A santa casa dos horrores
Pádua Marques
Romancista, cronista e contista
Pedro Firmino Pedrosa, de Água
Doce, no Maranhão. O homem de estatura baixa, cabelos encaracolados, olhos
agateados e com sinal de ter feito uma viagem comprida, estava acompanhado de
um menino de seus oito anos, magrinho, e que estava vestido de calção curto,
uma camisa de chita de mangas compridas, calçado de tamancos e carregando no
ombro uma trouxa de pano, falou em voz baixa, mas firme, olhando pra moça muito
feia e miúda que estava atrás de uma mesa grande e escura e que sem muita
vontade ia anotando tudo, quase sem levantar a cabeça.
Era pouco mais do meio do dia,
hora do almoço e da oração das freiras. Estava o homem vindo do Maranhão e o
menino seu filho, de nome Estevão, na sala pequena e baixa da Santa Casa de
Misericórdia naquele dia 12 de março de 1936. Os dois fizeram uma viagem
difícil e cheia de atropelos, um dia e meio de canoa, suportando noite e frio
da madrugada, sem colocar uma coisa de comida na boca que fosse até saber de
alguém mais entendido na Parnaíba sobre o que o menino estava sofrendo e que os
remédios caseiros de sua avó Paulina e até pajelança de índios não conseguiram
descobrir do que se tratava.
Estevão havia tempos aparecido
com umas manchas escuras pelo corpo, nas costas e entre os dedos das mãos e
agora aquilo já incomodava. Era o terceiro de cinco filhos daquele pescador de
caranguejos vindo do Maranhão. O jeito era vir bater nas portas de Parnaíba.
Pedro Firmino mal sabia que dentro de pouco tempo seu filho seria separado
dele, da mãe e dos irmãos e nunca mais voltaria pra sua terra. Estevão seria
pra os médicos da Santa Casa de Misericórdia, um leproso.
Pedro Firmino enquanto esperava o
médico pra ver o menino, ficou olhando aquele movimento de começo de tarde no
hospital. E o menino ali, atrás dele, rente às suas pernas, triste, cabeça
baixa, os olhos distantes e como se pedindo alguma coisa, um gole de água, um
pedaço de bolo. De lá do fim do corredor de piso de tijolos claros, mas
encardidos, veio um gemido alto. A moça feia disse que era de uma criada que
havia se queimado ou foi queimada pela dona com uma panela de água ou de angu
quente. Falou que era pra doente ficar calma, que doutor estava chegando.
Numa das quatro enfermarias
estavam uma mulher, de seus quase quarenta anos de idade e o filho rapaz de uns
vinte, cobertos dos pés à cabeça, se vendo de frio. Aqui e ali tossiam e
colocavam a cabeça pra fora da rede pra cuspir dentro de um penico de esmalte.
Os dois chegaram fazia tempo do Ceará, região de Camocim. Estavam
enfraquecidos. Pedro e o filho foram caminhando pelo corredor e mais lá na
frente, onde a sala se abria num largo, estavam dois negros deitados em redes.
Um deles, o mais jovem, fez menção de conhecer o pescador, mas se conteve. O
outro não deu importância às visitas e voltou a dormir.
Os dois estavam ali internados
depois de uma briga feia que virou a região do Cheira Mijo, nos Tucuns, de
cabeça pra baixo por causa de uma briga por uma mulher da vida quando à custa
de faca ou navalha o mais novo colocou as tripas do mais velho pra fora. Mas o
negro valente e mais novo saiu da briga com uma pancada de cacete no meio das
costelas. Tão logo melhorasse ia ser
interrogado e preso. Pra isso tinha ali perto um soldado de prontidão, que por
falta do que fazer estava olhando o chão sem encontrar nada que fosse.
Perto deles estava outro doente,
homem de pouco mais de cinquenta anos, gemendo muito, escuro, barba ficando
branca, nu da cintura pra cima. Tinha uma enorme ferida em carne viva na altura
do peito esquerdo. Tinha sido vareiro no rio Igaraçu por mais de trinta anos.
Sabia que ia morrer. Do lado e embaixo da rede havia um penico encardido cheio
de sangue pisado.
Estevão caminhou um pouco à
frente, curioso pelos gritos que vinham de dentro de uma sala nos fundos da
outra enfermaria, à esquerda. Pedro deixou que se adiantasse e o seguiu de
perto. Lá chegando viram um homem muito pálido, de olhos fundos, quase nu,
gemendo e chorando, se contorcendo de dores. Era tanta dor que pedia pra
morrer! O pescador de Araioses acompanhado do filho, este coberto de medo,
arriscou saber do que era aquele mal, porque tanta dor que ninguém dava jeito.
A mulher ao lado, gorda e de
cabelos negros e lisos disse que o marido havia sido esporado por uma arraia
numa pescaria de lagoa na Barra do Longá. Haviam chegado um dia antes. Doutor
Cândido já havia visto o estrago e o calcanhar estava muito inchado. Só Deus
podia livrar aquele coitado de ter o pé cortado. O que seria da vida deles, meu
Deus? Só Deus e Nossa Senhora pra dar jeito!
A Santa Casa de Misericórdia de
Parnaíba ficava num largo campo de areia solta entre o Alto do Cemitério e os
Tucuns, de terreno pantanoso e baixo pra os lados do Igaraçu. Muita gente não
gostava de passar perto. Aquelas terras pertenceram tempos atrás ao malvado,
soberbo e ranzinza coronel Pacífico da Silva Castelo Branco, morto há quase
cinquenta anos. Diziam os mais velhos que ali naquele imenso terreno foi
senzala de uma de suas fazendas e que as lembranças davam que muito negro
morreu maltratado.
Quando coronel Pacífico morreu em
1889, na sua fazenda de Buriti dos Lopes, veio de canoa o corpo pra ser
enterrado em Parnaíba, mas muito inchado, pesado, já fedendo, acabava caindo da
embarcação, mas era trazido de volta pelos seus escravos. Contavam também que
quem passasse do lado do hospital, naquela escuridão tamanha, ouvia uns cinco
assobios de arrepiar dos pés à cabeça e que iam se distanciando e se via uma
ponta acesa, igual se alguém estivesse fumando um charuto. Pedro e Estevão
continuaram andando pelo hospital sem que ninguém incomodasse.
A moça feia da entrada estava
ocupada demais com quem estivesse chegando ou preparando a sala do doutor, que
dentro daquela tarde iria fazer as consultas. Da enfermaria das mulheres que
acabavam de parir veio um choro de menino novo. Logo na entrada estava numa
cama baixa, acompanhada do marido, uma moça, quase menina, de seus dezessete
anos. Seria mãe do segundo filho e pelo que contou o futuro pai, ouvido dos
médicos, a criança estava atravessada na bacia. Pelo visto a mãe ainda haveria
de sofrer muito.
Passaram por um corredor e viram
um menino de seus doze anos com o rosto todo encalombado, deformado, parecendo
um bicho, um lobisomem. Coisa de meter medo. A mãe disse preocupada e triste
que tudo aquilo era coisa de malinação. De brincadeira no mato com uns
pariceiros. Assanhou uma casa de abelhas, no Macacal. Pai e filho, Pedro e
Estevão olharam aquilo e saíram de cabeça baixa e foram pra frente da Santa
Casa olhar o movimento da rua. Se não desse pra serem atendidos daqui a pouco
seria melhor esperar pelo outro dia. O jeito era procurar um lugar pra comer e
dormir.
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