidade e importância aos interessados no assunto, mas principalmente pelo conjunto dos livros enfeixados em um só livro.

Se em digressão me remeto a outras obras sobre Os Castello Branco, relativamente recentes, é, também, para pôr em relevo que algumas delas beberam na fonte da tradição oral, especialmente, recorrendo ao conjunto de textos basilares coligido nos diversos livros, reunidos, agora, em um só volume pelo escritor Homero Castello Branco Neto. Esses estudos, todos eles, completam-se e dialogam (um motiva a leitura do outro naquilo que traz de não sabido ou não revelado, naquilo que organiza ou seleciona sob outro paradigma, ou mesmo naquilo que corrige).



Senhores e senhoras,

Em “Fenelon Ferreira Castello Branco”, que se desdobra em duas publicações de feição complementar (uma delas, autoral, e outra, do próprio Fenelon, o biografado) e “Os Castello Branco ontem e hoje”, que condensa 4 outras publicações sobre a família, escritas por antepassados, em momentos diversos do passado, até chegar ao presente representado pela escritura de Homero Neto, genealogia e memorialismo se intercruzam. É possível lê-los separadamente, ao sabor do diletantismo, mas também a partir de percurso cronológico de escrita e edição. Independentemente da estratégia de leitura, conseguem os livros alcançar, para além de elementos da vida privada, a própria história da família Castello Branco e ramificações, por meio de realizações de dezenas de seus filhos ilustrados, cuja trajetória é resumida em notas biográficas. Soube o autor, frise-se, promover distanciamento dos textos reunidos, para que imperasse a voz da ancestralidade e um dos sentidos originais do conjunto da obra, o de promover o legado das antigas gerações, sobremodo.

Do conjunto, por dever da satisfação pessoal da leitura, destaco no volume intitulado “Fenelon Ferreira Castello Branco” o telurismo que percorre todas as páginas da biografia, nas quais o amor pela figura do tio-avô se materializa em releitura terna, traduzindo em uma só pessoa tio-avô e neto. Em ambos, pela escritura telúrica, abundam “o amor à família, à terra, aos amigos e aos amores”, entre eles, o carinho desmedido pela antiga Barras do Marataoã, expresso em 4 sonetos intertextuais, escritos em 1925 e há muito absorvidos pelos barrenses em versos lidos e relidos quase como hino, entre eles:

Barras

Ó formosa cidade sertaneja
Transbordante de graças campesinas,
Banhadas pelas águas cristalinas
Que o rio Marathaoan além despeja.

Viva eu perto de ti, ou longe esteja,
Com essas tuas delícias me fascinas
E já velho revejo-me o traquinas
Que brincou, por ali, no adro da igreja,

Como recordo o barco à flor das águas!
E os canoeiros numa trova antiga,
Ao som dos remos, desfiando mágoas!

Com essas lembranças minha mente escaldas!
Ó ninho azul, ó minha Terra amiga,
- Berço de Thaumaturgo e David Caldas.


Destaco ainda, no mesmo volume, a publicação, pela primeira vez, dos manuscritos de Fenelon, sob o título seminal “A cronologia da família Castello Branco”, manuscritos que originaram a clássica publicação de Antônio Leôncio Ferraz e outros, sobre a descendência de Dom Francisco Castello Branco. Embora hoje essas informações estejam disponíveis e desmembradas em diversas releituras, o acesso a essas anotações permite cotejar o que já se escreveu sobre esses grupos familiares e mesmo reparar impropriedades. Nos verbetes de Fenelon, agora publicizados em versão fac-símile, o autor optou por registrar as esposas com o acréscimo do nome dos esposos e não o de solteira, diferentemente do procedimento de boa parte dos genealogistas, o que pode gerar esclarecimentos a pesquisadores ou confrontar informações sobre laços de parentesco, embora a catalogação de Fenelon não obedeça ao rigor e ao aprimoramento da técnica de enumeração dos dias correntes.

Em “Os Castello Branco ontem e hoje”, tal qual na biografia de “Fenelon Castello Branco”, a leitura é a da curiosidade que anestesia. Agora, pela transmutação do leitor a tempos e a espaços diversos, tendo como acalanto as velhas raízes rurais. Por isso, o livro tem o cheiro, o sabor, o vento e a visão das percepções do mundo rural e de tempos que somente existem na memória, essa fábrica fascinante de subversão da concretude enfadonha dos dias medidos em horas. Nos diversos apontamentos sobre a família, na teia da saga familiar de registrar para a posterioridade a saga dos tempos idos, Homero Ferreira Castello Branco, Herbert Marathaoan Castello Branco, Moisés Castello Branco Filho e Homero Ferreira Castello Branco Neto transformam-se em única voz, a do cotidiano que é a escrita de si, pretensiosamente interessada em segurar as lembranças nas palmas das mãos e repassá-las, o quanto possível, às novas gerações. Assim, o leitor percorre o lugar social dessa família na história, da casa-grande aos postos de poder do mundo cosmopolita, em variados campos da atuação humana, com um “parêntese” extenso para enumerar a grande quantidade de nomes do grupo familiar integrando a Academia Piauiense de Letras.

O leitor, quando além de leitor, emprega a palavra escrita como meio de expressão estética, ou como registro utilitário do tempo e da memória, com ou sem o rigor científico, tem a convicção da excelência de um livro se, diante dele, explode a emoção inesperada e um anseio de posse positiva: “Este livro, eu desejaria tê-lo escrito!”

Parabéns, Dr. Homero Castello Branco, este livro, desejaria ter escrito! Nós, seus pares nesta Casa de Lucídio Freitas e A. Tito Filho, desejaríamos tê-lo escrito.

O mais a ser dito, fica por conta da curiosidade dos leitores.

Muito obrigado!

(*) Dílson Lages Monteiro é literato e pesquisador, titular da cadeira 21 da Academia Piauiense de Letras
  

Oração proferida em 26.10.2019 na sede da Academia Piauiense de Letras, por ocasião do lançamento de “Os Castello Branco, ontem e hoje” e “Fenelon Castello Branco” (edição conjugada), de autoria de Homero Ferreira Castello Branco Neto.
  

Referências:

BURKER, Peter. Testemunha ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: Unesp, 2017.

CARVALHO, Gilberto de Abreu Sodré. Homo genealogicus: gênese e evolução do ser humano socialmente importante. São Paulo: Edição do Autor, 2017.

CASTRO, Valdemir Miranda de Castro. Enlaces de família – uma genealogia em construção (volume I). Esperantina-PI: Edição do Autor/EDUFPI, 2014.

COSTA, Lena Castello Branco Ferreira da. Arraial e Coronel: dois estudos de história social. Cultrix, São Paulo, 1978.

DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.

FERREIRA, Edgardo Pires. Os Castello Branco – a mística do parentesco (volume 5). São Paulo: Línea B Editora, 2008.

________. Os Castello Branco e seus entrelaçamentos familiares no Piauí e no Maranhão (2ª. edição revista e ampliada). São Paulo: Abc Editorial, 2013.

FERREIRA, Homero Castello Branco. Os Castello Branco ontem e hoje/ Fenelon Ferreira Castello Branco (edição conjugada). Teresina: Nova Aliança, 2019.

MIRANDA, Reginaldo. Capitão Francisco da Cunha e Silva Castello Branco. Disponível em https://www.portalentretextos.com.br/materia/capitao-francisco-da-cunha-e-silva-castelo-branco,12977 > acesso em 25.10.2019.   

Fonte do texto: Portal Entretextos

domingo, 27 de outubro de 2019

Seleta Piauiense - Martins Napoleão




Versículos de Salomão

Martins Napoleão (1903 - 1981)

Eu pensava nas coisas eternas:
na essência da verdade e da beleza.

Eu pensava nas coisas eternas,
quando ofereceste a boca matinal
à sede do meu beijo.

(Como posso, Senhor; recusar, sem soberba,
o fruto macio e orvalhado
que a árvore dadivosa atirou aos meus pés?...)   

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A morte beija a mão de nosso senhor Simplício Dias

Fonte: Google


A morte beija a mão de nosso senhor Simplício Dias

Pádua Marques
Romancista, contista e jornalista

Corria um vento levantando folhas secas de cajueiro vindas do rumo do Macacal, do Buraco dos Guaribas e do Testa Branca naquele dia 17 de setembro. Simplício Dias ia morrer daqui a pouco sem muita gente por perto e sem a pompa reservada aos principais do Piauí. Pouca gente havia na rua Grande e lá embaixo no cais do Porto Salgado, mas se via na esquina e na entrada de sua casa de morada um movimento de entra e sai de gente da igreja e alguns poucos conhecidos. Era assim desde a véspera.

Pois na véspera pela manhã Elias veio lhe dizer que umas mulheres da vida queriam ver o benfeitor e lhe pedir a benção já no leito de morte. Dona Isabel Thomásia achou aquele pedido fora de sentido. Uma falta de respeito! Mas por insistência do criado acabou aceitando. Vieram umas seis, muito pias, silenciosas, cabeças cobertas por véus. Simplício até que podia ser perverso, mas nunca perseguiu as mulheres da vida lá embaixo no Porto Salgado e nos Tucuns. A casa há dias já estava vazia e silenciosa, aquele silêncio de casa onde acaba de sair um enterro.

Elias estava se sentindo só. De manhã cedo, olhando com cuidado seu senhor naquela cadeira, próximo da rede e de um penico, Simplício estava com as canelas finas terminando nos pés dentro de um chinelo de couro gasto saindo por baixo do chambre de tecido ruim, os olhos encovados, a cabeça de antes cabelos carapinhos e cor de cobre, agora estava ficando careca. O escravo de confiança lembrava ali perto dele os dias em que precisou ter coragem.

Quantas e quantas vezes a morte veio de tudo quanto era lado e de jeito, faca, pistola, espada. Simplício venceu todas elas, mas agora não tinha como escapulir. Ia morrer. Não levava nada desta vida. Nem o ouro, as pratarias, a louça de porcelana inglesa, as joias valiosas da mulher, das filhas e da igreja feita pelo pai Domingos e que os portugueses de Fidié roubaram um dia quando invadiram a Parnaíba e que depois foram devolvidas.  Voltou pouca coisa, não tudo. Os móveis, o cofre com os poucos tostões da antiga fortuna.

Morreu Simpilição! Simpilição morreu! Foi o que se ouviu no largo da igreja e na rua da casa de morada do dono da Parnaíba naquele meio de tarde. Um negro passou a gritar no rumo dos Tucuns e logo a notícia foi se espalhando pelos imensos caminhos de areia beirando o rio. Tão logo ficaram sabendo, muitos escravos, afilhados e agregados da casa da rua Grande vieram correndo em pranto de choro rezar na igreja do Rosário. Muita gente espantada com aquela notícia tomou as portas das casas humildes. Muita gente triste e muita gente alegre.  

Morreu Simpilição! No Porto Salgado, entre a gente das embarcações atracadas e nas calçadas de armazéns, de repente ficou mais parecendo a Sexta-feira da Paixão. Aquela gente sem nada pra fazer passou a ir pras portas das vendas e ficou bebendo aguardente, fumando, achando graça com a mão na boca e até fazendo pilhérias com o nome do morto. De noite por fim quando se soube de forma oficial da morte em toda a vila, de ponta a ponta, ninguém mais fez nada nos barcos.

Morreu o Simpilição! Se acabou o Simpilição da Parnaíba! E assim já no outro dia, antes de o sol andar quase no meio do céu indo morrer atrás das carnaubeiras de Ilha Grande de Santa Isabel, aquela gente toda veio pra o largo da casa de morada do governador da Parnaíba. Não puderam entrar, mas ficaram ali plantados de longe olhando o movimento antes da saída do corpo pra dentro da igreja. Uns falando das qualidades e da valentia dele como soldado. Outros lembrando passagens boas ou ruins, a fortuna, o luxo exagerado em meio de tanta gente necessitada, os castigos que dava aos escravos de sua casa, as perseguições políticas.

Os mais de dentro, contando políticos e comerciantes da praça e próximos de sua casa, lembravam a caridade com uns poucos, a lealdade e depois a rebeldia com o imperador dom Pedro I e o tino de comerciante, mesmo tendo perdido dinheiro com a insistência de vender carne seca pra Europa quando lá se consumia há tempos linguiça e salsichas da Alemanha, o sumiço da fortuna com um luxo fora de propósito e as mortes do pai Domingos e do irmão Raimundo e o vazio que deixava por não ter sucessores homens na família.

Mas no meio daqueles que se apinhavam na frente dos armazéns, indo no sentido do porto e da alfândega e lá mais longe, havia aqueles que o renegavam e até desejavam que sua alma estivesse àquela hora no inferno. Morreu Simpilição! Morreu, morreu Simpilição da Parnaíba! A família pediu que as cerimônias de encomendação do corpo se dessem mesmo em casa, contrariando o senado da Câmara, que queria que fosse dentro da igreja com toda a pompa a que ele tinha direito.

Mas dona Isabel Tomásia e os outros de casa no íntimo temiam de que poderia haver manifestações exaltadas. A milícia isolou toda a parte de baixo e do lado de cima.  E por fim por volta do meio da manhã saiu quase em que se percebesse o cortejo em direção à igreja. Pouco mais de dez pessoas, contando os carregadores, seis negros vestidos com roupas brancas, calçados e asseados. Atrás do caixão vinham a viúva, a filha, os outros parentes e as autoridades.

O povo no largo da igreja do Rosário e no da casa de morada, rua Grande e arredores pouco teve tempo de ver aquela procissão. Entraram na igreja e as portas foram fechadas. A milícia pouco teve trabalho em deixar afastados os curiosos. No porto a movimentação estava suspensa por ordem do capitão Felismino Botelho, do brigue Cidade de São Luiz, o comandante mais antigo das embarcações atracadas. E assim dentro de pouco tempo a vida e os feitos do senhor da Parnaíba estavam debaixo da terra.   

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

A Zona Planetária - Saturno

Fonte: Google


SATURNO

Elmar Carvalho

Poema épico moderno, inspirado no meretrício Zona Planetária, de Campo Maior, em que procurei mesclar a mitologia greco-romana, a astronomia e a sociologia dos cabarés. Na Zona Planetária cada um dos lupanares ostentava na fachada o nome e a imagem de cada um dos planetas, entre os quais Saturno e seus anéis. Irei, no blog, publicando cada uma das dez unidades desse relativamente longo poema. 

Devorador voraz de pedras
e de filhos, Saturno, o tempo,
tudo consome e consumia,
e esculpe as volutas das rugas
nos vulneráveis rostos dos mortais.
Devorador do que (filhos) produzia
é usina que se retroalimenta
de sua própria (filhos) produção.
Saturno sim, soturno não, nas
saturnais de venturas e alegrias se esbaldou
e a bandeira do gozo e do riso desfraldou.
Os túmidos seios de Ceres, sua filha,
são maçãs e laranjas e suas
orelhas são conchas ou cornucópias
de onde os frutos da terra se espalham.
Do céu expulso, o Lácio habitou,
e na acolhida de Janus e em
seus múltiplos rostos se encontrou.
Nas várias sendas que o báculo
de Janus apontou, os caminhos da
vida palmilhou, e com a chave
de rei e inventor de portas
as muralhas do tédio destrancou.
Na Zona Planetária, Saturno levita
– leviatã imenso e pouco denso –
com sua cortina de nuvens
e de substâncias vaporosas
– vapores de rosas das mulheres
que dependurados nos dedos
os anéis de Saturno conduziam
os anéis que cintos as
cinturas delgadas abraçavam
os anéis que brincos nas orelhas dependurados
eram aros, eram elos, eram Eros.
Por vezes o anel de crepe de Saturno
é dois anéis nos dedos dos viúvos e das viúvas.
Nos anéis de Saturno os elos são rompidos
no simbolismo redundante da falha de Cassini.
A volúpia e a beleza habitam
as tetas tesudas e a popa polpuda
popozuda da potranca deusa Tétis,
satélite de fero/belo/ero movimento.
A subversão e o inconformismo se insurgem
no retrógrado movimento de Febo,
lua rebelada contra as normas do Planetário.
E Saturno, o tempo, a tudo
devora, deteriora e desafia.  

terça-feira, 22 de outubro de 2019

A GALLÁTICA TUTOIA


Antonio Gallas, Vítor Couto e Paulo de Tarso Mendes de Souza, na sede da Academia Parnaibana de Letras - APAL

   

A GALLÁTICA TUTOIA

Elmar Carvalho

Por ocasião da solenidade de lançamento de meu livro PoeMitos da Parnaíba, entre vários amigos, como o prefeito Zé Hamilton, os poetas Alcenor Candeira Filho e Wilton Porto, o jornalista Bernardo Silva, vários confrades da Academia, encontrei Antônio Gallas Pimentel, que conheço desde o início de minha chegada a Parnaíba, no começo da segunda metade da década de setenta. Ele era professor de inglês, jornalista e diariamente uma crônica sua era transmitida pela Rádio Educadora, a mais antiga do Piauí e, então, a única emissora da cidade, através da bela voz do locutor Gilvan Barbosa.

O professor Joaquim Furtado de Carvalho, primo de meu pai, que falava o inglês fluentemente e era um grande causeur, recomendou-me fizesse amizade com o Gallas. Um dia, vencendo a minha timidez de ainda adolescente, fui à sede do jornal Folha do Litoral perguntar se o hebdomadário aceitava colaborações literárias.

Estavam na redação o Gallas, B. Silva e o Xixinó, um grande compositor; bem entendido, compositor tipográfico. Tinha extraordinária habilidade de recolher cada tipo de sua respectiva caixa e colocá-lo no componer, na composição dos vocábulos e períodos. Gallas era professor de minhas irmãs Maria José, Josélia e Joserita. Em acidente automobilístico, em que, entre várias outras pessoas, eram passageiras minhas três irmãs, Josélia veio a falecer.

No dia do seu enterro, o diretor suspendeu as aulas para que os estudantes pudessem ir assistir à missa na catedral e acompanhar o sepultamento. Nesse dia, foi lida na Educadora uma crônica do amigo Gallas, sobre minha irmã, o que muito comoveu a nossa família.

Às vezes, na boca da noite, eu e o B. Silva íamos até a casa dele, para ouvirmos um tangos, pelo rádio, enquanto degustávamos umas três doses de boa pinga. Eram uns belos e vibrantes tangaços, como dizíamos. Um dia o Gallas me convidou a ir até sua residência ouvir uns tangos e tomar umas duas ou três talagadas de calibrina. Para me convencer, como se estivesse falando de uma raridade quase impossível disse: - Elmar, eu tenho até dinheiro!... Verdade que naqueles tempos inflacionários e de vacas magérrimas, dinheiro era um tanto difícil e arredio.

Certa feita, eu e ele fomos ao aniversário do Moreira, meu contemporâneo no Campus Reis Velloso - UFPI, hoje ocupante de importante cargo de carreira jurídica do governo federal. Fui convidado ou me autoconvidei a fazer uso da palavra. Entretanto, na empolgação do discurso terminei chamando o Moreira de Monteiro, ato falho provocado porque um meu colega de turma tinha este último nome.

A mulher do Moreira, me aparteou, e perguntou como é que eu, que me dizia amigo de seu marido, trocava o seu nome. Não me dei por achado, e respondi que o fizera de propósito, para saber se estavam prestando atenção a meu discurso, e, ao mesmo tempo, porque Monteiro se referia a monte, e o Moreira havia atingido a culminância da cultura e do saber. As palmas espocaram e preferi encerrar o discurso nesse momento estratégico.

Já estive com o Gallas na sua bela e histórica Tutoia, outrora importante cidade portuária da região do Delta do Parnaíba. Contemplei as suas lindas praias, como a de Andreza, e a sua exuberante lagoa, ornamentada de coqueiros e outras árvores. Nessas ocasiões, tomei agradáveis banhos nos córregos e rios do percurso.

Certa época correu a notícia de que Tutoia estava prestes a ser soterrada pelas dunas; mas, pelo visto, ela continua impávida e inabalável como a conheci. Sempre que vou a Parnaíba tenho encontrado o Gallas. E sempre na condição de bom amigo, e de mestre de sábias libações.


1º de abril de 2010

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Viajando no Passado pelo rio Itapecuru

Vapor típico que navegava pelos rios maranhenses
Porto de Codó em 1903



Viajando no Passado pelo rio Itapecuru

José Pedro Araújo
Historiador, romancista e cronista

Sempre tive curiosidade de saber como se davam os deslocamentos realizados no passado pelas águas dos rios Mearim e Itapecuru nas viagens de barco. Qual o seu grau de dificuldade, o seu desconforto e, principalmente, o tempo empregado em trechos, como o de São Luís a Barra do Corda, por exemplo, pelas águas do rio Mearim. Quantos dias se levava para ir de São Luís a Caxias, quando ainda não haviam as rodovias, navegando pelas águas do estreito Itapecuru? Pois, outro dia matei a minha curiosidade ao ler uma espécie de diário de bordo escrito pelo piauiense Dr. Araújo Costa, advogado e político radicado em São Luís do Maranhão por volta do ano de 1905.


Para quem costuma reclamar do tempo empregado para ir-se de Presidente Dutra a São Luís, seria muito interessante ler o relato do insigne cidadão publicado na Revista do Norte em 1905, e disponível no site da Biblioteca Bendito Leite. Garanto que se surpreenderia com a dificuldade de cobrir esse trecho que hoje gastamos pouco mais de quatro horas, mesmo com toda a dificuldade de trânsito que possamos encontrar.

O Dr. Araújo Costa embarcou no Vapor “Carlos Coelho” ao cair da noite no Cais da Sagração, antigo porto situado nas proximidades do Palácio dos Leões.  Acompanharam o seu embarque um numeroso grupo de amigos e familiares, como era praxe naquela época. Pela descrição, dava para ver que não havia conforto nenhum naquele tipo de embarcação. Além disso, o calor e as muriçocas importunavam os viajantes durante o dia e a noite. Dormiam em redes, alimentavam-se a bordo da embarcação, e, vez por outra, passavam por contratempos enormes, como quando o vapor encalhava em algum banco de areia e permanecia parado por longas horas naquela situação.


Outra dificuldade encontrada a bordo era na hora de se fazer as necessidades fisiológicas. Ele não fala nem de longe nisto, mas foi a primeira pergunta que me veio à mente. Em uma outra viagem, descrita por um outro aventureiro, quando se deslocava pelo mesmo rio em um barco idêntico ao que viajava o dr. Costa Araújo, o viajante contou as proezas realizadas a bordo da embarcação para se conseguir fazer algo assim. Dizia ele que se fazia uma verdadeira ginástica para se realizar essa necessidade tão comum, e tão desconfortável, quando não se tem um banheiro por perto. Este viajante, por exemplo, relatou que as mulheres usavam uma espécie de empanada com um tecido grosso para protegerem-se dos olhares dos outros embarcadiços, enquanto se aproximavam da amurada e faziam a operação ali mesmo. Nesse instante, jogavam as fezes diretamente nas águas do rio. Era assim ou não era. Não havia banheiro a bordo.

Como já afirmei, o autor da descrição da viagem a bordo do vapor “Carlos Coelho”, não desceu a esse tipo de detalhamento, mas relatou que quando chegava em uma cidade ribeirinha, como Rosário, Cantanhede, Coroatá e Codó, por exemplo, aproveitava a parada do barco e visitava a casa de alguns amigos. Disse ainda, que ali aproveitava para tomar banho e trocar de roupas. Que aproveitavam também para comprar mantimentos e, principalmente bebidas. Nesse momento a embarcação se mantinha parada no cais para receber mercadorias e novos passageiros. Os passageiros, então, como forma também de matar o tempo, empreendiam passeios de reconhecimento pela cidade. Até que o vapor apitava, chamando a todos para voltarem para bordo.

Em outros locais, quando das paradas do vapor para apanhar lenha em pontos previamente acertado, os passageiros aproveitavam para ir em busca de alguma moita para se aliviarem, e até mesmo tomar banho, ou simplesmente desciam para movimentar as pernas.

 Enfim, não era propriamente uma viagem cercada de confortos, mas afiançou o nosso viajante que o tempo a bordo era aproveitado para conversas com alguns amigos que também viajavam na mesma embarcação, e nessas ocasiões tomavam vinhos e outros tipos de bebida qualquer. Havia até mesmo um passageiro, o empresário Oeirense Coronel Luís Rego, que transportava seis vacas leiteiras de raça na embarcação. E essas vacas forneciam leite em quantidade para os passageiros diariamente. No café da manhã podiam contar, portanto, com leite fresco retirado das tetas das vacas momentos antes.

Finalizo o presente texto dizendo que o Dr. Costa Araújo iniciou a sua viagem, como já afirmei algumas linhas acima, dia 17 de julho, e somente chegou a Caxias, onde pretendia tomar o trem para Timon, à margem do rio Parnaíba, no dia 25 de julho, às 21:00 horas. Convenhamos que uma viagem dessas era coisa para se pensar bem antes de realizar. Arremato, a presente arenga, dizendo que havia um contínuo trabalho de limpeza do rio, em especial para remover os troncos das árvores que caiam e entupiam o seu leito, dificultando a passagem dos vapores. E que as viagens somente eram realizadas no período da estação invernosa, quando as águas do rio se elevavam e permitia o trânsito de embarcações. De janeiro a julho, portanto. No restante do ano era impossível transitar pelo rio, a não ser em canoas ou afins.     

domingo, 20 de outubro de 2019

A Zona Planetária - Júpiter

Fonte: Google/Uol 


JÚPITER

Elmar Carvalho

As espirais vaporosas da nicotina
do éter das libações embriagantes
e dos vapores de rosas das mulheres
enovelam-se pelas amplas alcovas
onde o sexo ardia
            na pira sagrada
            na pira pirada
dos amores lascivos
de espasmos e gemidos
grunhidos e rugidos
e deixavam entrever
os vultos lânguidos e lascivos
onde as grandes luas de Júpiter
descreviam suas órbitas
nos colos aconchegantes
das mulheres afagadas
afogadas em desejos despertados.
Grande Júpiter tonante
a rugir nos alaridos
das tempestades do sexo
das paixões desenfreadas.
Quando a irmã Juno
ao incesto arrebatava,
o reinado da desordem
sem fronteiras dos malditos
aos quatro ventos proclamava.
Então, ao revés do antigo Mito,
a Quimera nascia das patas
e asas de Pégaso    pelos pélagos
cavalgado pelas Musas –
cavalo alado do sonho que
sonhava, do sonho de que
jorrava a fonte de Hipocrene.   

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

TRIBUTO A DOIS AMIGOS (*)

Carlos Cardoso e eu, numa das traves do Estádio Deusdete Melo, onde atuei como goleiro, algumas vezes, em minha adolescência.



TRIBUTO A DOIS AMIGOS (*)

Elmar Carvalho

Estive hoje no escritório de contabilidade de meu amigo Carlos Cardoso. Conheço-o desde a nossa adolescência. Quando o conheci, no início da década de 70, ele era vizinho de seu primo, o Otaviano, meu amigo e colega de turma no velho Colégio Estadual, quando fazíamos o terceiro ano do antigo ginásio. Moravam perto do Centro Operário de Campo Maior.

O Otaviano era nosso líder no futebol. Foi ele quem nos iniciou na prática do esporte de arremesso de copo, por outros chamado de libações etílicas. Passados tantos anos, lembro vagamente que foi numa noite, por ocasião dos festejos de Santo Antônio do Surubim, numa mercearia, salvo engano, da chamada rua da pista. Foram umas largas talagadas de Ron Montilla.

O Carlos engasgou-se com uma dose, e o Otaviano passou-lhe umas duras reprimendas. Mais adiante, já no centro da cidade, ri não sei por que motivo ou mesmo talvez sem motivo; ele aborreceu-se, naturalmente achando que aquilo era uma “mancada”, o que denotaria a ingestão de álcool. Pouco tempo depois, o Carlos, seus irmãos e seus pais foram embora para Fortaleza, e o perdi de vista por algumas décadas.

Quando vim assumir meu cargo de fiscal da extinta SUNAB, em agosto de 1982, voltei a encontrá-lo. Amigo fraterno, convidou-me para morar em sua república, na avenida Jockey Club, em Teresina. Não era uma república de estudantes, onde imperasse a bagunça e a baderna; ao contrário, ali havia ordem e organização, com divisão de responsabilidades administrativas, financeiras e de tarefas. Moravam com ele dois administradores postais da ECT, o Humberto Nadal, paranaense, e o Robério, cearense, hoje juiz do Trabalho. Depois o Carlos deixou a república, em virtude do casamento, e eu nela continuei por mais alguns anos, até perto de meu casamento em  meado de 1985.

Ingressei na maçonaria a convite do Carlos e de seu irmão sanguíneo, Zé Ataíde, que também conhecia há muitos anos. Posteriormente, nós três e mais um punhado de irmãos valorosos fundamos a Loja Hiram Abib nº 3069, filiada ao Grande Oriente do Brasil – PI, da qual o Carlos foi o primeiro venerável. Meses atrás o Carlos nos pregou um grande susto, quando, perto de um infarto, foi submetido a intervenção cirúrgica, e teve que receber três pontes de safena e uma mamária, em virtude de herança genética, segundo o histórico familiar.

O Otaviano não deixou por menos, e, ao telefone, passou-lhe outra dura repreensão, e disse-lhe que não admitia que, na qualidade de primo e amigo mais velho, o Carlos lhe tomasse a dianteira, e construísse três pontes de safena e uma mamária antes dele; aquilo não estava certo e era uma tremenda injustiça que o primo mais moço lhe fazia.

Nesse ponto, devo esclarecer que a alegada diferença de idade é de apenas um ano. Contudo, dias depois voltou a ligar, e disse que já estava reconciliado com ele, pois adquirira uma hipertensão arterial, e pelo menos nisso o Carlos não lhe levara a palma e nem os louros da vitória.

Claro, tudo isso era uma brincadeira do imperador Otaviano, e uma maneira peculiar, toda sua, de animar e alegrar o primo e amigo. O certo é que, benza-o Deus, o Carlos está muito bem, e a “indesejada das gentes”, no dizer do poeta Manuel Bandeira, terá que bater em outra porta.  

31 de março de 2010

(*) Por coincidência, se é que existe coincidência e acaso, encontrei ontem (17/10/19), na loja J. Monte, o José Francisco Pinto, que procurava reencontrar há alguns meses, sem êxito. Conversamos sobre o Otaviano Furtado do Vale, nosso amigo comum. Quando fui republicar hoje a sequência de meu Diário Incontínuo, o texto da vez era este, em que evoco o saudoso amigo Otaviano e o seu primo Carlos Cardoso. Ao conversar agora, por telefone, com sua irmã Cristina do Vale e Silva, soube que ontem era o dia do seu aniversário, posto que ele nasceu em 17 de outubro de 1956, mesmo ano em que nasci. E no próximo mês de novembro, no dia 19, será o sexto ano de seu falecimento, uma vez que sua morte precoce aconteceu em 2013, no mesmo ano em que tive várias perdas, inclusive a de minha inesquecível mãe, Rosália Maria de Mélo Carvalho.