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Foto meramente ilustrativa |
Aldear e Exterminar
Fonseca Neto
O livro que Reginaldo Miranda nos apresenta neste momento é a
segunda edição do seu “Aldeamento dos Acoroás”, originalmente publicado há dez
anos. E logo de capa se v. que trata o livro dos chamados índios, forma
vocabular esta com a qual se tem designado a população ancestral enfrentada
nesta região do orbe desde o início da guerra da colonização europeia.
Lendo esse livro para dizer palavras a vocês sobre ele, e
para melhor organizar a própria leitura, fiz perguntas a seu autor, e entre
elas, uma que diz respeito ao ato escritor da história, propriamente, portanto
atinente ao método de fazê-lo: como e o que escrever sobre um povo que teve a
sua existência roubada, sobretudo não deixando herança material, como expecta o
cânone historiográfico assentado, e também não deixando a narrativa de sua
presença gravada em suporte de escrita? Quais possibilidades, então, de
fazê-lo, ante esse vazio? Ou esse vazio seria apenas construção emanada de uma
vontade deliberada de ocultamento? E a memória?
Mais duas perguntas fiz – e perguntar não ofende: ao
historiador cabe fazer perguntas às coisas que o tempo lavrou e que estão por
aí vagando no espaço da materialidade e até nos potenciais ainda infindos do
imaterial? E com efeito o historiador “interpreta” as respostas ou cabe-lhe
apenas fazer o relatório do que sua vista objetou ou tenha lido no suporte de
escrita anterior?
Não tenho e desconfio que não há respostas cabais sobre essas
questões. Há, porém, a elaboração historiográfica sobre índios. E o autor deste
“Aldeamento” inscreveu-se entre os que partiram em busca de algumas respostas,
e seu texto, organizado nestas oitenta páginas, são a narrativa que conosco
compartilha do que obteve.
Minhas próprias perguntas a ele foram motivadas por
asseverações que – por exemplo –, faz Pierre Nora, num instigante esforço de
distinguir “história” e “memória”.
“A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta
do que não existe mais. A memoria é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no
eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é efetiva e
mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de
lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou
simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censura ou projeções. A
história, porque experiência intelectual e laicizante, demanda análise,
discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a
liberta, e a torna sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que ela une, o
que quer dizer, como Halbwarchs o fez, que há tantas memórias quantos grupos
existem, que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e
individualizada. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que
lhe confere uma vocação para o universal. A memória se enraíza no concreto, no
espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades
temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a
história só conhece o relativo.
No coração da história trabalha um criticismo destruidor de
memória espontânea. A memória é sempre suspeita para a história, cuja
verdadeira missão é destruí-la e a repelir. A história é deslegitimação do
passado vivido. No horizonte das cidades de história, nos limites de um mundo
completamente historicizado, haveria dessacralização última e definitiva.”
Acoroás: sim, nosso autor os reconhece como um povo que vivia
nestas terras desde uns 650 anos antes do início da guerra da colonização que
praticamente os suprimiu. É sabido que este espaço hoje geograficamente chamado
de “vale do rio Parnaíba”, “vale do rio Tocantins” é habitado há cerca de 500
séculos, segundo as mais adiantadas
datações da equipe liderada por Niède Guidón. Os grupos humanos atacados nesta
zona do mundo a partir da segunda metade do século XV – os acoroás um deles –,
são parte de um movimento de migrações milenares sobre a face fértil da terra
construindo a experiência de viver, de sobreviver.
Pelas balizas de sua busca, Miranda os localiza, já
estropiados e já decorridos 150 anos da guerra aberta que contra eles e outros
se travara neste vale do rio que chamavam então de Punaré. Cento e cinquenta
anos de uma guerra que encontrou a mais eloquente resistência dos atacados, no
pleno exercício daquele direito há milênios consagrado: o imperativo da
resistência e o direito à insurgência contra a tirania. Ele os localiza num
“aldeamento”, à beira de um riacho a que chamarão de Mulato.
Acoroás num aldeamento. Aldeamento que o autor diz que era um
“verdadeiro campo de concentração”, portanto, um lugar de “confinamento”,
“vigiado por soldados”, condição de recluso que deveria propiciar o roubo, pelo
agressor, em primeiro lugar, de sua força de trabalho, ao mesmo tempo,
despojar-lhes de sua cultura, do próprio significado de viver; no limite, de
sua condição humana, de sua humanidade.
Mas “campo de concentração” não é coisa do tempo de füher do
III Reich? Não é coisa do século XX? O autor pode fazer essa comparação? Não
era outro o contexto? Claro que pode fazer a comparação e saber se outro o
contexto depende das referências de quem está pesquisando e escrevendo.
Há duas semanas, um grupo de manifestantes, declarando-se
defensores da causa da vida animal, entraram e livraram do confinamento 172
cachorros, em São Paulo, que estavam tendo sua vida manipulada para fins de
pesquisas comerciais com vistas à elaboração de novas mercadorias. A notícia
disso – aliás, tímida – causou certo impacto nas razões de muita gente.
Pois vejam estas outras três notícias, as quais foram assim
dadas três séculos depois dos acontecimentos narrados, por três conhecidos
membros desta Casa de letrados: Odilon Nunes, J. G. Baptista e Joaquim Chaves.
Em geral reproduzem os relatos que os próprios matadores fizeram aos seus
superiores na ordem legal do tempo.
“Depois de 6 ou 7 dias de marcha através de caatingas e
terras agreste, a rastejar o inimigo, os perseguidores surpreendem a tribo
espavorida e faminta e após ligeira escaramuça, subjugam-na, jungindo os
guerreiros estropiados e decorridos dois dias, sob fútil pretexto, degolam 400
e reduzem à escravidão mulheres e crianças. Era 1º de junho de 1676.
O local da carnificina dos pobres indígenas a 6 ou 7 dias da
foz do Salitre, ficava bem longe do rio Gurgueia, todavia, se não na bacia do Parnaíba,
pelo menos, bem perto dos tributários do Canindé, especialmente do rio Piauí.
Teriam dessa vez ultrapassado o divisor das águas? Provavelmente, como da vez
primeira. Quatro meses após, já D. Pedro de Almeida, Governador de Pernambuco,
concede as primeiras sesmarias em território piauiense a Domingos Afonso
Sertão, Julião Afonso Serra, Francisco Dias de Ávila e Bernardo Pereira Gago,
de dez léguas de terras em quadro a cada um, nas margens do Gurgueia.
Pediram-nas em Olinda, porque a região ficava na jurisdição de Pernambuco, isto
é, nos sertões que se estendem da margem esquerda do São Francisco, em rumo do
ocidente”.
“Daí por diante não houve mais tréguas na luta com o
selvagem.
Em 1679, os Tremembés haviam fechado o caminho que ligava o
Maranhão ao Ceará, na zona da costa. Faziam mais: matavam os pobres náufragos
que, escapando às águas, buscavam salvação e refúgio nas ilhas do delta do
Parnaíba. Contra eles foi enviada a expedição de Vital Maciel Parente. Os
selvagens foram surpreendidos nalgum ponto da costa, do lado do Piauí, e
facilmente desbaratados. Mas o branco civilizado enodoou a vitória com um ato
repugnante de selvageria: conseguiu que os índios aliados exterminassem
brutalmente as crianças tremembés aprisionadas. É o próprio Governador, Inácio
Coelho da Silva, que relata o nefando crime, em carta, para o príncipe regente:
‘Os índios aliados, travando das criancinhas pelos pés, mataram-nas cruelmente,
dando-lhes com as cabecinhas pelos troncos das árvores, e de uma maloca, de
mais de 300 só escaparam 37 inocentes’.”
“1700 – 400 Paiacus são dizimados por Morais Navarro. O padre
João Tavares faz a paz com os Barbados e Tremembés. Alguns índios são aldeados
no Itapicum: São Barbados, Guanarés e Aroás. 1713 – Levante geral dos
selvagens. Índios indeterminados matam [o mestre de campo Antonio da Cunha]
Souto Maior e Tomás Vale... 1716 – Nova luta acontece no Porto das Barcas.
[Mandu] Ladino cai no rio e é assassinado por Manoel Peres, soldado. Outra
versão dá este fato como acontecido em 1718. Dias de Siqueira liquida os
Cariris, na ribeira do Itaim”.
Importa mais perguntar, no entanto: por que o confinamento
dos cachorros de hoje gera mais indignação no coração de muita gente do que o
relato dessas vidas roubadas de gueguês e acoroás?
Há quem tenha uma resposta na ponta da língua: “era outra lei
e outra ética” e não poderíamos analisar/interpretar esse passado com a “ética”
do presente. Esse pensar é uma espécie de “amortecedor” ante os abalos
eventualmente produzidos pelos cobros da consciência – trata-se de uma fala
embasada numa espécie de furor ideológico dos mais tendentes à conservação, e
até dos reacionários, daquele tipo que governa o juízo dos que morrem de amor
pela história, mas que se enfurecem quando levanta ela a sua espada em fogo e
em sua relatividade vingadora. Digo mais que essa guerra para escravizar índios
e se apropriar das terras em que eles viviam não tinha nada de autorizada na
lei do tempo – o que havia era uma estrutura iníqua de manipulação do poder,
pela ganância do enriquecimento de poucos à custa do trabalho e da vida de
muitos. Mas aí de novo se vai redarguir: “mas a escravidão também era
normal...”. Qual normalidade? Qualquer manual de história da Europa mostra que
em 1772, ano da reclusão dos acoroás, a escravidão naquele território já estava
fora da lei. E por que esse é um tempo de grande expansão da hediondez
escravista por aqui?
Reginaldo traz evidências da mobilizadora ganância de um
desses funcionários da carreira militar que reprimia os índios, rumo às
supostas minas de ouro dos goiazes. Ora, para enriquecer, ele passaria por
cima, como de fato passou, de qualquer
escrúpulo, lei. Lei? “Ora a lei”.
Nesse sentido, repugnante o extermínio já à época – poderia
citar várias leis restritivas atinentes –, lembre-se que a “legitimidade”
desses acontecimentos é uma criação historiográfica de escritores que
concordam, no próprio tempo em que escreveram, com a “naturalidade”, “justeza”,
da guerra desse tempo. Tempo que não existe mais, mas existentes, e insistentes,
até como que “naturais”, as estruturas urdidas em leis não revogadas, impedidas
de o serem, pela força bruta dos que não querem que a sociedade em seu conjunto
alcance o viver justo. Aliás, repita-se, o afirmado acima de que “A história,
porque experiência intelectual e laicizante, demanda análise, discurso
crítico... A história é deslegitimação do passado vivido...”.
O livro do acadêmico Reginaldo Miranda ilustra para nós a
maneira como funcionava esses aldeamentos da segunda metade do século XVIII na
América Portuguesa. Tem a vantagem de exprimir um exame com lentes bem próximas
do dia-a-dia de um desses “verdadeiros campos de concentração” – bem
caracterizados como campos de trabalhos forçados –, assim experiência
espantosa, como já dito, de extermínio de uma fração da humanidade, sem
conceder-lha nenhum tipo de direito à defesa. Mostra bem o processo de escolha
política dos diretores, as regras do confinamento, a “educação”, a agressão da
vestimenta. E o autor não alude, mas lembro que certamente das desgraças
maiores para os aldeados nessas prisões, tenha sido a obrigação de aprender a
moral dos imoralíssimos algozes quanto a ter vergonha de suas vergonhas,
naquele sentido do escriba deslumbrado Pero Caminha.
Reginaldo utiliza o termo “indiocídio”; impressiona o
dia-a-dia da resistência: na conduta dos confinados, aquela compulsão da
liberdade se manifesta em todos os instantes daquela roça-cadeia a céu aberto.
Lido em diálogo com a primeira parte do recém-relançado “São
Gonçalo do Amarante”, “Aldeamento dos Acoroás” permite-nos, leitores, e
pesquisadores outros de suas pistas, exemplo único em nossa historiografia mais
recorrente, local e até brasileira, enxergar, como o projeto de Sebastião de
Melo, o Oeiras-Pombal, expresso no Diretório de 3 de maio de 1757, se fez
acontecer, no pós-jesuitismo setecentista.
Regeneração é única cidade piauiense que tem seu
organismo, morfológico, institucional,
étnico, explicado desde o seu aparecimento. Dependendo de que tipo de cidadão
se queira erguer numa criança, por exemplo, essa cidade poderia ensinar o
significado de existir numa cidade cuja origem é o que nosso autor – e eu
concordo com ele – está chamando de “verdadeiro campo de concentração”.
Muito oportuno o registro, igualmente bem apoiado em fontes,
do dia-a-dia do aldeamento, dos atos de corrupção dos funcionários públicos –
dir-se-á, funcionários régios – levando índios para casa para servir-lhes como
escravos e distribuindo outros por fazendas de apaniguados pela capitania
inteira. Isso é assunto daquela época, de imensa atualidade, e prova que, em
muitos sentidos, vivemos o contexto das malandragens que aquele tempo
engendrou.
Ler esse ensaio despretensioso é desafiar a alma naquilo que
consiste uma tarefa de cidadania que os livros de história ousem respaldar –
tornar-se um brasileiro indignado e levado à recusa das misérias de sempre.