Logo ao atravessar o paredão da barragem do lago de Corredores, avistei um bando de cabras, que pareciam pastar magras rações de pedra, pois o capim se confundia com a paisagem seca e encardida. Ali estavam uns jumentos, que hoje parecem abandonados, uma vez que os rurícolas já não os usam como montaria; preferem trafegar em ruidosas motocicletas. Entre os asnos, peludo e cheio de graça, havia um jumentinho albino, cuja cor destoava da cor cinzenta de seus irmãos. Vi-o mamar com sofreguidão, e depois seguir o rebanho, saltitante e contente. No local, havia um barco, ancorado na sequidão da caatinga. Talvez fosse mais exato dizer naufragado nos pedregulhos do sertão, porque seu casco tinha rombos que já não lhe permitiriam singrar as águas doces do lago. O motor fora desentranhado de seu ventre. Talvez por medo de que o barco saísse a voar, levado por um vendaval, alguém tivera o cuidado de prendê-lo a uma corda, como se fora um cabresto. Aquele barco em ruínas, parado na terra esturricada, me fez lembrar um passeio que fiz, em minha juventude, ao povoado Água Doce, no Maranhão, que na época eu pensava tratar-se de uma ilha, encravada no Delta do Parnaíba. Convidados pelo jornalista Bernardo Silva, que ali nascera, fomos eu e o Paulo de Athayde Couto, que às vezes eu chamava de PAC.
Passamos uma semana no povoado, em conversas, libações e a desmontar as peças e patas de saborosos crustáceos. Voltei lá outras duas vezes, novamente a convite do B. Silva, mas tendo como terceiro escoteiro o Reginaldo Costa. Fomos na proa do barco, uma chalana, em animada conversa, entremeada de música e poesia, sorvendo sorrateiramente umas talagadas do velho pirata Ron Montilla, sob o olhar negligente do cobrador, que não viu ou fez que não viu, o que para nossa juventude dava no mesmo. Como eram gostosos aqueles imensos caranguejos. Fomos na época do carnaval, e o povoado estava festivo, com a presença alegre e bonita das moças que estudavam em Parnaíba. Estávamos no final da década de setenta. Ao conversar com um jovem nativo, expressei-lhe minha admiração pelo velho Luiz Gonzaga. Fiquei chocado quando o jovem, em linguagem desdenhosa e cheia de gíria, retrucou-me: “Qualé, cara, eu gosto é do Michael Jackson!” Preferia ficar macaqueando os ídolos norte-americanos em detrimento da genialidade do velho Lua, totalmente alienado de sua origem interiorana e nordestina. Mas o leitor deve estar perguntando o que tudo isso tem a ver com o barco encalhado nas pedras da caatinga. É que isso me fez recordar uma canoa atolada na lama do mangue, na qual tirei uma fotografia, a fingir que estava remando. Foi então que me surgiram os versos em que eu, no auge de meu entusiasmo juvenil, acreditando que a mocidade não morreria nunca, proclamava que era “um homem que remava no seco contra a corrente das águas”. Quando voltávamos, ultrapassamos uma pequenina e preguiçosa chalana, que ironicamente se chamava “Ligeirinha”. Na verdade, o velho motor toque-toque mal conseguia vencer a correnteza, e havia momentos em que parecia andar para trás. Escrevi uma crônica sobre essa viagem, que publiquei no jornal Inovação. Ó tempos ditosos, diria o poeta que ainda canta em mim.
Passamos uma semana no povoado, em conversas, libações e a desmontar as peças e patas de saborosos crustáceos. Voltei lá outras duas vezes, novamente a convite do B. Silva, mas tendo como terceiro escoteiro o Reginaldo Costa. Fomos na proa do barco, uma chalana, em animada conversa, entremeada de música e poesia, sorvendo sorrateiramente umas talagadas do velho pirata Ron Montilla, sob o olhar negligente do cobrador, que não viu ou fez que não viu, o que para nossa juventude dava no mesmo. Como eram gostosos aqueles imensos caranguejos. Fomos na época do carnaval, e o povoado estava festivo, com a presença alegre e bonita das moças que estudavam em Parnaíba. Estávamos no final da década de setenta. Ao conversar com um jovem nativo, expressei-lhe minha admiração pelo velho Luiz Gonzaga. Fiquei chocado quando o jovem, em linguagem desdenhosa e cheia de gíria, retrucou-me: “Qualé, cara, eu gosto é do Michael Jackson!” Preferia ficar macaqueando os ídolos norte-americanos em detrimento da genialidade do velho Lua, totalmente alienado de sua origem interiorana e nordestina. Mas o leitor deve estar perguntando o que tudo isso tem a ver com o barco encalhado nas pedras da caatinga. É que isso me fez recordar uma canoa atolada na lama do mangue, na qual tirei uma fotografia, a fingir que estava remando. Foi então que me surgiram os versos em que eu, no auge de meu entusiasmo juvenil, acreditando que a mocidade não morreria nunca, proclamava que era “um homem que remava no seco contra a corrente das águas”. Quando voltávamos, ultrapassamos uma pequenina e preguiçosa chalana, que ironicamente se chamava “Ligeirinha”. Na verdade, o velho motor toque-toque mal conseguia vencer a correnteza, e havia momentos em que parecia andar para trás. Escrevi uma crônica sobre essa viagem, que publiquei no jornal Inovação. Ó tempos ditosos, diria o poeta que ainda canta em mim.
Ilustre poeta,
ResponderExcluirPelo que tenho percebido ao longo das leituras de suas prosas, o amigo viajou muito e nas suas andanças mostrou muito interesse pela cultura. Pelo que parece as perguntas são grandes aliadas suas.
Quanto à história do marinheiro de água doce, notei três coisas: A gênese de um poema seu que adotei como favorito, "Auto-retrato", uma mudança no cenário do sertão (outrora a miséria escravizava o homem e o animal, hoje transportes motorizados tornaram obsoleto o uso do jumento) e a alienação cultural (valoriza-se demais a cultura alheia em detrimento da sua própria).
Se tão somente o homem percebe-se que ele próprio é um universo a ser descoberto, talvez despertasse para a busca do conhecimento da sua própria realidade.