A Estética na obra Morangos Silvestres e outros contos eróticos, de J. L. Rocha do Nascimento
Carlos Evandro M. Eulálio
Alguns teóricos consideram o
erotismo o tema mais antigo da literatura.
Na antiguidade o vemos desde os Cânticos dos Cânticos da Bíblia,
perpassando pelo Satíricon, um texto de Petrônio escrito no século I, aos
escritos do francês Marquês de Sade (1714/1814). No Brasil, o erotismo como
arte literária surge inicialmente com Gregório de Matos Guerra (1636 – 1696) e
comparece nos textos de alguns autores das nossas escolas literárias do século
XIX aos dias atuais. Obras que há algum tempo eram restritas, por vezes até de
circulação clandestina, são agora acolhidas por um público bem maior em relação
àquele de décadas passadas. Mesmo diante de um número razoável de publicações
de obras que abordam a sexualidade, observa-se, no entanto, que alguns leitores
alimentam tabus em relação a essa linha de produção, vista ainda como gênero de
texto de qualidade inferior ao cânone literário, talvez pela dificuldade que
têm em distinguir o pornográfico do erótico. Para definir esses termos com mais
precisão, alguns autores partem de conceitos dicotômicos, quando consideram o
erotismo uma arte elevada, produzida para estimular o intelecto, enquanto o
pornográfico uma arte rebaixada, para estimular o corpo, portanto, desprovida
de qualquer função estética, servindo apenas ao estímulo sexual: (GUIDOTTI,
2019, p.29).
Com base nos conceitos de
Maingueneau, para quem o texto erótico é sempre tomado pela tentação do
esteticismo, tentado a transformar a sugestão sexual em contemplação das formas
puras, a professora Clarissa Garcia Guidotti esclarece: [...] enquanto o texto
pornográfico será explícito e direto, com o uso de uma linguagem muito mais
denotativa, o erotismo se valerá das ambiguidades, metáforas, metonímias e
outras figuras de linguagem. A diferenciação básica que Maingueneau estabelece
entre os dois gêneros, tem a ver com o uso da função poética, que será
amplamente solicitada pelo autor do texto erótico. (GUIDOTTI, 2019, p.30).
Fundamentada na etimologia desses
termos, a psicóloga Audrey Vanessa Barbosa Leme declara: [...] a palavra
pornografia do grego pornographos remete a hábitos e costumes relacionados à
devassidão sexual, ao que é considerado obsceno, indecente, sendo veiculada por
meio de imagens, publicações, linguagens, gestos etc. Também do grego, a
palavra erotismo, de Eros, Deus do amor e da Paixão, relaciona-se à
sensualidade e ao amor; é a poesia do sexo. O erotismo insinua, deixando espaço
para a imaginação, enquanto a pornografia é explícita (LEME, 2015).
Nessa linha de raciocínio, eis a
seguir algumas opiniões de escritores especialistas no assunto, coligidas por
Omar Godoy, em seu texto A lei do Desejo:
-
Eliane Robert Moraes, crítica literária, organizadora da Antologia da
poesia erótica brasileira afirma que a separação entre erotismo e pornografia
parece ser mesmo um entrave na compreensão da sexualidade na arte.
- Márcia Denser, autora de O
animal dos Motéis (1981), rejeita o rótulo de literatura erótica. Ela se queixa
de ter recebido o carimbo de escritora erótica por questões comerciais: Não sou
escritora erótica, nem faço literatura erótica. Faço literatura, ponto.
- Antonio Carlos Viana, escritor
sergipano e teórico da literatura, ensina que um dos cuidados a serem tomados
pelo escritor é esquecer o perfil de quem vai ler a obra. [...]. O que importa
é que a linguagem seja aliciadora, que o cative a cada palavra colocada,
transportando para algo que ele conhece, mas nunca viu escrito daquele jeito.
Ele acredita ainda no poder da sugestão, afirma que muitas vezes, você pode
fazer simplesmente uma alusão à cena e nada mais. Existe conto mais erótico do
que ‘Missa do Galo’, de Machado de Assis? Tudo ali é apenas sugestão, mas o
clima erótico envolve as duas personagens de tal forma que até parece sonho,
conclui Viana.
Na entrevista a Wellington
Soares, respondendo acerca de sua faceta erótica em Fesceninos (sic), conto que
abre o livro Dei pra mal dizer, escrito em parceria com Airton Sampaio e M. de
Moura Filho, J. L. Rocha do Nascimento afirma: Embora recorrente, o erotismo
ainda é um termo interditado, quase sempre visto com alguma reserva, sobretudo
por quem não sabe fazer distinção entre erotismo e pornografia. Parafraseando o
filósofo alemão Hans-Georg Gádamer, se o leitor quer compreender um texto, tem
que deixar que ele diga algo, numa palavra: tem que dar uma chance ao texto.
Foi isso que aconteceu. Quem suspendeu os seus pré-juízos, e leu o livro,
percebeu que o tratamento dado ao tema foi sério, há neles uma preocupação
estética. Infelizmente, alguns leitores fizeram apenas juízos morais e não
estéticos (ROCHA DO NASCIMENTO, J. L. 2021, p. 58).
São pertinentes as palavras do
autor, quando lemos a sua mais recente obra literária Morangos Silvestres e outros
contos eróticos. O estético em suas páginas é um dos principais ingredientes
que concorrem para a construção da tessitura textual do livro. O trabalho
artístico do autor deriva dos inúmeros recursos estilísticos que utiliza nos
contos, decorrentes do uso da função poética, através de imagens sinestésicas e
sugestivas, metáforas, alusões e associações que presentificam nos textos
elementos semânticos e/ou formais inerentes aos gêneros de textos, teatral,
musical e cinematográfico.
O livro é composto de 21 contos,
repletos de referências intertextuais, a maioria narrados em primeira pessoa
(exceto os contos Butim, Conjunção de Sabores e Óleo de Ameixa), todos com
personagens inominadas. São protagonistas dos relatos personagens tanto
masculinas quanto femininas. Geralmente o final de um conto abre o início do
seguinte. Essa técnica nos intui afirmar que os contos da obra, embora
autônomos entre si, unificam-se na totalidade da narrativa. Com isso o autor
consegue vencer um dos maiores desafios dos escritores da atualidade, qual seja
o de manter o leitor interessado do início ao final dos textos que se cruzam e
se completam na narrativa seguinte, caracterizando um formato de livro que
transcende limites da prosa tradicional. A retomada da história de um conto por
outro, em geral acontece com mudança do foco narrativo, embora os textos
mantenham a sequência da mesma história, como nos contos Anjo Sado e Gran
Finale, por exemplo. Em Anjo Sado, o foco narrativo é da perspectiva do
primeiro narrador-protagonista:
Adoro quando você me amarra os
pés e prende minhas mãos, ela disse, enquanto eu me preparava para o ritual,
que dei início logo após saírem de sua boca as palavras mágicas: vai, me bate!
Bate forte, daquele jeito. (ROCHA NASCIMENTO, J. L. 2022, p. 65).
Já no conto seguinte, Gran
Finale, o ponto de vista se transfere para o segundo protagonista:
Minhas carnes tremiam quando
perguntava se eu queria apanhar, de mentirinha, claro, mesmo batendo forte. Eu,
é claro, dizia quero, bate! E, naquele dia. Eu queria mais que nunca. (ROCHA
NASCIMENTO, J. L. 2022, p. 67).
O conto de abertura, Morangos
Silvestres, título inspirado no filme do mesmo nome, do sueco Igmar Bergman,
evoca cenas associadas implicitamente ao protagonista dessa grandiosa obra
cinematográfica Isak Borg:
[...] Instantes depois, nossas
roupas misturadas pelo chão, nossos corpos nus perseguiam um ao outro e nossas
carnes, trêmulas, ardiam em brasa. Em Bergman, será que eles são apenas uma
referência? Perguntou, enquanto tocava com a ponta da língua e superfície
texturizada. Em suas lembranças, o protagonista volta à cena em que sua paixão
de adolescência se dirige ao pomar. (ROCHA NASCIMENTO, J. L. 2022, p.11).
Na sequência, não numa sucessão
linear de eventos, mas numa conexão de cenas em cadeia discursiva, como nas
montagens de Bergman, a personagem dialoga com Sérgio Leone, cineasta italiano,
mestre no manejo do close-up:
[...] Insisti nos movimentos
circulares, já bem na antecâmara. Seus olhos pareciam desmaiar o corpo. Pensei
numa tomada com a câmera avançando rápido à maneira de Sérgio Leone. Afaste uma
da outra, deixe-a abertas, o máximo possível, escancaradas, para que ela cresça
diante dos meus olhos, quero ver tudo, eu como com os olhos, você sabe. (ROCHA
NASCIMENTO, J. L. 2022, p.12).
Outras alusões e associações que
estabelecem relações com o cinema e com a literatura, merecem destaque no mesmo
conto, nas seguintes passagens das páginas 12 e 13:
- [...] Veio-me então outra
ideia, Brando é que estava certo, nada de seguir roteiros preconcebidos.
(Sabe-se que o ator Marlon Brando – 1924/2004 - improvisava parte de suas falas
nas cenas que representava no cinema).
-
[...] Transformei-me num cão farejador, dei de salivar. Os que bebem
como os cães, lembrei-me não sei bem por quê, do episódio bíblico, ou teria
sido do romance? Ainda à maneira canina, comecei a lamber aquela pele azeitada
com óleo de ameixa. Matei minha sede. (Referências ao romance de Assis Brasil,
Os que Bebem como os Cães, e aos que bebem como os cães da passagem bíblica do
Livro dos Juízes, capítulo 7, em alusão ao exército de Gideão).
- [...] Passado algum tempo, ela
e suas carnes, subjugadas, vieram ao chão, como as muralhas de Jericó. Eu um
Josué recompensado, depois de sitiar, invadir e conquistar a cidadela. (Alusão
à queda das muralhas de Jericó, relatada no velho testamento).
- [...] E antes que os galos da
madrugada tecessem a manhã, o aço de minha espada, por seguidas vezes, foi
chamado ao campo de batalha e não se curvou. (Referência ao poema Tecendo a Manhã
de João Cabral).
Em diálogo, o protagonista retoma
Bergman ao mencionar o filme O Sétimo Selo, adaptação de uma peça de teatro do
mesmo diretor, e a Quentin Tarantino, diretor e crítico de cinema americano. O
Sétimo Selo refere-se a uma passagem do Apocalipse, em que Deus tem 7 selos nas
mãos. A abertura de cada um representa um desastre para a humanidade, sendo o
último deles o fim dos tempos de forma irreversível:
[...] – Tarantino, à sua maneira,
muda a história ao evitar a abertura do sétimo selo. - E daí qual a relação com
Bergman? – Não percebe? – Não. – Que tal vermos agora o nobre cavaleiro
irlandês naquele jogo de xadrez com a morte? Você encontrará a resposta. Ela,
sem tirar os olhos do cão andaluz, já meio adormecido, respondeu: - Com uma condição.
– Qual? – Depois que se abrir o sétimo selo, vamos brincar de cabra-cega (ROCHA
NASCIMENTO, J.L. 2022, p.14).
Na sequência, o conto Cabra-Cega.
A
relação entre os contos da obra Morangos Silvestres e outros contos eróticos e
o cinema acontece não apenas em função da referência a cenas de filmes, mas à
sintaxe cinematográfica da narrativa que descreve os movimentos das personagens
e os objetos em cena. O mesmo ocorre em relação ao teatro e à música. No conto
Cabra-Cega, o segundo do livro, a música constitui o principal recurso para a
construção desta cena:
[...] Pra completar meu domínio
cego, digo que quero ouvir Wagner. Apocalypse Now! Impossível esquecer a cena.
Sou eu quem está surfando. Ele é meu pedaço de praia, o meu cavalo de aço, o meu
cuspidor de fogo. Anda, quero ser abatida enquanto cavalgo. Quero ouvir o
matraquear dessa metralhadora. Quero morrer sob fogo de artilharia. E morro.
(ROCHA NASCIMENTO, J. L. 2022, p.18)
Em Apocalypse Now, filme épico de guerra
norte-americano de 1979, do diretor Francis Ford Coppola, o ataque de
helicópteros americanos a uma aldeia vietnamita, ao som da Cavalgada das
Valquírias, prelúdio do terceiro ato da ópera A Valquíria, de Richard Wagner,
serve como música de fundo de uma das mais famosas e inesquecíveis cenas de
combate já levadas às telas dos cinemas.
O conto Prelúdio, em virtude de
sua estrutura dramática, pródigo em recursos poéticos (metáforas e
sinestesias), visuais e cênicos, demanda um espaço como o palco, a fim de ser
representado e não narrado. Isso porque o conto é construído por meio do
diálogo que faz a história acontecer, sendo viável adaptar-se ao teatro e ao
cinema.
Para Bataille, o erotismo
consiste numa experiência ligada à experiência da vida, não como objetivo de
uma ciência, mas da paixão mais profundamente, de uma contemplação poética.
(BATAILLE, 1987, p.14) O elo entre o erotismo e a poesia está presente no conto
Expresso da Meia Noite, através de uma linguagem metafórica do início ao final
do texto:
“Teu corpo nu, frente ao espelho,
translúcido como a pele de um ovo, eu o tenho sempre nos meus braços, quando
você se azeita”. Lembra? [...] - “Tua cabeça levemente soerguida para um dos
lados. Os olhos fechados seguem, caminham em busca do primeiro vagão do trem,
que vem que vem e segue direto para as estrelas”. [...] - “Teu monte de Vênus
negro contrasta com a brancura da pele branca. Parece uma ilha, um oásis
redentor. Me curvo tal qual um sacerdote e me coloco na frente de tua morada”.
(ROCHA NASCIMENTO, J. L. 2022, p.63-64).
No conto E se eu escrevesse como
o Rubem Fonseca? a ligação entre literatura e erotismo persiste implicitamente,
quando no diálogo das personagens é feita uma alusão a duas obras de Rubem
Fonseca, O Caso Morel (primeiro romance do autor), e o conto Lúcia McCartney:
Na madrugada o telefone toca.
– Liga pra mim, amanhã cedo.
- De novo? Estamos ao telefone e
já passa da meia-noite.
- Antes de tomar o café da manhã,
quando eu sair do banho, na hora em que eu estiver me lambuzando com óleo. Só
pra me chamar de putinha.
- Tá.
No dia seguinte é a primeira
coisa que eu faço.
– Sua puta! Cadela, vadia!
- Assim, não! Quem chama assim é
o Paulo Morel, um personagem de Rubem Fonseca. Se pelo menos fosse igual ao
José Roberto. Quero daquele jeito, do jeito que eu gosto. Você sabe. (ROCHA
NASCIMENTO, J. L. 2022, p.69).
No diálogo, com a tomada de
consciência crítica, a partir da alusão aos perfis das personagens José Roberto
e Paul Morel, instaura-se no conto o tom parodístico da narrativa. Com uma dose
de humor e ironia, o narrador reflete na obra o estilo direto e “brutal” de
Rubem Fonseca.
Eis, portanto, em linhas gerais, um breve comentário de alguns contos da obra Morangos silvestres e outros contos eróticos, de autoria do já consagrado contista piauiense J. L. Rocha do Nascimento. É uma obra que explora a interface da literatura relacionada a outras manifestações artísticas, como o teatro, a música e o cinema. Além dessas relações intersemióticas, o autor desenvolve na obra possibilidades estéticas que tornam as construções sintáticas dos textos menos discursivas e mais poéticas, através de uma linguagem visual, sugestiva, metafórica e sinestésica.
REFERÊNCIAS
BATAILLE, Georges. O Erotismo.
Tradução de Cláudia Fares. São Paulo: Editora ARX, 1987, citado por NOVAES,
Nayara M.S. In dissertação de mestrado
Uberlândia: UFU, 2017, p.13.
GUIDOTTI, Clarissa Garcia. O
coração que pulsa entre as pernas: uma história da expressão do desejo, a
partir da antologia erótica brasileira. Rio Grande - RS Universidade Federal do
Rio Grande -
https://ppgletras.furg.br/dissertacoes-e-teses/publicacoes-de-2019.
GODOY, Omar. A lei do desejo.
www.bpp.pr.gov.br/Candido/Página Especial-Literatura, acessado em
2/1/2023.
LEME, Audrey. Erotismo x
Pornografia. https://www.psicologiasdobrasil.com.br., acessado em 4/1/2023
ROCHA DO NASCIMENTO, J.L. In
SOARES, Wellington (org.). Entrevistas com autores piauienses e um bróder.
Teresina: Quimera Editora, 2921.
SOARES, Wellington (org.).
Entrevistas com autores piauienses e um bróder. Teresina: Quimera Editora,
2921.
https://classicosdosclassicos.mus.br/apocalypse-now-coppola-wagner-cavalgada-das-valquirias, acessado em 4/1/2023.