Cunha
e Silva Filho
(Re)presa
Dílson
Lages
A
água debaixo da ponte
agita-se
com o reflexo do céu
e
devora a noite
tecendo
o rio de estrelas
Debaixo
da ponte
os
lábios das margens
molham-se
de delírios
e
os lírios olham a imensidão.
Debaixo
da ponte
o
corpo da água escorre
entre
os dedos de concreto
e
esbarra no beijo da vegetação.(1)
O
poema faz parte de um tipo de leitura: a releitura, a volta ao
princípio do poema, tantas vezes quanto necessárias - condição
primordial de o leitor ou receptor fruir sua validade de arte e de
beleza. Um poema, e aqui falo daqueles nos quais sentimos o dedo da
consciência da composição, das exigências do ofício de produzir
a emoção estética, de comover e também de fazer refletir tanto ao
nível de suas imagens provocadoras quanto de apreendermos o que
delas possamos extrair como sentido da vida, da natureza, dos homens
e dos objetos que constituem a materialidade e a espiritualidade do
universo.
A
realidade do poema se contém nele mesmo. Vale por si mesma, graças
ao caráter poético de sua função básica e imprescindível, de
jogar com os artifícios da linguagem elevada ao nível criativo, à
vontade firme de não se repetir como invenção, mas de se realizar
com novos sentidos, se possível, de forma original, que é o
objetivo principal da literatura, seja na ficção, seja na poesia,
na peça teatral considerada na sua forma escrita.
O
poema “Re(presa)”(2) de Dílson Lages como peça literária se
comporta segundo os pressupostos assinalados nos parágrafos
anteriores. O poeta, como qualquer artista, seleciona aquilo que, de
repente, logra captar como matéria de poesia, como motivação
inescapável do que lhe vem consciente ou inconscientemente através
da sua percepção visual ou intelectiva ou mesmo por associações
de ideias que vão formando, pela linguagem, estruturas
imagéticas naquele instante apreendidas e formalizadas segundo um
tema, uma provocação externa que o impressiona e o mobiliza para o
ato da escrita. Ou seja, a poesia se instaura no seu espaço
específico através da passagem da matéria prima, a vida, a
paisagem, o rio, para o estado modificado pela injeção do
componente lírico, universo dos sentimentos, locus da linguagem como
invenção, não mais como reprodução mimética. Aí se instala o
poético na sua virtualidade e na sua materialidade gráfica. O poema
se corporifica e assume sua independência de fôrma literária.Está
pronto para ser lido e no leitor despertar a emoção, um sentido, um
dado existencial.
No
caso particular do poema comentado, o objeto visual, concreto é uma
“represa” lexema manipulado quanto à sua morfologia e sua
semântica. Para alcançar este objetivo
estético-composicional, o poeta desarticula aquele lexema, e o
divide em dois sentidos, no que tange ao elemento "água:"
a) o do elemento liquido preso às margens, i.e., à lateralidade e
sua fluidez contínua, horizontal ou, por vezes, irregular
em direção ao mar; b) o mesmo elemento, visualizado, no seu fluir
descontínuo, levado pela mão do homem e dos recursos da ciência, a
uma espécie de vida líquida dependente e limitada nos seus
movimentos e na forma que assume seu curso artificial, o qual só
existe pela necessidade de ser repositório d’água. O rio torna-se
símbolo da liberdade, enquanto a represa é um estado líquido em
estado de escravidão, dependente sempre da potência da decisão
humana.
O
poema se compõe de doze versos, distribuídos em três
estrofes, de quatro versos cada uma. No primeiro verso, o
poema apenas descreve o espaço de seu todo, no qual o lirismo ainda
não se faz presente; já no segundo verso, o elemento-núcleo do
poema, "água,"metonicamente, equivalente a "rio" já
principia seu movimento em direção às alturas, em cujo limite está
um céu noturno e estrelado, pronto, assim, a gerar metáforas,
comparações e, por conseguinte, lirismo subjetividades,
desvios semânticos. Ou seja, o poema vai adquirindo sua energia
interna, sua potencialidade lírica, sua opacidade formal de
construção no campo sintagmático.
O
fluir da água, na sua aparência visual noturna de calmaria, sofre
uma transformação, “agita-se," forma verbal que de certa
maneira concede ao líquido um espaço de visibilidade provocada pela
claridade das estrelas. Esse agitar-se da água tem algo já de
características humanas,tanto assim que se comporta
antropofagicamente, “devora” a “noite”(ausência de
iluminação, que na dicção simbolista, exprime “dor”, “luto”
(3) a fim de, pelo reflexo da luz das estrela, formar um novo
rio, nessa bela imagem aliterante e ao mesmo tempo humanizada
constituída pelo quarto verso da estrofe inicial: “tecendo o rio
de estrelas.”. Veja-se que o lexema “estrelas”, reportando-se
ainda na linguagem do Simbolismo, à cor, remetendo à luminosidade,
claridade, brancura e, portanto, “pureza”, “virgindade”(4)
.
Anote-se a presença da vogal anterior “e”,
vogal recorrente na primeira estrofe e, além disso,
com força aliterante reforçada pelo fonema fricativo, alveolar
surdo, graficamente figurado pelas sílabas -cen-, as-, es- e -as.
Esta camada fônica é expressiva à medida em que o verso adquire
conotações ligadas às ideias de suavidade, de ação espontânea,
feita com o requinte e a habilidade artesanal, que muito bem poderia
equiparar-se ao trabalho intelectual do fazer poético, ato de
metamorfose, de desvio de formas, de recriar sentidos, de mostrar
perspectivas, de indicar planos diferentes visuais, tácteis,
sonoras, enfim, sinestésicos.
A
expressão adverbial locativa, à maneira de uma anáfora,, “debaixo
da ponte”, que aparece quatro vezes, simboliza o lugar de passagem,
assim como conota uma ideia de obstáculo, ponto intermediário entre
duas situações distintas que, no caso das águas de uma represa, o
curso do rio vai sofrer alterações de volume e de mudança da
natureza e ambiente.O rio que se desvia para a construção de uma
represa, uma barragem, é um rio que perde parte de seu curso d’água,
do seu movimento normal.
Na
segunda estrofe, a imagem surgida compõe-se de um lexema pertencente
ao homem , “lábios,” integrando uma outra metáfora relativa ao
núcleo temático, o rio, desdobrado em todos as suas partes
materiais e naturais, como "margens",
"vegetação". Neste ponto, as metáforas aí estão
representadas pela segundo e terceiro versos, formando um
cavalgamento (enjambement)
perfeito e ainda, sinestesicamente, corroboram a natureza humanizante
que sustenta a significação geral do poema.
Observe,
atentamente, uma série de consoantes laterais, o “l” e o “lh”,
respectivamente, fonemas alveolares e palatais. De resto, nesta
estrofe há uma espécie de combinação de uma série dos
mesmos fonemas que resultam num efeito gualmente aliterante,
revigorando a dimensão fônico-expressiva entre o tema e a forma. Os
lexemas relativos ao corpo humano se acumulam até ao desfecho do
poema.
Para
os parnasianos,(5) a consoante “l” e o grupo consonantal “lh”
designam sonoramente estados “brandos e melífluos.” A consoante
“l” já se classificou outrora como líquida, assim como “r”
e “m.”O grupo consonantal “lh”, igualmente já teve a
classificação de lingual-palatal molhada. Tais fonemas podemos
considerar associado ao conceito de “fluidez das palavras”.
Segundo Bachelard (1884-1962) (6) “a fluidez da palavra é, para
nós, o desejo mesmo da linguagem.” Mais adiante, Bachelard
assinala: “A linguagem quer fluir. Ela flui naturalmente. Seus
sobressaltos, suas pedras, suas durezas, são ensaios mais factíveis,
mais difíceis de naturalizar.” Da mesma forma, esse filósofo
falando da “imaginação criadora”, acentua: “Ora, a imaginação
reprodutora mascara e impede a imaginação criadora. Finalmente, o
verdadeiro campo para estudar a imaginação não é a pintura, é a
obra literária é a palavra, é a frase.” Neste caso como a forma
é pouco! Como a matéria comanda. Que grande mestre é o rio!” (7)
Ocorre,
ademais, aí o seguinte: partes do corpo humano(como
"lábios") se aliam a elementos inanimados, concretos
ou mesmo abstratos, por exemplo, "lírios"
“margens, "ponte", "imensidão"(segundo verso,
segunda estrofe). O terceiro verso da mesma estrofe, “molham-se de
delírios” reitera o aspecto humanizante através do lexema
“delírios”, termo da mesma forma, abstrato, o
qual remete a um estado de sensualismo da linguagem. Novamente
ai o dado do corpo e dos sentidos se associa ao inanimado:
"margens", "vegetação".
Como se
fora num olhar partindo das margens, o quarto verso final da estrofe
reforçaessa presença do corpo através do verbo “olhar”, i.e.,
agora parte da perspectiva das margens, por intermédio de um
elemento inanimado, concreto, “lírios, ” mediante a
estratégia da consciência técnica do poeta em desarticular do
lexema “delírio”, outro lexema “lírio,” num expediente de
palavra puxa—palavra através do recurso da contiguidade dos
lexemas e sobretudo pela carga rimático-sonoro-estilística que daí
advém e , de outra parte, pelo esvaziamento do sentido de estado de
desequilíbrio em troca de uma imagem positiva , harmoniosa e visual
e tactilmente bela, senão pura, expressa pelo lexema “lírios em
verso lapidar: “E os lírios olham a imensidão”( quarto verso da
segunda estrofe. De resto, o lexema “imensidão” aponta para dois
lados: para o espelho d’água , o “rio” e para um outro “rio”
metaforizado no último verso da primeira estrofe.
Na
terceira e última estrofe, completa-se o desdobramento do poema,
tornando-o uma unidade de sentido e de peça literária acabada nos
seus recursos poéticos e linguístico-semânticos. Empregando os
mesmos instrumentos retóricos, quer dizer, a formação de imagens
ou metáforas fundindo partes que formam o ser fisco do homem, em
imagens, como pudemos ver, que antropomorfizam o inanimado, presentes
elas em todo o poema e, agora, culminando com o todo, sinalizado pelo
lexema “corpo”, “dedos” e “beijos”, já mencionado este
último na segunda estrofe, os versos finais atestam a capacidade
descritiva do da voz lírica no desenho físico e humano, na sua
beleza e nos seus óbices, aqui imageticamente figurado pelas águas
“escorrendo” entre as pilastras da ponte (“os dedos de
concreto”) em direção limitada pela vontade do homem e da técnica
da engenharia, na transformação de elementos naturais – o rio, a
vegetação, as matas, o meio ambiente em si por imposição de novas
necessidades de satisfazer o homem, predador e vítima a um só
tempo. Sinal do crescimento urbano, demográfico, gerando mais
energia e desfigurando ou arrasando a ecologia com todas as sequelas
civilizatórias.
O
poema “(Re)presa” se insere literariamente naquela tendência ou
vertente da poesia brasileira contemporânea em que ao poeta cabe a
escolha livre e independente de sua criação, fora já dos "ismos"
datados, mas ancorada na modernidade e na ousadia da imagens que,
renovadas e aprendidas nas fontes dos que lhe antecederam consegue
fazer poesia optando pela linha que vem sendo perseguida desde os
tempos mais recuados da tradição literária. Num capítulo de
título “Futuro da poesia”, de um livro que agora estou lendo, O
que é literatura?,
de José Veríssimo (1857-1916), não hesito em afirmar que o velho
crítico adversário de Sílvio Romero (1851-1914), tem realmente uma
visão certa e profética da perenidade da poesia como genro,
conforme o leitor pode ver de suas palavras finais: "É o que
creio também, e nos meus escritos, tenho sempre sustentado. Escolas,
tendências, modas, passam; ela[a poesia]fica, invariável na
suaessência, não
obstante a diversidade da sua forma...”(grifo meu). (8)
Notas
bibliográficas:
(1)Poema
postado no site Entretexto.
Acesso : www.portlaentretextos.com.br
(2Na
análise proposta farei a leitura do poema no sentido de ‘represa”,
conquanto não disponha de uma informação factual mediante a
qual provavelmente o poeta tencionou realizá-lo. A desarticulação
do vocábulo, entretanto, abre espaço para esta possibilidade.
Questão de visão do ensaísta, sobretudo no domínio da “imaginação
poética."
(3)LIMA,
Rocha. Gramática
normativa da língua portuguesa.
27 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1986, p. 464-465.
4)Idem
,.ibidem.
(5)WEY,Válter. Lingua
portuguesa.
Terceira série. Curso colegial. 6 ed. São Paulo: Editora do Brasil
S/A, 1963, p. 159.
(6)In:
QUILET, Pierre (org.). Introdução
ao pensamento de Bachelard.
Rio de Janeiro: Zahar Editores. . Trad. de César Augusto Chaves
Fernandes, 1977, p. 191. Remeto o leitor desejoso de dispor de uma
síntese excelente sobre o pensamento de Gastón Bachelard,
consultando MELO E SOUSA, Ronaldes de. Epistemologia e
hermenêutica em Bachelard. In: 90 Reflexão
e participação/2
, 25 anos. Tempo Brasileiro, julho – setembro de 1987, p. 47-93.
(7)
idem, ibidem, p. 192.
(8)VERÍSSIMO,
JOSÉ. O
que é literatura?
e outros ensaios.. Introdução de João Alexandre Barbosa. São
Paulo: LANDY Editora, 2001, p. 51.