domingo, 31 de maio de 2020

Seleta Piauiense - Jamerson Lemos




Soneto da Terça

Jamerson Lemos (1945 – 2008)

quando você se entristece
uma coisa qualquer se me entrista.
um gole de rum a mais que eu insista
é coisa pouca e você não esquece.

quando, porém, se nada teça
vida minha e pobre de artista
você me toca e me diz: desista
meu bom amor, amo-te na terça.

muito bem, tento-te de novo
alma de pombo, espírito de corvo,
sobras-te-me na estação.

volvo-me a ti amor em praia,
soluço de sol, sal de caia —
da casa. só a luz e verão.


Fonte: Escritas.org 

sábado, 30 de maio de 2020

O CÃOZINHO DE WUHAN




O CÃOZINHO DE WUHAN

Antônio Francisco Sousa (afcsousa01@hotmail.com)

Quer dizer que somos seres racionais
porque temos razão, o que não têm outros animais?
Parece algo pífio, digamos assim, insuficiente,
para nos tornar a única espécie de ser inteligente.
Temos tido dos ditos bichos irracionais,
de um deles, a propósito, nestes dias anormais,
impressões das melhores possíveis, especiais;
sentimentos, emoções, coisas não banais,
que nos deixaram, um bicho-homem, pobrezinho,
talvez, bem mais que isso, um coitadinho,
se comparado a Xiao Bao, o cãozinho de Wuhan;
para o qual, e a essa vida tão malsã,
esperava ver devolvido seu bem-amado,
que entrara no hospital para ser curado;
isso, depois de longa e triste espera,
que, só para ele, não fora uma quimera.
Não lhe contaram porque não entenderia,
mas seu querido dono, fazia dias, havia partido,
deste mundo louco, animal, talvez desistido.
Como não lhe convenceram de que morrera,
ficaria ali, por certo, para sempre: a vida inteira.
Dor, frio, tudo bobagem de pouca valia;
fome ou sede? Que eram elas diante do que sentia
cada minuto, daqueles longos meses de monótona agonia,
em que lhe negaram notícias dele, dia após dia?
Andando de um lado para outro, ora chorava, ora corria;
se fosse um da tal espécie racional, aconselhá-lo-iam:
volte para casa, meu caro, vá descansar: diriam.
Por outro lado, é bem possível que se o doce animal,
se metamorfoseado de homem, este ser excepcional,
há muito teria abandonado aquele lugar
em que vira seu querido dono nele, somente entrar.
Se pudessem entender o triste cãozinho,
dele ouviriam, certamente: como deixar sozinho
alguém que comigo veio, ali entrou, e não o vi sair?
Porque dependemos um do outro, ficarei aqui.
Não posso largá-lo, entregá-lo à própria sorte;
vocês que inventaram que tudo acaba com a morte.
Como vejo a vida sob prisma irracional,
dir-lhes-ia: o homem que trouxe a este hospital,
é meu companheiro de estimação, um amigo leal.
Não é justo abandonar a quem se quer tanto bem.
O amor não acaba em nós mesmos: vai mais além.
Que história é essa, pois, de que são irracionais
seres puros como Xiao Bao, amigos tão especiais,
que se raciocinassem, como só homem diz que faz,
arguiriam: então, são esses os pobres e tolos animais
que se arvoram e se intitulam únicos seres racionais?  

LUÍZA AMÁLIA, UMA CAÇADORA DE IMAGENS


Elmar e Socorro Meireles, numa das fotografias feitas por Luíza Amália

LUÍZA AMÁLIA, UMA CAÇADORA DE IMAGENS

Elmar Carvalho

Por e-mail, recebi da Luíza Amália Meireles, amiga dos tempos parnaibanos, várias fotos do lançamento do livro “O que os netos dos vaqueiros me contaram – o domínio oligárquico no Vale do Parnaíba”, de Manuel Domingos Neto, a que já me referi, na nota anterior. Ela, mercê de seu esforço e através de concurso público, é auditora-fiscal da Receita Federal.

Cultiva o hobby da fotografia, assim como seu irmão Meireles, chamado pelo Reginaldo Costa de “santo”, exatamente pela sua quase beatitude e mansidão de pessoa boa. Na fila dos autógrafos, fiquei imediatamente atrás de sua irmã Socorro, que ocupa uma das diretorias da Secretaria Estadual da Educação. Tanto o Meireles como a Socorro ajudaram o jornal Inovação em sua luta quixotesca por um mundo mais justo e mais fraterno.

Numa das vezes em que a Luíza me fotografava, um amigo ficou na frente da mira para me cumprimentar. Este fato me fez lembrar das lendas dos caçadores, muitos deles versados em mistificações hiperbólicas, que muitas vezes, quando estão concentrados na pontaria, são atrapalhados por alguma circunstância fortuita ou por alguma assombração protetora dos animais.

Encontrei na solenidade o teatrólogo e intelectual Tarciso Prado, quase totalmente recuperado de um grande susto que levou, quando um infarto lhe pregou uma peça – sem trocadilho dramatúrgico nenhum – da qual saiu ileso. Quando cheguei, conversava ele com o arquiteto Olavo Pereira, cujo livro sobre arquitetura piauiense o Tarciso considera como um dos melhores no gênero.

Olavo é parente de vários amigos meus e do saudoso Francisco Pereira da Silva, natural de Campo Maior, um dos maiores  teatrólogos do Brasil, cuja obra completa foi recentemente editada, pela FUNARTE, órgão do Ministério da Cultura. Há cinco anos existe uma lei estadual prevendo a criação de um memorial em homenagem ao Chico, mas, por mistérios insondáveis, que nem uma sibila seria capaz de explicar, não construído até hoje.

Mas por que mudei tanto de assunto e de modo um tanto abrupto, em texto tão curto, é um mistério que nem eu mesmo sei explicar, a não ser fazendo uma analogia com o título deste registro: Luíza Amália é uma caçador de imagens, e eu sou um caçador de assunto e de conversa.

4 de maio de 2010  

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Pregado de panela




Pregado de panela

Pádua Marques
Romancista, cronista e contista

Agora era descer de vez daquela canoa e esquecer o que havia ficado pra trás. Estava na Parnaíba, terra onde ouviu dizer que corria dinheiro, tinha movimento e mais gente, onde podia estudar e seguir carreira num emprego bom sem ter que bater cabeça o resto da vida. E estava trazendo uma carta de recomendação de Benedito Cordeiro, amigo e compadre de seu pai, pra ser entregue a seu Zeca Correia, dono do Moraes, dono de carro de passeio e até de navio.

Se Deus quisesse havera de se arranjar num emprego naquela fábrica de sabão e de óleos. Se não desse no Moraes, que pelo menos fosse nalgum armazém na rua Grande ou nas próximas, aquelas ruas onde tinha mais comércio. Mas se também não desse, que fosse alguma colocação mais embaixo, porque depois e com muito trabalho, cuidado e coragem, iria chegar mais perto da porta de um escritório e de lá pra dentro era coisa de um pulo. Martinho Cardoso era de pouca leitura, mas era esperto.

Do porto Salgado com todo aquele movimento de início de tarde, Martinho foi direto pra uma pensão perto da igreja de Nossa Senhora das Graças e de lá se avistava também a igreja do Rosário dos Pretos, vizinha do Hotel Parnaíba, algumas casas de comércio, outras pensões e o Banco do Brasil. A pensão Nossa Senhora dos Remédios, de um velho de Buriti dos Lopes, Chagas Caetano, era pequena, mais barata que o Hotel Carneiro. Tinha uns seis quartos, um salão maior com mesas e cadeiras pras refeições, um banco com dois potes e seis canecos, uns quadros de santos e uns tamboretes espalhados pra quem quisesse  se sentar.

Depois de ser atendido na entrada por um rapazinho de uns quinze anos, de rosto azeitado e já apontando uma nuvem de bigode, Martinho foi informado que a dormida era em rede.  E ele trouxe a sua, larga e limpa, dois lençóis, pijama, três calças, cinco camisas, um paletó, seis cuecas, toalhas de rosto e de banho, pão de sabonete, escova de dente, uma flanela e escova pra lustrar os sapatos, dois pares de meias, pente de chifre, um potinho de brilhantina e uma navalha pra fazer a barba de vez em quando.

Martinho foi ver a cozinha lá no fundo de um corredor na esperança de encontrar ainda naquela hora alguma coisa pra comer. A canoa vindo de Araioses atrasou e o desembarque no porto Salgado foi demorado. Não queria ainda meter a mão nas economias por pouca coisa, tinha que regatear comida barata.  Os quartos, àquela hora da tarde, estavam com as portas abertas devido ao calor e ele viu outras pessoas, umas falando baixo. Num dos quartos um velho estava cochilando e a filha remexia numa mala.

E na cozinha lá no fundo, com algumas gaiolas de passarinhos, encontrou apenas uma mulher, a cozinheira, quase negra, e que quando ela perguntou o nome e de onde vinha, Martinho deixou ver que tinha os dentes estragados, as unhas escuras pelo trato com o carvão e as panelas, ficava se limpando todo tempo com um pano encardido, o sovaco descuidado e no pescoço, um rosário de contas azuis e brancas. A mulher puxou conversa e ofereceu os serviços do filho. O menino da entrada da pensão, também era engraxate perto do armazém de seu Franklin Veras, indo ter no porto Salgado, se precisasse.

Com o tempo Martinho ficou sabendo que o menino, o rapazinho fumava escondido da mãe. À tarde, quando servia o jantar dos hospedados e o sol mais frio descendo por trás dos carnaubais de Ilha Grande de Santa Isabel, a cozinheira e o filho iam embora tomando o rumo da Guarita, levando o sobejo limpo de algum prato ou o que havia sobrado de um galinha ensopada, guisado de panela, sopa, um pregado de arroz, panelada de bucho de boi com abóbora. A pensão ficava nos cuidados de Belarmino, sobrinho de Seu Caetano.

Em casa aquela comida era esquentada e servida pra os outros três meninos que ficavam o dia inteiro se entretendo na vizinhança e indo, quando muito, pra beira da linha do trem ou nas redondezas procurar gravetos pra acender o fogareiro, tão logo o irmão engraxate e a mãe chegassem do serviço. O marido? Esse a cozinheira largou havia tempo! Não queria nada, um vagabundo. Agora vivia amigado com outra mulher na Coroa. Até apanhava dela. Era o que ficava sabendo pela boca dos outros de vez em quando.

Martinho depois de arranjar com a cozinheira um café e um pedaço de cuscuz de milho, veio pra porta da pensão ver aquele movimento de fim de tarde na Parnaíba. Passavam agora automóveis no rumo da Nova Parnaíba, onde moravam os abastados, os ricos comerciantes e donos de indústrias, médicos, advogados e juízes. Outros desciam no rumo da rua Grande indo dar no Macacal. Seu Zeca Correia devia decerto ter um automóvel daqueles. E era esse homem que iria lhe estender a mão, tinha certeza.

Os dias passaram e Martinho ia se dando bem de ver a Parnaíba com aquele movimento todo do porto pra todas as ruas de cima e de baixo. Foi à missa na igreja de Nossa Senhora das Graças num domingo. Ficou olhando as pessoas importantes sentadas nos bancos da frente, as mulheres com as cabeças cobertas de véus, os terços de contas lustrosas, o perfume bom das roupas delas, as filhas, meninas silenciosas e muito bonitas, limpas e que em nada haviam de se comparar à cozinheira da pensão onde ele estava hospedado.

Conheceu um rapaz, de uns vinte anos pra cima, vindo dos Morros da Mariana, botador de água na pensão Nossa Senhora dos Remédios e nas outras, até na pensão de seu Nagib, o turco mão de vaca. Rapaz dado, falador, baixo, tinha o beiço de cima cortado, era fanho e gordinho. Sebastião o nome. E numa conversa e noutra o amigo novo de Martinho disse que, bem que gostaria de ser sacristão da igreja de Nossa Senhora das Graças. Ser sacristão deveria ser bom.

Iria comer do bom e do melhor e na hora certa, tomar banho de chuveiro, comer sentado em mesa com toalha de renda, beber em copo de vidro, trabalhar pouco, talvez até andar de carro, no muito, ajudar na missa uma vez na semana, fazer algum mandado, uma compra aqui e ali, conhecer e ficar perto de gente rica e importante como seu Zeca Correia, doutor Cândido, Mirócles Veras, Raul Bacellar, José Narciso e ainda podia mexer nos livros do padre. Tinha ambição de subir na vida. Talvez até desse para seguir carreira. Tinha família pobre que passava necessidade nos Morros da Mariana. 

quarta-feira, 27 de maio de 2020

A ROSA DOS VENTOS GERAIS

Rosa dos Ventos Gerais - 1ª edição
Alcenor na charge de Fernando di Castro

A ROSA DOS VENTOS GERAIS

Alcenor Candeira Filho (*)

         O AUTOR

         Para nós é motivo de alegria fazer a apresentação do livro A ROSA DOS VENTOS GERAIS, do poeta piauiense Elmar Carvalho.

       Embora o autor dispense apresentação, porque residiu durante vários anos em Parnaíba, onde se formou em Administração de Empresas e publicou poemas em jornais e em antologias, – desejamos registrar alguns fatos ligados à sua atividade cultural, no Estado:

         Membro da Academia Parnaibana de Letras;
         Presidente da União Brasileira de Escritores do Piauí;
         Presidente do Diretório Acadêmico “3 de Março”;
         Editor de literatura do jornal “Inovação”;
       Coordenador da página literária “Textos e Pretextos”, do Suplemento do Diário Oficial do Estado;
         Coordenador de literatura e editoração da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, que publica uma das mais importantes revistas do Nordeste: “Cadernos de Teresina”;
         Participação nas seguintes antologias poéticas: “Galopando”, “Poesia do Campus”, “Salada Seleta”, “Em Três Tempos”, “Poemágico”, “Poemarít(i)mos”, “Poesia Teresinense Hoje”, “Postais da Cidade Verde”, “A Poesia Piauiense no Século XX”.

         Na qualidade de homem de letras, Elmar Carvalho é mais conhecido como poeta, mas não devemos deixar de lembrar sua vocação para a crítica literária. Mesmo não sendo ainda autor de livro no gênero, Elmar já publicou em jornais e revistas vários textos críticos, voltados especialmente para a análise de obras piauienses.

         O trabalho que Elmar Carvalho vem realizando se afasta da velha crítica historicista, que realça os elementos extrínsecos (biográficos, históricos e sociológicos) da obra literária. Ciente de que literatura é acima de tudo “monumento estético”, o escritor tem optado pela chamada “nova crítica”, que valoriza os elementos intrínsecos da obra. Se literatura é a arte da palavra, o texto e a sua interpretação estético-literária é que importa.                                                

         A Rosa dos Ventos Gerais

         Elmar Carvalho é um dos melhores poetas piauienses da Geração de 1970, como atesta o livro ora lançado em Parnaíba.

       Como obra que abrange toda produção do poeta até agora, é natural que “A Rosa dos Ventos Gerais” ofereça apreciável diversidade temática, variedade que se percebe também em termos de gêneros literários, com versos para todas as preferências e gostos: líricos, sociais, épicos, satíricos.

         A partir dessa diversidade, o poeta dividiu a coletânea em quatro partes, que passaremos a comentar.

         1ª PARTE: Cancioneiro do Ar

         Os poemas da 1ª parte são líricos. Falam de amores devastadores, como no “Poema da Mulher Amada”, e de amores idos e vividos, como na “Elegia do Amor Final”. Aliás, as coisas idas, vividas e revividas predominam na parte inicial do livro.

      O passado não é uma pedra, não é uma campa, por isso nele o poeta mergulha como que em busca do tempo perdido “com seus gemidos/ de fantasmas que/ arrastam correntes/ por entre ais doloridos”.
        
   Conforme está dito em “Eterno Retorno”, o passado são “emoções redivivas/ e ampliadas/ das sensações/ de nervos expostos/ nas carnes pulsantes.” Na esteira da teoria do tempo circular, o poeta lembra que “o passado poderoso e renitente/ retorna e continua vívido e presente/ se contorcendo se retorcendo/ e se reacontecendo.”
         
     Já o poema que abre a coletânea – “Autobiografia Zodiacal” – enuncia uma das características marcantes do poeta Elmar Carvalho: sua vinculação com o concretismo, vanguarda que propõe o aproveitamento de recursos espaciais e geométricos como elementos orgânicos do poema, aproximando-o, assim, das artes plásticas.

         Não obstante a predominância de poemas de forma livre, deparamo-nos nessa parte inaugural do livro com alguns poemas de forma fixa, exatamente seis haicais (nenhum com os rigores métricos do haicai japonês, cujos versos, não mais do que três, correspondem a dezessete sílabas, o primeiro e o terceiro com cinco e o segundo com sete) e um soneto, o único em toda obra do poeta. A propósito, tal soneto nada acrescenta à excelente poesia de Elmar Carvalho, porque não passa de fastidiosos gemidos românticos, com os arrulhos de arapongas nos espinheiros, adornando a solidão enluarada das desertas chapadas.

         2ª PARTE: Cancioneiro do Fogo

         A miséria humana, observada numa das regiões mais carentes do país, lateja nos versos que compõem o “Cancioneiro do Fogo.”

Certamente não são versos incendiários, porque não incitam a rebelião. São versos utilitários, isto sim, que servem para tornar o ouvido um órgão capaz de ouvir, por exemplo, o ronco sinistro de vísceras famintas:

      “a fome
que come
e consome
o “home”
     mora
em sua víscera sonora
      e o devora
como uma flora
          cancerosa
                   rosa carnívora
que aflora e o deflora
de dentro para fora.”

         O poeta, sempre interessado na sua época, assume a posição de receptáculo do sofrimento humano, de caixa acústica por meio da qual as pessoas possam tomar conhecimento dos males que as afligem, como neste minúsculo poema “O Favelado”:

“O favelado, qual filósofo meditava:
sua miséria era tamanha
que tudo enchia e ainda sobrava.”

         O teor público da poética de Elmar Carvalho já foi ressaltado pela crítica. No prefácio que figura na antologia “Poemágico”, declarou Assis Brasil, um dos grandes críticos do país:

         “Elmar Carvalho (...) canta uníssono a consciência da vida e dos compromissos humanos. Canta as desigualdades sociais, numa forma (poética), como já acentuamos, muito mais contundente do que uma catilinária oca de deputado. O lado emblemático e realista da sua linguagem se unem para que a poesia, mais uma vez, seja o corte profundo e quente e afiado da denúncia.”

         Os poemas do “Cancioneiro do Fogo” são compostos normalmente por versos curtos em que notamos a ausência quase total de pontuação, e uma linguagem sempre solta, leve, livre, direta. Até irreverente e contestatória, às vezes. Tudo porque a preocupação maior é com a mensagem, que se impõe por si mesma.

         3ª PARTE: Cancioneiro da Terra e da Água

         A terceira parte do livro celebra o Piauí. São versos líricos através dos quais o poeta empreende um passeio sentimental por ruas, rios, praças, praias, campos, casas, catedrais e cidades piauienses. Nesse bloco de composições telúricas, destacavam-se, como os mais inspirados e de melhor solução formal, os poemas “Noturno de Oeiras” – resultado de uma viagem física e psicológica que o poeta realizou pelo reino mágico da antiga capital de inúmeras tradições históricas, religiosas e artísticas – , e “Marítimas”, escrito no ritmo oceânico do mar, em cujas ondas o poeta assimilou os gestos e o jeito de falar e de ser:

“Do mar eu trouxe
o vento que dança
em torno de meus cabelos.
Trouxe este meu cheiro
de sal, mariscos e maresia.
..........................................
Meus olhos têm o brilho
que roubei das ardentias.
Os relâmpagos das procelas
pousaram nas minhas mãos
e nelas se aninharam.
Do ritmo do mar eu trouxe
os meus gestos e o meu jeito de falar.
..........................................


Mas sobretudo trouxe a vida
na alegria das chegadas
e na tristeza das despedidas.”

         Empregando a técnica do despojamento da linguagem, Elmar Carvalho nos dá em rápidas pinceladas a síntese do Piauí, a partir da região litorânea (“Paisagem Marinha”, “Marítima”, “Lagoa do Portinho”, “Mar(rulho) no Tabocal”, “3 Postais de Parnaíba”, “Vento na Alma e nos Cabelos”), passando pela capital (“Flagrantes de Teresina”), e cidades interioranas (“Noturno de Oeiras”, “Cromos de Campo Maior”, “Elegia a Campo Maior”, “Amarante”, “Livramento: Pedra e Abstração”).

         A linguagem desses poemas da terra contém efeitos fônicos que decorrem principalmente das aliterações. A expediente acústico – ora sutis, ora ostensivos – recorre aliás o poeta ao longo de toda obra. Afinal, como ensina Ezra Pound, poesia é imagem e conceito (fanopéia e logopéia), mas também ritmo (melopéia).

         4ª PARTE: Cancioneiro dos Ventos Gerais

         A vida, respirada, repisada, repensada e/ou reinventada nos ares do Piauí neste final de século, mas sempre a mesma em qualquer lugar e época, – eis a matéria-prima da poesia reunida na derradeira parte do livro.

A vida em Parnaíba, que o poeta já exaltara em vários poemas inseridos no “Cancioneiro da Terra e da Água”, está sempre presente na série denominada “Poemitos da Parnaíba”, que retratam tipos curiosos, malucos, miseráveis, humanos.

         Dois poemas se destacam, a nosso ver, na parte final do livro, ambos de natureza épica na classificação do próprio autor: “Dalilíada”, baseado na vida e na obra do pintor espanhol Salvador Dali, e “A Zona Planetária”, inspirado num cabaré de Campo Maior.

         Embora o excesso de alusões mitológicas no último poema transmita um clima de exotismo e passadismo, o poeta em verdade está interessado é na vida presente, no Piauí e seus angustiantes problemas sociais, representados no caso por prostíbulos existentes em Campo Maior.

         Num total de 382 versos, distribuídos em dez segmentos, o poeta focaliza a prostituição através de um processo criativo em que mistura a mitologia clássica, a astronomia e a sociologia dos lupanares.

         O início do poema já nos fornece uma visão geral da promiscuidade reinante no ambiente, onde as emoções são alinhadas pedra a pedra ao som de vitrola que embala os “que bebem vinho/ e sangue em frágeis taças de cristal.”

         Há versos admiráveis neste moderno poema épico, seja pela magia musical, seja pela beleza das imagens. Se a linguagem às vezes ganha sabor classicisante para ajustar-se ao referencial mitológico, assume quase sempre expressividade moderna e contundente, como nestes versos de “Marte”, cujo ritmo de rudo açoite parece querer varrer as impurezas da vida instintiva e sublinhar a sublime alvura dos lençóis lavados em lágrimas vertidas nas ressacas das “tempestades do sexo”:

“Os satélites Fobos e Deimos,
filhos de Marte e Vênus,
amantes do amor (em)bebido em sangue
em suas fatídicas rondas orbitais
espalham o medo e o terror.
Marte dos amores lav(r)ados
no sangue das Fúrias e do Terror
dos romanescos crimes passionais
dos sexos decepados pelas guilhotinas
ou cortados pelas espadas
dos homens e mulheres ciumentos.
Marte dos mártires
dos grandes amores matadores.
Planetas das amáveis
              das afáveis amazonas
a cavalgarem sequiosas
o enlouquecido cavalo alado
do sexo – Pégaso pegajoso
de esperma e mucosa de vagina.”

         CONCLUSÃO

         Os comentários ora feitos sobre A Rosa dos Ventos Gerais destinam-se apenas a chamar a atenção do leitor para alguns aspectos dos versos de Elmar Carvalho. Versos a serem digeridos por todos os que ainda crêem na poesia como produto artístico capaz de alimentar o espírito como a chuva amamenta a terra.
__________________________________________________________________
(*) O autor é procurador federal (aposentado), professor de literatura e membro da Academia Piauiense de Letras e da Academia Parnaibana de Letras.  Tem vários livros publicados. Participou de várias antologias. Publicado na Fortuna Crítica de Rosa dos Ventos Gerais. 

terça-feira, 26 de maio de 2020

DIÁRIO - 26/05/2020

Fonte: Google


DIÁRIO

[A reconstrução do Paraíso]

Elmar Carvalho

26/05/2020

            No domingo de manhã, como às vezes costumo fazer, fui folhear um de meus livros de fotografias ou pinturas no alpendre da casa.

            Tentando driblar o tédio da quarentena coroniana, olhei atenta e lentamente as pinturas de Salvador Dalí, um de meus pintores favoritos, tanto que inspirado em sua biografia e em suas telas cometi o meu poema épico moderno Dalilíada.

            Estava nessa agradável tarefa, quando de repente, do nada como diriam os jovens de hoje, me veio um estalo à Vieira, e a ideia de um conto me borbulhou na mente. A pequena peça de ficção, que a seguir transponho para este diário, tem alguma coisa de apocalíptica ou escatológica, embora muito diferente da forma como muitos imaginam.


A reconstrução do Paraíso

“Daquele dia e hora, porém, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, senão só o Pai. [Mateus 24:36]”


No ano de 2098 o médico e pesquisador John Paul Clark começou a notar sinais, entre seus pacientes e conhecidos, de que algo estranho estaria começando a acontecer.

Com sua famosa acuidade e perspicácia notou, nos gráficos de batimentos cardíacos de alguns de seus pacientes, que eles tiveram uma rápida interrupção ou parada, mas que logo o coração se reanimara, por conta própria, sem que ninguém, nem a equipe médica, nem acompanhante e muito menos o doente percebessem. O fenômeno era discreto, sutil, de pequena ocorrência, de modo que nenhum de seus colegas comentaram o fato, se é que o notaram.

Como outros casos surgissem no decorrer do ano, sob o argumento de que iria fazer uma pesquisa para a elaboração de um livro de sua autoria, conseguiu a autorização do diretor do hospital para executá-la a partir do início do ano e entre todos os pacientes do hospital. Teve a cautela de tirar cópia de todos os eletrocardiogramas, para se municiar das devidas comprovações.

Resolveu estender a investigação por três anos, ao tempo em que estudava e notava outras ocorrências, que entendia fora do comum. Com a sua perspicácia e memória extraordinárias começou a perceber que algumas pessoas aparentavam não estar envelhecendo, enquanto outras, mais idosas, pareciam mesmo estar tendo um leve e lento processo de rejuvenescimento.

Contudo, observava que outras envelheciam e morriam de forma natural, como sempre acontecera. Para sua perplexidade, esta última categoria, pelo que lhe foi possível apurar (e até então manteve absoluto silêncio sobre suas constatações e suspeitas), eram pessoas ambiciosas, intolerantes, agressivas, egoístas e sobretudo más.

Sem que pudesse comprovar, já que não foram internadas e muito menos submetidas a eletrocardiogramas, teve a convicção de que muitas outras pessoas teriam tido uma súbita e rápida morte, mas com imediata reanimação ou ressurreição, caso se queira usar o último vocábulo. De tudo isso tirou a conclusão de que todos os seres humanos vivos até essa época teriam que passar pelo aguilhão da morte, ainda que tivessem um imperceptível e imediato retorno à vida.

Passou a acreditar que essas pessoas que haviam sofrido essas rápidas e inexplicáveis paradas cardíacas ou morte súbita e rápida, e por isso imperceptíveis, não mais adoeceriam, nem envelheceriam e nem morreriam, enquanto as demais morreriam para toda a eternidade, salvo alguma cuja alma tivesse a graça de ser arrebatada diretamente para outra dimensão divina. Seriam seres humanos a caminho da perfeição espiritual, e teriam – quem sabe? – com o passar do tempo, um belo e glorioso corpo.

Quando entendeu disso ter certeza, começou a expor abertamente o que observara, e disse de forma convicta, sem vacilações ou dúvidas, que já se dera a segunda vinda de Cristo, que estava havendo uma transição para uma vida melhor e mais gloriosa, e que o novo Paraíso terrestre estava começando a ser construído.

Muitos acreditaram no que ele disse. Outros, em dúvida, disseram que esperariam mais alguns anos, para firmarem ou não sua crença.

Porém, muitos acharam que ele não passava de um ensandecido profeta messiânico de final de século.    

segunda-feira, 25 de maio de 2020

domingo, 24 de maio de 2020

Seleta Piauiense - Herculano Moraes

Fonte: Google


Praia de Amarração

Herculano Moraes (1945 - 2018)

Me sento na areia branca
da praia de amarração
doce marulho do mar
a vida numa canção

e viajo nas espumas
de sargaços e de areia
nas ondas de tua nudez
o meu olhar se incendeia

Um barquinho de papel
singra o mar azul-marinho
como o meu ser anda em busca
de instantes de carinho

Viajamos como anjos
num mundo de céu e mar
faço cama das espumas
e travesseiros do ar

entre nuvens de espumas
meu pensamento vadeia
me traz a sutil lembrança
dos astros de minha aldeia

aldeia de são Raimundo
sem mar, sem rio, sem mim
cheia de céu e de estrelas
tão rubra como carmim

Ah! se eu fosse presidente
no meu grande amor insano
daria pra minha gente
um céu, um rio, o oceano

Me sento na areia branca
da praia de amarração
viajando nas espumas
de sargaços e de areia
faço cama das espumas
e travesseiros do ar

Fonte: A poesia piauiense no século XX, org. Assis Brasil.     

sábado, 23 de maio de 2020

AI DE TI, SAUDADE!




AI DE TI, SAUDADE!

Antônio Francisco Sousa – Auditor Fiscal (afcsousa01@hotmail.com)

Saudade de sair veloz no carro,
tarde afora ou noite adentro;
de percorrer todas as ruas.

De entrar naquele shopping,
pedir e tomar daquele chope
que sempre via alguém beber.

De entrar na casa de loterias,
jogar na quina ou lotomania,
se acumuladas, como não?

De parar nas livrarias,
tomar café, olhar orelhas de livros,
e levar alguns para ler.

E essa saudade, quanta,
de zanzar de lá para cá,
feito bobo ou turista faz-de-conta?

Na relojoaria, na loja de esportes
ou no antro da última moda:
de entrar, só para ter que sair.

Após despedida com um espresso,
deixar o shopping para outros,
também há saudade do lado de fora.

Que vontade deu, de repente
de matar aquela tão ingente
de um certo cantinho especial.

Onde mais de um pãozinho,
e de vários e vários pasteizinhos,
pedirei aquele suco, para refrescar.

Mas não vai ficar só nisso,
esperarei mais um pouquinho,
pela iguaria-mor da Casa:

A coxinha de camarão.
Se alguém conhece similar, eu não:
 vou querer alguns exemplares.

Para sonhar pelo caminho,
que preciso recomeçar já,
pois tempo não há a perder.

Decidi pôr fim no estoque
dessa saudade encruada,
 que já está comigo há meses.

Vou falar alto, talvez  gritar,
se precisar, posso repetir:
saudade, minha velha, ai de ti!

Estás com os dias contados.
E neles há tanto por retomar,
que, prevejo: terás um fim cansativo.

No cinema há um filme novo,
que terá de esperar para depois:
pois verei outro que escolhi.

Pouco importa a plateia,
Quero mesmo é me esparramar
e sair com muita sede.

Há um barzinho ali bem perto,
e a saudade danada dele
vai morrer por afogamento.

Quem sabe lá encontremos,
 saudosos amigos do último encontro,
e brindaremos por teu réquiem.

este dia que logo, logo terminará
não será, ainda, coisa triste,
o de tua partida em definitivo,

Sem problema, minha velha,
no mais tardar, daqui a pouco,
serás não saudosa lembrança

Vade-retro, e leva teus ais,
dá um tempo e desaparece.
Ah! E saibas que não deixará saudade.   

O trem de brinquedo do menino que comia barro




O trem de brinquedo do menino que comia barro

Pádua Marques
Contista, romancista e jornalista

O menino voltou pra dentro de casa e foi direto até a cozinha onde estava a mãe remexendo umas vasilhas indo depois lavar na cacimba. O apito do trem ainda se escutava longe ganhando a linha no rumo da Parnaíba. Chegou perto de dona Raimunda e foi se metendo, se enroscando feito uma cobra entre as suas pernas, puxando o vestido dela, mas não disse nada. Assim era quando queria alguma coisa. E cada vez mais longe o trem ganhava ligeireza e pelos cálculos dali a pouco haveria de chegar ao seu destino.

Assim acabava mais um dia de encantamento pra Duquinha e Luzia naquele fim de mundo do Videl com suas poucas casas na beira da linha entre Parnaíba e a Piracuruca. A irmã tinha uns onze pra doze anos e ele, coisa de menos, sete. Tanto que ainda estava trocando os dentes. Os dois naquela casa eram os assim ditos, sobejos, dos cinco filhos de seu Duca Pereira com dona Raimunda. Os outros três filhos morreram ainda anjos, longe de tudo. De tudo que era lugar onde tinha gente como a Parnaíba. Quando morreram foram enterrados ali mesmo, quase no fundo do quintal sem muita cerimônia.

Enquanto a mãe dona Raimunda foi lavar uns copos na beira da cacimba lá no fundo do barranco, a menina se aproveitando de mais ninguém dentro de casa, correu a mão numa lata onde se guardava açúcar e colocou duas colheres pra depois ir até o caixão de farinha branca onde colocou duas mãos cheias no copo. Voltou pra frente de casa e ficou olhando o tempo, comendo aquilo e olhando o movimento de algum passarinho, o correr dos calangos ou algum jumento vindo atrás de grama na frente de casa. Luzia gostava de comer farinha com açúcar.

Até que de vez em quando dava um pouco pra o irmão, contando com que ficasse quieto ali ao lado dela na passagem do trem vindo da Piracuruca. Mas ele ficava pouco naquela espera mais besta e longa. Tinha vez e hora que sumia pra detrás de casa e naquele silêncio, naquele sumiço de dar medo ia comer barro. Dona Raimunda não gostava de ver a menina comendo farinha com açúcar. Xingava Luzia, cobria de coques e de nomes feios. Ameaçava levar pra casa de padre Roberto em Parnaíba, pra levar beliscão o tempo inteiro. 

Dizia que farinha com açúcar chamava lombriga. A menina depois de levar carão saía desconfiada e ia resmungar sentada num tronco de pau na frente de casa. Só brigava com ela, só brigava com ela! E aquele cão de Duquinha? Comia barro detrás de casa e ela não dizia nada! Barro era capaz de dar também lombriga nele! Era barro que fazia Duquinha ficar com aquele bucho grande. Mas era naquele lugar afastado do Videl, aquele lugar de meter medo, que Luzia inventou uma brincadeira.

Toda vez que o trem vinha descendo de Piracuruca pra Parnaíba, era dela Luzia. Toda vez que o trem vinha de Parnaíba, subindo pra Piracuruca, era de Duquinha. Quando o trem parava na estação pra deixar ou embarcar algum conhecido, os dois ficavam ali olhando, se admirando de tudo. Algum conhecido que ia pra Parnaíba ver algum negócio, fazer compras, se consultar na Santa Casa. Outro ali mais adiante levando um porquinho capado, um saco de pequi, tapiocas, milho verde, uma ou três franguinhas de primeira pena pra agradar uma comadre em Parnaíba. Ou alguém chegando pra visitar um parente antes esquecido no Videl. Duquinha e a irmã Luzia passaram a ter naquele bicho de ferro e queimando pau de lenha, um brinquedo de dois em dois dias.

Mas teve um dia que seu Duca foi pra Parnaíba e na volta veio com o pedido da madrinha de Luzia, dona Rita, mulher do magarefe Pedro Castanha. Queria porque queria que a menina fosse morar com ela. O único filho havia ido embora pra o Pará e já casado levou uma netinha que era sua alegria dentro de casa. Dona Rita estava sozinha agora. O marido tinha o serviço dele de cortar boi, porco e carneiro na Guarita. Luzia haveria de ser uma boa companhia pra ir com ela na igreja de São Sebastião nos Campos.

 A promessa da madrinha era de que Luzia iria pra o catecismo fazer primeira comunhão, ia ganhar vestido e calçado, ia primeiro desasnar em casa e depois ia botar numa escola perto de casa, com gente de confiança, pra mais lá na frente dar alguma coisa na vida. E assim um dia de trem e tendo os cuidados de seu Luís, o maquinista, Luzia foi embora pra Parnaíba. A mãe dona Raimunda foi só de balançar a cabeça e agradecer os cuidados daquele homem com a filha ainda uma menina. Lembranças pra comadre Rita. Quando ela ou o pai pudessem iam ver a menina, levar uns agrados!

Dias e meses passados e de vez em quando dona Rita mandava alguma coisa boa de Parnaíba pra comadre Raimunda, o menino e o compadre seu Duca. Dessa vez foi um lampião, comprado no seu Antonio Tomás, umas três canecas de louça, um corte de brim. Luzia estava bem. Mandava lembranças, era quieta, já ajudava em casa, na cozinha e varria a porta de casa. Iam as duas pra igreja. Gostava de conversar sobre as coisas do Videl e de vez em quando falava do irmão.

Um dia seu Luís, o maquinista, veio pra dizer que havia um ocorrido muito triste na Parnaíba. A casa de Pedro Castanha e de outros moradores da Guarita tinha pegado fogo porque umas brasas voaram da chaminé do trem e foram justo cair em cima das casas de palha. Foi uma coisa horrível, de cortar coração. Aquele sofrimento de gente correndo atrás de água pra apagar o fogo naquele meio de tarde. Até dos potes se pegou água. As casas viraram cinzas assim num esfregar de olho e os coitados perderam tudo. Ficaram com a roupa do corpo. Mas não houve mortes nem feridos.

Foi o bastante pra Duquinha ficar escutando tudo lá de seu canto enquanto seu Luís contava o que havia ocorrido na Parnaíba. Agora era saber os estragos e procurar a Estrada de Ferro Central do Piauí pra pagar os prejuízos. Tinha gente correndo atrás dos ricos, doutor Mirócles, doutor Cândido, seu Roland Jacob e seu Zeca Correia, pedindo barro, madeira pra ripas e caibros. O menino agora sem a irmã por perto, a menina boa com quem até pouco comia farinha com açúcar e brincava de esperar o trem vindo de Piracuruca ou da Parnaíba, nunca mais quis ver aquele cão de ferro.