|
3ª edição - Coleção Centenário - APL |
|
2ª edição |
|
1ª edição |
NAS MEADAS DO TEXTO DE ELMAR
CARVALHO
Carlos Evandro Martins Eulálio
Professor da UFPI aposentado
Escravo,
não sou escravo da submissão
e meu último adeus será uma
corrida
com os pés fora da corda-bamba.
Escreverei
um manifesto assinado
com o sangue de cada um,
com o suor de todos,
todos mocinhos
de um filme sem mocinhos.
Escarnecerei
os muros e os tetos das prisões
porque são exceções de um regime
de
exceção.
Escangalharei
as portas do céu
e os portões do inferno
e soltarei a liberdade.
(Moisés)
Estes versos de Elmar Carvalho
exprimem a atmosfera dos “Negros verdes anos 70”, expressão criada por Heloísa
Buarque de Holanda, para caracterizar a década mais nebulosa da ditadura
militar, que se inicia com a edição do Ato Institucional n.º 5, a 13 de
dezembro de 1968.
Nos
anos de chumbo, a ação da censura e a repressão policial refrearam a criação
artística, sobretudo a poesia, gênero pouco atraente para os novos interesses
da indústria cultural. Através do mimeógrafo, instrumento hoje obsoleto,
superado pelas máquinas xérox e as impressoras acopladas aos microcomputadores,
grupos de jovens, em geral estudantes, encontram uma saída para divulgar o
texto poético, sob a mira de fuzis e à margem do mercado editorial. Daí a
designação de “Poesia ou geração
mimeógrafo”. Ela comparece às feiras de livro, às exposições, aos shows
musicais, enfim, aos restaurantes, praças e teatros, divulgando uma poesia,
considerada para uns, de raízes tropicalistas que se aliam às
contribuições do modernismo de 1922 e
até mesmo às vanguardas brasileiras de 1950 e 1960 e, para outros, como sendo uma poesia mais
próxima do Romantismo, pela acentuada subjetividade ou do Modernismo, por certa
ironia desconcertante. O certo é que, decorrente da prática sincretista, os
poetas dessa geração recorrem aos procedimentos românticos, simbolistas,
modernistas e até mesmo vanguardistas.
A
geração mimeógrafo faz surgir uma forma
poemática mais distanciada da sintaxe ideogramática ou ostensivamente gráfica
dos concretistas, instaurando em seus textos a pluralidade estilística e a
diversidade temática. É sobretudo uma poesia de resistência e de contestação
que se identifica pela desvinculação da série literária brasileira, sem
qualquer tradição poética imediatamente anterior. Para o prof. Anazildo
Vasconcelos da Silva, a poesia do Mimeógrafo, “colocando-se aleatoriamente em
face do projeto poético brasileiro, herdeira duma série literária esfacelada,
pratica o sincretismo como forma de recuperação da realidade”. Nessa vertente, a geração mimeógrafo decreta
o fim da modernidade e anuncia o começo da pós-modernidade.
Alfredo
Bosi, ao refletir sobre a poesia dos anos 70, na sua História concisa da
Literatura Brasileira, editora Cultrix, p.488, declara:
Em paralelo ao que aconteceu com
a prosa de ficção que, de engajada e testemunhal, passou a individualista
extremada, a poesia deste fim de milênio parece ter cortado as amarras que a
pudessem atar a qualquer ideal de unidade, quer ético-político, quer mesmo
estético, no sentido moderno de construtivo de um objeto artístico. Muitos dos
seus textos encenam o teatro da dispersão pós-moderna e suas tendências
centrífugas: atomizam-se motivos, misturam-se estilos e as sensibilidades mais
agudas expõem ao leitor a consciência da própria desintegração.
Essa desintegração a que se
refere Alfredo Bosi constitui talvez o mais importante ingrediente
caracterizador da arte contemporânea, cujas implicações são mais profundas e
traduzem a atual atitude do poeta diante da realidade que suscita o ato
criador. E esta realidade com a qual hoje se defronta o poeta é bem diferente
daquela vivida por nossos antepassados.
Otávio Paz, no magistral ensaio Signos em rotação, assim descreve este
cenário:
“Na
antiguidade o universo tinha uma forma e um centro; [...] depois, a imagem do
mundo ampliou-se: o espaço se fez infinito ou transfinito; [...] Mudou a figura
do universo e mudou a ideia que o homem fazia de si mesmo: não obstante, os
mundos não deixaram de ser mundo nem o homem os homens. Tudo era um todo. Agora
o espaço se desagrega e se expande; o tempo se torna descontínuo; e o mundo, o
todo, se desfaz em pedaços. Dispersão do homem, errante num espaço que também
se dispersa, errante em sua própria dispersão”
Baudelaire, ao meditar sobre o
conceito de modernidade, alude à necessidade de adequar-se a poesia ao destino
de sua época. De modo consequente, chama Les fleurs du mal produto dissonante
das musas do tempo final. Mallarmé, em Un coup de dés (lance de dados, 1897)
poema espécie de épica dos nossos tempos, inspirado nas técnicas de
espacialização visual e titulagem da imprensa cotidiana, assim como nas
partituras musicais, manifesta o
espírito crítico de um artista preocupado com os destinos do poeta e da poesia,
cuja crise fora sinalizada por Hegel, quando sentenciara que a leitura do jornal passava a ser para a
nossa época uma espécie de oração matinal. Marx, refletindo sobre a
impossibilidade da épica tal qual a conceberam os clássicos, numa criativa
interpretação de Haroldo de Campos, vale-se de uma bela paronomásia para
exprimir que, diante da imprensa, a fala e a fábula, o conto e o canto, a musa
dos gregos enfim, cessam de se fazer ouvir. Lamartine, poeta representativo do
romantismo, assevera em 1831: “o pensamento se difundirá no mundo como a
velocidade da luz, instantaneamente concebido, instantaneamente escrito e
compreendido até as extremidades do globo. [...] Não terá tempo para amadurecer
– para se acumular num livro, o livro chegará muito tarde. O único livro
possível a partir de hoje é o jornal. Se quisermos avançar um pouquinho mais,
diríamos que, com o telejornal, o que hoje chega tarde é o próprio jornal.
Eis em linhas gerais o quadro
diante do qual apreendemos o sentido da nova poesia e o modo de produção de seu
criador. É natural pois, que ele repugne as regras do jogo, dessacralize
convenções e invente suas próprias soluções contra estereótipos e fórmulas
ultrapassadas ou pré-estabelecidas. Essa autonomia do poeta leva-o à produção
criativa de uma obra aberta, nos termos de Umberto Eco, cabendo portanto ao
leitor ver em que sentido toda obra de arte é aberta, sobre quais
características estruturais essa abertura se fundamenta.
No caso específico de Elmar
Carvalho, egresso de uma geração de autores deserdados de tradição poética,
pela desagregação da série literária, traço peculiar daquele momento, nós o
distinguimos como um artista que, com rara inteligência e sensibilidade, soube
a seu tempo ultrapassar os limites de uma época pouco favorável à produção
literária, conscientizando-se do papel do escritor que se faz, mercê do esforço
e do trabalho disciplinado. Autor de uma obra em construção, como ele próprio
afirma, é sintonizado com a modernidade poética, sem descurar da tradição de
onde tem retirado sábias lições, através da
leitura dos clássicos brasileiros e estrangeiros. Nos termos de Ezra
Pound, há que se ressaltar na produção poética de Elmar, não uma atitude
diluidora, isto é, de imitação sem progresso em relação ao modelo original, mas
uma atitude inventiva, descobridora de um processo particular ou de mais de um modo ou processo. Dessa forma,
em Rosa dos tempos gerais, o vemos tecer o texto poético empregando os mais
variados recursos plásticos e sonoros, em diversas combinações de características
mais predominantes dos diferentes gêneros literários. O sujeito lírico de seus
primeiros poemas faz-se presente no texto não só quando indicado pela primeira
pessoa, mas quando também projetado nos arranjos especiais da linguagem, como
por exemplo na construção de Amad’Amor
Eu te amo
Eu te (ch)amo
Eu sou tua (ch)ama
Eu te des’gosto.
Eu te ado(u)ro
Eu te douro.
Eu sou teu (m)ouro /mourão
Eu sou teu te’souro.
Aqui a palavra-frase “eu-te-amo”,
metamorfoseia-se internamente e anaforicamente se expande em construções
sinonímicas que culminam na erotização da mensagem, na estrofe final do poema,
quando então se fundem as duas pessoas do discurso:
Somos um laço
Tu me (en)laças,
Eu te (en)laço.
Somos um cadafalso
Onde somos vítima,
Carrasco e baraço.
Curiosamente, Roland Barthes, nos
Fragmentos de um discurso amoroso, esclarece acerca dessa expressão: Eu-te-amo
não tem empregos. Essa palavra, tanto quanto a de uma criança, não está
submetida a nenhuma imposição social; pode ser uma palavra sublime, solene,
frívola, pode ser uma palavra erótica, pornográfica. Na enunciação do eu-te-amo, para o
semiologista, a exemplo do que acontece no canto, o desejo não é nem reprimido
(como no enunciado) nem reconhecido (lá onde era esperado: como na enunciação)
mas simplesmente: gozado. O gozo não se diz, mas ele fala e diz: eu te amo.
Saliente-se, por oportuno, que a
vertente erótica da lírica brasileira pela qual opta Elmar Carvalho, está mais
relacionada ao erotismo na acepção drummondiana, de O amor natural, que supõe a
exigência corpórea que dirige o homem em busca da mulher.
A função emotiva da
linguagem, associada à poética,
comparece quase em todos os poemas do Cancioneiro do Ar, primeira parte do
livro, com temática que abrange o amor, a mulher, o poeta, o poema, o sexo, o
tempo, a vida e a morte.
A lírica não intimista, de
conteúdo mais explicitamente social,
constitui a tônica dos poemas cujo sujeito da enunciação identifica-se
na e pela linguagem, através da dicção própria de cada texto. Neste caso, verifica-se um momento de tensão entre o individual
e o coletivo, caracterizando a lírica moderna participante, nos termos de
Theodor Adorno, a qual resulta de uma integração entre a emoção e o desejo de
interpretar o mundo, como nesta estrofe do poema A Fome:
a fome
que come
.e consome
o “home”
mora
em sua víscera sonora
e o devora
como uma flora
cancerosa
rosa carnívora
que aflora e o deflora
de dentro para fora.
O aspecto emocional desses versos
decorrem do modo como o texto se organiza, através do emprego melodioso e
paralelístico das rimas e do enjambement que promove a quebra da linearidade
frásica, praticamente anulando o caráter reflexivo da mensagem.
Simultaneamente, o questionamento do social conduz o leitor à fruição da
própria linguagem, uma vez que é impulsionado a captar o sentido do signo
poético como fonte geradora de múltiplos sentidos. Assim os semas “fome, come,
consome, home”, num processo mais lúdico do que lógico, igualam-se e se
diferenciam poeticamente. A lírica faz
com que a linguagem estabeleça um elo de comunicação entre sujeito e sociedade,
deixando de concentrar-se exclusivamente no poeta. A professora Angélica
Soares, na obra Gêneros Literários, ao surpreender este fenômeno no poema O cão
sem plumas, de João Cabral de Melo Neto, acrescenta que, ao lado dos poemas
líricos que tematizam os problemas socioeconômicos e políticos, destacam-se na
lírica moderna os metapoemas que intentam a dessacralização da linguagem e do
fazer poéticos. Este recurso metalinguístico é largamente empregado por Elmar
Carvalho, ao refletir sobre o poeta, o poema,
a poesia, bem como o modo de produção,
no interior do próprio texto.
Nos conjuntos seguintes, Cancioneiro da Terra e da Água e
Cancioneiro dos ventos gerais os poemas em geral, mais longos, colocam o
poeta em situação de confronto em relação ao mundo. A lírica conjuga-se ao
épico e ao dramático para desvelar uma poesia de caráter mítico e histórico,
não porque narra eventos históricos, mas porque dialoga com os homens de todas as
épocas, através de fragmentos e da relação que mantém com outros textos. A linguagem é então retomada como produto ou
meio de transmissão cultural.
O conceito de intertextualidade a que nos
referimos foi inicialmente formulado pelo pensador russo Mikhail Bakhtin que,
tomando como referência a obra de Dostoievsky, caracteriza o romance moderno
como dialógico, no qual as diversas vozes da sociedade estão presentes e se
entrecruzam, relativizando o poder de uma única voz condutora. Essa noção foi
posteriormente desenvolvida por Júlia kristeva, para quem a intertextualidade é
um mosaico de citações e todo texto é uma retomada de outros textos. Em sentido
amplo, a intertextualidade envolve todos os objetos e processos culturais. As
manifestações culturais são então tomadas como textos que jamais se
interrompem, uma vez que são recodificados, reinventados e reveiculadas pelos
escritores, compositores, pintores e artistas em geral. Assim, na obra de Elmar
Carvalho, sob o signo da intertextualidade, resgata-se a memória de um povo,
reconstituem-se paisagens e cenários através de passeios poéticos e
sentimentais por nossas cidades e regiões mais longínquas. Inscreve-se no texto
poético, através da linguagem, imagens do passado que são ícones de uma época
que já vai longe de todos nós: são os flagrantes e postais de nossa terra, de
nossa gente e de nossa alma liricamente recuperados. Os poemas A Zona
Planetária e Sete Cidades são exemplos de uma poesia que dialoga com a
mitologia greco-latina, com a história antiga e com os melhores mestres da
literatura, levando ao leitor valiosos ensinamentos. Nesse sentido
surpreendemos na obra de Elmar Carvalho, sobretudo na sua atual fase de criação
um aspecto que reputo da mais alta importância: o caráter pedagógico de seus poemas. “Os grandes poetas, [diz Mário Faustino, em
seus Diálogos de Oficina], sempre se interessaram ativamente pela Filosofia,
pelas ciências e pela política de sua época, encontrando-se em cada um deles o
retrato mais ou menos fiel e minucioso do que se passava e do que se fazia na
dinâmica social do tempo em que viveram. [...] Toda poesia verdadeira é
didática. E nenhum meio de comunicação ensina tão profundamente e de modo tão
inesquecível quanto a poesia.
Quando conheci Elmar, no início
dos anos 80, tive o privilégio de assistir à gestação do épico Dalilíada, poema
inspirado na obra de Salvador Dali. Ao acompanhar de perto o sofrimento e as angústias do poeta
naquele mister, constatei que acabara de conhecer um erudito. Um poeta que não se rende simplesmente aos
apelos da inspiração, porque concebe o poético também como composição produto
de um trabalho elaborado e
planejado.
Assim vejo os poemas de Elmar
Carvalho. Eles não brotam de um momento circunstancial, ou como um Deus ex
machina, isto é, como aparição inesperada, mas decorrem de um trabalho
crítico de oficina, prenhe de
sabedoria. Além de inspirado é o poeta
fabro, ou seja, o poeta fazedor, o poeta que é também o
artífice da palavra, cujo trabalho também contribui para elevar e aperfeiçoar o
nosso idioma.
Teresina, 20 de março de 2002
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor. Lírica e
Sociedade in Os pensadores. São Paulo : Abril Cultural, 1980.
ANDRADE, Carlos Drummond de. O amor
natural. Rio de Janeiro : Record, 1994.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da
poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro : Ed. Forense-Universitária, 1981.
BARTHES, Roland. Fragmentos de um
discurso amoroso. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1995.
BOSI, Alfredo. História concisa
da Literatura Brasileira, São Paulo : Cultrix, 1994.
CAMPOS, Haroldo de. A arte no
horizonte do provável. São Paulo : Perspectiva, 1977
ECO, Umberto. Obra aberta. São
Paulo : Perspectiva, 1976.
EULÁLIO, Carlos Evandro M. Poesia
contemporânea: possíveis causas de sua evolução. Teresina : Presença Ano VII,
n. 14 janeiro / junho de 1985.
PAZ, Otávio. Signos em rotação.
São Paulo : Perspectiva, 1976
POUND, Ezra. A arte da poesia.
São Paulo : Cultrix, 1976/
SOARES, Angélica. Gêneros
literários. São Paulo : Ática, 1999.
VASCONCELOS DA SILVA, Anazildo.
Lírica modernista e percurso literário brasileiro. Rio de Janeiro : Editora
Rio, 1978.