terça-feira, 31 de maio de 2016

O Gato e o Rato

            
O Gato e o Rato

Valério Chaves

            Certo dia ao cair da noite, um rato dentro da selva, retornava para dormir na sua toca depois de bem-sucedida caçada, quando avistou um gato que passava por perto em busca de alimento.
            Eis que o rato, ao pressentir o iminente perigo de morte, sem pensar duas vezes, se escondeu dentro da toca, morrendo de medo.
            Cauteloso, de vez em quando botava a cabeça para fora para ver se o gato ainda estava por perto lhe esperando.
            Ocorre que o gato, faminto, não estava disposto a desistir de comer o rato e, por isso, resolveu esperar o tempo que fosse necessário.
            Depois de algumas horas, eis que o rato, certo de que o gato já tinha ido embora, colocou a cabeça para fora a fim de certificar seu pressentimento.
            No entanto, levou um temendo susto quando avistou o gato com os olhos bem abertos, miando, morto de fome. E, como um raio, vupt…voltou para o seu esconderijo.
            Cada vez que tentava sair da toca, ouvia o miado do gato e, com mais medo, voltava a se esconder.
            E assim nesse vai e volta, o tempo foi passando.
            Mais tarde, cansado de tanto miar e esperar, o gato teve uma ideia para fazer o rato sair sem ter medo de nada. O que ele queria, na verdade, era comer o rato.
            Lembrou-se, na hora, que rato não tem medo de cachorro, e pensou: em vez de miar, vou latir imitando um cachorro, e assim, pego fácil esse rato esperto.
            Sucedeu que quando o rato mais uma vez botava a cabeça para fora para ver se o gato ainda lhe esperava, e ao ouviu latido de cachorro, disse consigo, soberbo:
            - Ah! Agora posso sair sem sobressalto. Enfim, o amigo gato, talvez cansado de tanto miar sem resultado, resolveu ir embora, deixando livre o caminho.
            - O que ouço agora é somente latido de cachorro, e de cachorro eu não tenho medo.
             Em seguida, restabelecido do susto que levara, saltou para fora da toca.           –          - Pronto, estou salvo!
            Porém, eis que de repente, o gato que observava há bastante tempo, com um só golpe, abocanhou o rato, sem piedade.
            - Meu jantar desta noite está garantido – exclamou prazerosamente.
            O rato, debatendo-se, sabendo que lhe restavam poucos minutos de vida, fez uma perguntar ao gato, a título de curiosidade:
            - Amigo gato, sei que certamente vou ser devorado agora, mas por favor, me diga de onde tirou essa ideia de imitar cachorro latindo? - pois até onde sei, gato só sabe miar.
            Então o gato, prontamente, respondeu em tom comovido:
            - Amigo rato, nos dias atuais, gato que não souber falar mais de uma língua morre de fome.

Moral da história:
Na hora do aperto quem não souber usar a inteligência não obtém vantagem.
            --------------------------
           Valério Chaves

            Des. inativo do TJPI.

domingo, 29 de maio de 2016

SACRIFÍCIO


SACRIFÍCIO

Elmar Carvalho

Abrir meu ventre
como uma rosa de carne
e de suas vísceras multicores
pétalas dispostas em arabesco
projetar uma poesia
feita de flores e de fezes.
Cortar meu corpo
e retalhar minha alma
e fazer uma poesia
de matéria e de espírito
e morrer na última palavra
do último verso por nascer.
Drenar
minhas veias e
com seu sangue
regar um poema canibal
que não fale de morte.
E escrever a obra-prima
com o sangue da alma.

           Parnaíba, 17.05.78  

sábado, 28 de maio de 2016

DEPUTADO MARANHÃO NA LINGUAGEM DO ÃO


DEPUTADO MARANHÃO NA LINGUAGEM DO ÃO 

Jacob Fortes

Por recôndita motivação o deputado Maranhão tomou a decisão de decretar, sem respaldo na Constituição, sequer sessão de votação, a ab-rogação do processo de impeachment da Presidente da nação. Mas que razão teve o Maranhão para esse gesto trapalhão? Na imaginação popular o que não falta é suposição: pressão; coação; imposição, gosto pela confusão; ambição, cavilação; dissensão; desqualificação.

Mas Maranhão deu-se mal com a despropositada decisão: de reputação no chão, sem admiração, sem-razão e engolfado na própria atrapalhação, acabou solitário, na reclusão de uma ilha de desolação. Melhor reparação faria o sisudão Maranhão se optasse pela abdicação da função.  Afinal, o impulsivo gesto, digno de reprovação e admoestação, ao invés de render glorificação, prestou-se à comprovação de que Maranhão não tem qualificação para a direção da magna congregação legislativa. A circunstância impõe a amarga obrigação (por parte dos que, por aclamação, fizeram-no vice da função) de torná-lo interdito por meio de exautoração. É a medicação para evitar que arroubos de curta duração, — que encerram diminuição à casa do povão — possam causar outra vexação à nação. Sua ascensão (de vice a titular) é galão que constitui imerecida distinção. Ô Maranhão, para com essa obsessão! Se a colmeia de deputados não te aceita mais como zangão por que a tua insistência em permanecer, decorativamente, sem a mínima condição, à frente da função, justamente tu, avesso à elocução e afeito a desatinos que conspiram contra a Constituição? A casa precisa de quietação.  Controla tua intemperança; para com essa malsinada inspiração de protagonizar capilossadas que acabam por te chamar à razão e não esquece: esse gesto, sem ordem, sem arte, sem noção, exige desculpas ao povão do teu rincão, decerto cheio de decepção com o papelão que brotou da tua imprecaução. Por muito tempo os eleitores hão de ouvir os ecos da detonação da tua ação; haverás de ser pasquinado por essa extravagante confusão. Aliás, essa “obra-prima” — que, com excesso e descuidoso empenho, esculpistes, sem o clarão das luzes, para maldição da tua reputação — constitui inovação perante o teu preletor, Cunha, o poderoso chefão.    

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Histórias de Évora - Capítulo VII


HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

            Capítulo VII

A balzaquiana Madalena

Elmar Carvalho

Certo dia, quando Marcos fazia o primeiro semestre do terceiro ano ginasial, dona Marciana, a diretora do Liceu, imponente, quase marcial, verdadeira matrona romana, entrou na classe e pediu à professora para transmitir uma mensagem, na verdade, em suas palavras, uma convocação ao civismo, ao exercício da cidadania e da solidariedade.

De posse do diário de classe e de uma lista com o nome das principais ruas da cidade, ela pediu para que os alunos fossem de casa em casa falar da importância da campanha de vacinação contra a varíola, e pedissem para que as famílias não deixassem de comparecer aos postos de vacinação, no período indicado.

– Vocês estarão prestando um grande serviço de civismo e de amor ao próximo. E com isso estarão contribuindo para que essa doença seja erradicada de nossa mui amada e invicta Évora.

Não sabia Marcos ao certo de que Évora seria invicta, pois não lhe constava que ela tivesse participado de alguma guerra ou batalha. No máximo a sede da Fazenda Ingazeira, que quatro ou cinco anos depois seria destruída pelo proprietário, para fazer um centro comercial, abrigara uma tropa do tenente Simplício José da Silva, quando este seguira em perseguição ao comandante português João José da Cunha Fidié, em verdadeira guerra de guerrilha, com algumas escaramuças, durante trecho do percurso do velho cabo de guerra em direção a Caxias – MA.

Coube-lhe percorrer duas grandes ruas, no centro da cidade. Embora seus pais fossem zelosos na criação dos filhos, induzindo-os à responsabilidade nos estudos e no respeito ao próximo, mormente aos mais velhos, e a não praticarem o mal, Marcos era criado com bastante liberdade e sem necessidade de executar trabalhos domésticos ou outros, de forma que esse serviço de visitação aos moradores das ruas Cajueiro e Marechal Taumaturgo de Azevedo foi o primeiro serviço de monta, que iria realizar.

Apesar de sua inexperiência laboral, encarou a missão com muita responsabilidade e afinco. Foi metódico e determinado, e entrou em todas as casas, fossem as mais ricas ou as mais pobres, com exceção apenas, claro, das que se encontravam fechadas, que registrou, para depois retornar. Explicava com toda paciência as vantagens da vacinação; esclarecia que não havia efeitos colaterais e, se necessário, anotava em um pedaço de papel os dias, o horário e o endereço dos postos em que haveria a aplicação. Ele mesmo ficou um tanto admirado de seu senso do dever e de responsabilidade, e incorporou essas virtudes por toda a sua vida, sobretudo quando veio a se tornar servidor público federal.

Numa das casas da Rua Cajueiro encontrou Madalena. Teria ela em torno de 35 anos de idade, um pouco mais, um pouco menos. Estatura mediana, morena, de curvas bem definidas, porém esbelta, talvez porque não tivera filhos. Os cabelos castanhos, ondulados, lhe desciam até a altura dos ombros. A sensualidade lhe parecia emanar de todos os poros.

Marcos a conhecia de vista, e lhe admirava a beleza e a elegância, e mais ainda o discreto requebro de seu caminhar, algo sinuoso, quase a insinuar uma dança. Seu marido era um médico do SESP, já considerado um tanto envelhecido. Talvez fosse vinte anos mais velho que ela, mas a calvície lhe emprestava bem mais idade. Ambos eram naturais de Belo Horizonte. Madalena recebeu o rapaz com um leve sorriso, e notando-lhe certa timidez o tratou com muita cortesia.


Pediu que Marcos se sentasse a uma grande mesa, que havia na sala, e pediu licença para fazer algumas recomendações à empregada, que se encontrava na cozinha. Quando retornou, poucos minutos depois, uma onda de inebriante e agradável perfume envolveu o ambiente.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

LEMBRANÇAS DE RUI BARBOSA


LEMBRANÇAS DE RUI BARBOSA

Cunha e Silva Filho

                 Não sou  especialista das obras  jurídicas e literárias legadas  por Rui Barbosa nem tampouco da sua biografia. Sou apenas um admirador  do seu talento. O que exponho neste artigo são comentários  alusivos  a esse brasileiro afamado sobretudo pela sua  grande inteligência, saber  jurídico,  sua erudição espantosa,  seu conhecimento  humanístico, sua vocação  para as línguas  clássicas e modernas, alguns lances de sua  vida pessoal  que vim a saber, um dos quais  através  do meu pai, ou que eu mesmo  colhi da pouca leitura que fiz  da sua extensa  e variada obra. Nem mesmo cheguei a ler por inteiro  a importante  biografia  de Rui escrita por  Luís Viana Filho, membro da  Academia  Brasileira de Letras. Um velho exemplar tinha  desse livro na biblioteca de meu pai que,  por lapso de memória,  não  mencionei em livro que vou lançar  brevemente.
             Tanto no  período de adolescência em Teresina  quanto  no meu  tempo  de residência  no Rio de Janeiro,  a figura  de Rui esteve de alguma forma  presente no horizonte de minhas leituras. Primeiro,  através de textos   dele incluídos  em livros didáticos  e aqui me recordo de que, num livro do professor  Enéias Martins de Barros para os anos  do ginásio,  havia uma epígrafe   utilizada numa das primeiras páginas de um volume, que dizia (e de que jamais  esqueci):”Uma raça, cujo espírito  não respeita  seu solo e seu idioma,  entrega a  alma ao estrangeiro antes de ser por ele absorvida” Não me dei ao trabalho  de localizar a obra em que  essa frase   se encontra nem é meu propósito  nestas linhas.
           Ora, ao  reler ou relembrar aquela citação de Rui,  sempre a associei à condição dos cidadãos, no caso,  brasileiros,  que  preferem  falar melhor e escrever  uma, duas, três ou mais línguas estrangeiras sem se aprofundar, primeiro e principalmente, no seu  próprio idioma. Não é exagero o que lhe falo, leitor,  sobre  esse tipo de pessoa.Delas há e muitas. Não dominam  o vernáculo e já saem por aí  vendendo a alma ao  estrangeiro.
          Entretanto,  me parece procedente a  crítica de Rui dirigida  a  uma espécie  de  gosto  e de submissão  eurocêntrica ou  americanófila  não só de hoje mas no passado. Sendo um vernaculista extremoso, um fascinado  pela língua  portuguesa,  um  prosador  clássico, que bebeu nas fontes de Vieira,  de Camilo e de Castilho, ou como  didaticamente, Enéas Martins de Barros definiu suas qualidades  de estilo de linguagem, ao dizer que de Vieira aproveitou   a correção, de Camilo,  o vocabulário de Castilho,  a harmonia. Alfredo Bosi ( na sua História  concisa da literatura brasileira) refere também, na aquisição de seu   estilo, as contribuições da cultura clássica de Cícero, Quintiliano, Isócrates e, em língua  portuguesa,  ainda  inclui a influência do potencial  léxico de Herculano, a sintaxe de Bernardes
         Diante de tais atributos estilísticos,  Rui tinha  condições  de  censurar  aqueles   que relevavam a sua língua-mãe a um plano  secundário com  relação   à  outras línguas modernas. Com o seu espantoso  conhecimento  da língua portuguesa,  podia-se dar ao luxo de dominar  outras línguas,  como  o inglês, o espanhol, o francês, o alemão.
       Me contou meu pai – admirador  de Rui a ponto de, em Amarante, PI,  fundar uma  escola  a que deu o nome de Ateneu  Rui Barbosa -  que, certa feita,  no tempo  em que  morava no Rio  como estudante  salesiano,  tendo ido a um colégio em Petrópolis, lhe disseram que há uma semana  ali  havia  passado  Rui Barbosa  em visita  ao colégio. Um estudante,   vendo Rui Barbosa caminhando por um corredor à sua frente,  lhe dirigiu  essas palavras: "Viva  o reverendo (sic!) Rui Barbosa!” Rui,  voltou-se para ele e lhe deu um sorriso. Houve uma  gargalhada geral dos coleguinhas  do  pequeno  estudante.
      Na Academia   Brasileira de Letras,  da qual  Rui foi  fundador  junto com Joaquim Nabuco,  Machado de Assis e Lúcio de Mendonça, meu pai  dizia que só  por  um acadêmico  Rui revelava   especial  respeito do ângulo filológico  e de polemista,  o  exímio latinista  Carlos de Laet.
      Na voz do povo, Rui  era o máximo, o mais  inteligente brasileiro de então. Nascera em  Salvador,  em 1845. Morreu em Petrópolis em 1923.
      Ainda me relatou meu pai,  em  costumeiras conversas  comigo em Teresina,  que, uma vez, indo para Petrópolis,  Rui  começou a  conversar com um companheiro de viagem  sobre assuntos  gerais,  os quais,  depois,   se voltaram  para  temas de  medicina. A uma  certa  altura do diálogo,  o companheiro de Rui lhe perguntou: “O Sr. é médico?” “Não, sou   advogado.” “Pois, senhor,  eu tinha quase a certeza de que o senhor era médico pelo conheci mento  que revelou ter dessa  área de  estudos.”
      Perseguido por sua ideias políticas contrárias ao governo de  Floriano  Peixoto,   Rui viu-se obrigado a se exilar na Inglaterra.Logo que  pisou  em solo britânico,  Rui mandou afixar um cartaz  - creio -  no lugar em que foi  morar,  com os seguintes   dizeres: “Ensina-se inglês aos ingleses.” Esse período de residência em Londres, redeu-lhe uma obra Cartas da Inglaterra(1896).
     Jurista de fama  internacional, Rui Barbosa  teve o grande  privilégio de ser convidado  para representar o Brasil  na Segunda Conferência de Paz em Haia (Deuxième Conférence de la Paix. Actes et Discours, La Haye,1907), na qual  brilhantemente defendeu a situação das  “pequenas nações.” De sua  atuação formidável como orador   e  intelectual  de assombroso  conhecimento  jurídico, sendo aplaudido entusiasticamente por  diplomatas e estadistas presentes, veio-lhe a conhecida  antonomásia de  “O águia de Haia.”    
     Outra participação de alta relevância do grande estudioso, político, escritor,  tradutor   e orador  brasileiro  foi  a polêmica filológica   que travou com um seu ex-professor de língua  portuguesa de Salvador,  Dr. Ernesto Carneiro  Ribeiro a propósito da “Redação do Código  Civil Brasileiro.”  Dela   resultou uma obra   de alta profundidade filológica, Réplica (1903).       
     Essa  famosíssima  polêmica entre Rui e seu ex-professor de língua portuguesa merece uma síntese  de seus  fundamentos.  A raiz da polêmica   foi  a  redação do Código  Civil  a ser elaborado  pelo  jurista Clóvis Beviláquia  a pedido do  então Ministro da Justiça, Epitácio  Pessoa, no governo do presidente Campos Sales.  A redação  de Clóvis  Beviláquia  valeu-lhe  várias censuras  por parte de Rui Barbosa. Para contornar  esse impasse,  foi incumbido de  fazer a revisão do Código Civil o respeitado  professor, Dr. Ernesto Carneiro  Ribeiro.   
        Rui Barbosa, a despeito disso,   não  concordou com a revisão  feita pelo ex-mestre, sobretudo  no terreno da gramática e por isso apresentou, na condição de presidente da Comissão  do Senado,  várias  folhas de apontamentos  mostrando   suas discordâncias  gramaticais  em relação  à revisão de Ernesto Carneiro  Ribeiro, que, por suja vez, rebatendo as críticas de Rui, redigiu o texto “Ligeiras  observações sobre as emendas do Dr. Rui Barbosa”   e o fez publicar no Diário do Congresso.
       O Código  Civil  foi  aprovado, mas a polêmica entre Rui e seu  ex-professor continuou até que  Rui,  organizou seus  apontamentos  e suas  divergências  numa das obras mais  respeitadas  no  domínio da filologia  portuguesa, considerada pelos estudiosos  como um “monumento”  de estilo e de profundidade  de  conhecimentos  do vernáculo. 
      Foi a mencionada  Réplica. Seu ex-mestre, por seu turno,  não se deu  por vencido e resolveu  dar uma outra resposta  às censuras  de Rui,  fazendo vir a lume  a obra Tréplica, a versão em livro  criticando as emendas  que  Rui Barbosa lhe  fizera à  revisão do Código Civil de Beviláqua.
     Assim que cheguei ao Rio, em 1964,  adquirira um livrinho  das Edições de Ouro que constituíam  um apanhado de cartas de Rui Barbosa dirigidas à noiva, Maria Augusta. Não recordo mais do título. Contudo,  ficava admirado  do estilo  epistolar  de Rui à sua amada, com  comoventes  declarações de amor  e de  afetividade, escritas em estilo  menos   arcaizante,  menos clássico, e apenas  refletindo  o gênero  mais leve da comunicação  familiar  e amorosa. Li aquelas cartas de Rui no intervalo de viagens de  trem   do subúrbio  da Central para o centro do Rio nos meus primeiros  meses de vida nessa cidade.
         Me lembro de  que eram  cartas  cativantes  onde o  grande  escritor e homem publico  mostrava  seu lado  mais  íntimo de manifestar  seus sentimentos  com traços  até românticos. Me  vem à mente  outro livro que,  à época,  li de  Rui  Barbosa. Era um ensaio  biográfico  sobre José Bonifácio, um livro  digno  do melhor  estilo  ruibarbosiano. Esse ensaio  mencionei  no meu livro As ideias no tempo (2010).  E uma frase  dele me ficou marcada  na memória: “A morte nos cerca de todos os lados.” – sentenciava  Rui.   Outro  texto  fundamental que li de Rui é o conhecido “Oração aos Moços” -  um belíssimo  texto atualizado, na sua abrangência  ética, até para os dias de hoje.


        Por outro lado,  outra carta  de Rui que,  salvo erro,  li na obra  de Luís Viana Filho era uma carta  em inglês  de Rui a alguém no Brasil, não sei se endereçada a uma amigo ou a um familiar. Só relembro que a reprodução da carta escrita à mão, em fac-símile,   tinha uma letra miúda,  com  rasuras no corpo da missiva e, por incrível que parece, foi nessa carta que  aprendi o que em inglês  queria dizer a  linda  palavra "orvalho" (em inglês,“dew”), assim aprendida naquele contexto  epistolar e não num  texto  de uma  obra  de ficção ou poesia. A memória tem dessas coisas que nos surpreendem na aprendizagem de uma língua. Minha memória é visual, léxica,  fisionômica,  em geral sinestésica.   

segunda-feira, 23 de maio de 2016

ADIÓS


ADIÓS

Alcenor Candeira Filho

Con la más díscola tristeza
yo te digo adiós
en esta hora larga y amarga
sin dirección.

Y yo te digo adiós
en el descanso de los dias
extintos ahora.

Todo vuelve al silencio
en este momento
de padecimiento infinito
en que mi voz
no más te toca.

Ah!  dolorosa hora
de oídos abiertos
solamente para el viento!

En im casa
no queda sino
la seña
de tu riso.
En mi casa
no queda sino
la sombra
de tu cuerpo.           

domingo, 22 de maio de 2016

Seleta Piauiense - Adail Coelho Maia


Segundo a Bíblia

Adail Coelho Maia (1909 - 1962)

Diz a Bíblia que o nosso Criador
Fez o mundo em seis dias, simplesmente,
Deus criou Adão, puro, inocente,
Para exaltar as glórias do Senhor.

Vendo Adão tanta luz, tanto esplendor,
Uma ideia fatal lhe veio à mente:
— Pedir um companheiro ao Onipotente,
Para gozar de tudo igual favor!

E Eva lá se vem, e Adão vencido,
Foi levado a um pomar, por entre trevas,
Para comer de um fruto proibido!

E por castigo eterno ao crime bruto,
O pomar inda existe, e novas Evas,
Com a mesma história do maldito fruto!...   

sábado, 21 de maio de 2016

Comentário de Alcenor a Histórias de Évora

            
Alcenor visto por Fernando di Castro
Gervásio Castro por Gervásio a fazer a charge de Elmar


            Recebi o e-mail abaixo do poeta e escritor Alcenor Candeira Filho, meu amigo há várias décadas, desde que fui morar em Parnaíba, em meados de 1975.

            Logo após o seu comentário, segue minha resposta, em que esclareço suas dúvidas e faço outras observações.


             Prezado amigo Elmar,

          Venho acompanhando com grande interesse a publicação semanal de cada capítulo de HISTÓRIAS DE ÉVORA. Acabo de ler o de nº VI, através do qual começo a perceber melhor o que constituirá verdadeiramente a essência do núcleo dramático central dessa obra de ficção.  Presumo que com a continuação e a conclusão do livro, o leitor vai constatar que não se trata de obra de ficção erótica como pode parecer até agora, mas de romance de caráter memorialístico e autobiográfico onde o apelo sexual, tão presente nos capítulos iniciais e que provavelmente reaparecerá em outros, não passa de detalhe no meio de vários episódios "pitorescos, jocosos e escabrosos" (Cap. VI) que serão ainda apresentados e que marcaram a mocidade de Marcos, personagem autobiográfico.

          Não sei se estou no rumo certo, mas com certeza a fictícia Évora é na verdade a cidade de Parnaíba, onde o autor morou na juventude.  As alusões a POEMITOS DA PARNAÍBA (poemas de Elmar Carvalho e ilustrações de Gervásio Castro), a MEMÓRIAS e a MEMÓRIAS INACABADAS (Humberto de Campos), a TOMEI UM ITA NO NORTE (Renato Castelo Branco) e ao cabaré QG (Quartel General) localizado "no centro histórico de Évora", isto é, na rua Conde D'Eu,em Parnaíba,  me induz a essa convicção. E mais: a "Casa Britânica" de propriedade de "James Cavalcante Taylor" (Cap. II) não será em verdade a tradicional Casa Inglesa, sediada no centro histórico de Parnaíba e de propriedade de James Frederick Clark?

          Na expectativa da leitura dos futuros capítulos, despeço-me do amigo com um grande abraço e com os parabéns pela forma inteligente, artística e criativa com que vem construindo o romance HISTÓRIAS DE ÉVORA.

Parnaíba, 20-05-2016.

Alcenor Candeira Filho


                 Caro amigo Alcenor,

            Você é um observador arguto, uma vez que é leitor compulsivo há longos anos, professor de literatura há várias décadas, bem como profundo conhecedor de crítica e de teoria literária.

            De fato, como você bem notou e anotou, o meu romance em construção não irá descambar para o meramente erótico; mas não poderia deixar de ferir essa temática, uma vez que o protagonista é um adolescente, no começo de suas descobertas sexuais. Certamente é uma personagem em formação, mas chegará à juventude e maturidade.

            Embora Marcos não seja um meu alter ego, contudo alguns episódios desse romance terão algo de autobiográfico, mas também registrarão “causos” e fatos acontecidos com parentes, amigos e conhecidos, além de conter estórias e histórias que ouvi contar ao longo de minha vida. Mas todos esses fatos e façanhas serão bastante modificados, misturados com outros, exagerados ou mitigados, para que os personagens verdadeiros não possam ser identificados e para que eu não venha a sofrer eventual ação indenizatória. Muitas cenas e cenários serão pura ficção, claro.

            Évora é uma cidade fictícia, situada no Nordeste do Brasil, não sei se exatamente no Piauí. Todavia, terá muita coisa de Parnaíba (como você muito bem identificou), de Campo Maior e, em menor escala, de outras cidades piauienses. Foi um recurso de que lancei mão para dificultar o reconhecimento de certos episódios romanescos como sendo da chamada vida real.

            Com relação à Casa Britânica, devo esclarecer que muitas grandes firmas, com matrizes em Parnaíba, tinham filiais em Campo Maior. Quanto ao QG, outros cabarés serão evocados, com o próprio ou com nomes fictícios. De qualquer forma, como pano de fundo, o romance terá uma contextualização sociológica, histórica, econômica e antropológica, ainda que de forma superficial, pois para mim o mais importante serão as histórias que irei narrar.

            Conquanto eu vá utilizar recursos da considerada vanguarda literária, como eventuais saltos cronológicos para o passado ou para o futuro, fluxo de consciência, intercalações de outros discursos, que não apenas o do narrador onisciente e onipresente, não pretendo fazer um romance para romancistas e “entendidos”, mas que possa ser compreendido e fruído por um leitor comum, sem hermetismos de nenhum forma. Por conseguinte, pretendo contar estórias que possam despertar o prazer de quem venha a lê-lo; ao menos é esta a minha intenção, que desejo conseguir.

            Os autores citados no capítulo VI (evidentemente com exceção deste neófito romancista) são grandes memorialistas, da predileção de Marcos Azevedo, que eu quis homenagear.

            Em resumo: você desvendou o enigma, não totalmente na íntegra, mas acertou nas asas da “mosca” e a deixou fora de combate.

Teresina, 21-05-2016.

Elmar Carvalho

quinta-feira, 19 de maio de 2016

HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo VI




HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

           Capítulo VI

Évora e suas histórias

Elmar Carvalho

Além de escrever poemas e crônicas, que publicava no jornal mural O Arauto, e esporadicamente no jornal tipográfico A Batalha, Marcos tinha o projeto literário de escrever três livros. Num deles iria contar fatos pitorescos, picarescos, jocosos e mesmo escabrosos acontecidos em sua cidade; teria o título de Histórias de Évora. Os outros dois seriam intitulados Memórias e Mitologia de Évora.

A idealização deste último fora inspirada no livro PoeMitos da Parnaíba, do poeta Elmar Carvalho, com quem se correspondia, através de cartas enviadas pelos Correios. Seria em prosa, mas a exemplo de PoeMitos, iria falar das figuras populares, folclóricas, engraçadas de Évora; pessoas que jamais fariam parte da chamada história oficial, mas que integravam a paisagem humana eborense, com toda a sua pungência, tragicidade, humor e folclore, cujos episódios, muitos revestidos de uma aura lendária e fantástica, eram refertos de encanto e magia.  

Não bastasse a sua prodigiosa memória para armazenar estórias, histórias e “causos”, tinha uma caderneta em que fazia suas anotações. Para concretizar seu projeto literário, fazia entrevistas com prostitutas, madames de cabaré, pessoas idosas, e principalmente com os protagonistas dessas histórias, ou, na falta destes, com os seus descendentes, amigos e familiares. Colhia informações em lápides de igrejas e cemitérios, em velhos alfarrábios e acervos de sacristia, cartórios e delegacias, além de arquivos particulares e públicos. Mitologia de Évora foi escrito e publicado quando Marcos completou 35 anos de idade, já casado e com dois filhos. Histórias de Évora veio a lume quando ele completou meio século de vida, e foi o presente de aniversário que ele se deu a si mesmo.

As Memórias foram iniciadas no dia em que ele completou 60 anos e encerradas exatamente um ano depois. Ao longo de sua vida ele havia lido e relido o livro homônimo de Humberto de Campos, que ele considerava um dos melhores do gênero.

Alguns dos trechos antológicos dessa obra ele já conhecia desde a sua meninice, como o episódio do cajueiro, que o ilustre memorialista plantara quando ainda era criança e morava em Parnaíba, perto de onde hoje se ergue a imponente Praça Santo Antônio, com a sua elegante penumbra proporcionada pelos enormes e frondosos oitizeiros. Também lhe comoveram as narrativas da morte de seu pai, ocorrida em Miritiba, no Maranhão, hoje cidade que leva o seu nome, e o episódio do brinquedo roubado, pungente, a nos ferir a sensibilidade e a alma.

A fim de angariar experiência nesse filão memorialístico, que foi praticamente um projeto de toda a sua vida, leu e releu Confesso que vivi, de Pablo Neruda, com as suas fantasias e a sua torrencial e poética linguagem, pictórica, pluviosa, cheia de imagens, goteiras e metáforas. Degustou todos os volumes da monumental obra memorialística de Pedro Nava, considerada paradigmática no gênero.

Com invulgar atenção leu Tomei um Ita no Norte, do escritor parnaibano Renato Castelo Branco, que num estilo elegante, conciso e cristalino contou muitos fatos interessantes e pitorescos da pequenina Parnaíba de sua meninice, além de vários outros que permearam a sua longa existência de homem das letras e da publicidade. O livro é povoado de figuras humanas dos mais diferentes caracteres, algumas excêntricas, outras boêmias, todas notáveis a seu modo. Renato tinha o que contar. E sabia contar.

Por último, com muito encantamento, leu a colossal (tanto no tamanho como na qualidade) obra memorialística Rua da Glória, em quatro volumes, de Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro. Escrita com esmero, com riqueza de detalhes, em linguagem enxuta e torneada, contudo sem desnecessários floreios, narra fatos que nos atraem a atenção, pelo que têm de pungente e de inusitado, além de referir pessoas com quem manteve contato, parentes ou amigos. De tudo isso e também por causa das referências e transcrições, se depreende que o seu autor, além de erudito, é meticuloso, exato e apegado, tanto quanto possível, à realidade objetiva dos fatos, e não apenas à verdade subjetiva, tal como registrada em sua memória.

Com a leitura dessas e de outras obras, de posse do vasto material armazenado em sua memória e anotado em sua caderneta, Marcos, em sua maturidade e no dealbar de sua velhice, com o seu estilo literário já consolidado, se sentiu apto a escrever as obras que havia planejado, todas precisando de sua boa memória. Não esperou mais, com medo da visita da “indesejada das gentes” ou do abominável alemão Alzheimer.


E pôde escrever as suas fantásticas, fantasiosas, corriqueiras, contraditórias e verdadeiras Histórias de Évora. 

quarta-feira, 18 de maio de 2016

A Coleção Centenário


A Coleção Centenário

Rogel Samuel (*)

Recebo, com emoção e surpresa, a totalidade da COLEÇÃO CENTENÁRIO, da Academia Piauiense de Letras. E começo a leitura imediata pelo livro de João Pinheiro, “Literatura piauiense”, onde, é claro, meus olhos buscam logo o poeta Taumaturgo Vaz, que viveu e produziu no Amazonas.

Então passo a ler a obra do famoso Félix Pacheco e de Hardi Filho.

No livro de João Pinheiro encontro várias páginas de referência ao herói Gregório Thaumaturgo de Azevedo, fundador da cidade de Cruzeiro do Sul, governador do Piauí e do Amazonas, erudito, autor de várias obras, inclusive “O Acre”, em colaboração com o sábio Clóvis Beviláqua.

O Piauí pode-se considerar orgulhoso pela publicação dessa Coleção, atualmente de 52 livros, mas que deve chegar a 100 volumes.

Espero que não se esqueçam de publicar a obra do Castelinho, o Carlos Castelo Branco, o maior cronista político de minha geração, que era membro das Academias Piauiense e Brasileira de Letras.

Castelinho faz falta hoje. Ele era o autor que eu lia diariamente pelo jornal durante creio que 20 anos.

Sua opinião era segura.

(*) Rogel Samuel é crítico literário, romancista, professor aposentado do Departamento de Pós-gradução em Literatura da UFRJ


Fonte: Portal Entre-textos

segunda-feira, 16 de maio de 2016

INVERSÃO DE PRIORIDADES


INVERSÃO DE PRIORIDADES

Jacob Fortes

A Tocha Olímpica, símbolo dos Jogos Olímpicos, percorre várias cidades do Brasil. Porém, algumas prefeituras (Ipatinga, Betim, MG), movidas pela escassez severa de recursos, desistiram de recepcionar o dispendioso evento.

Enquanto a Tocha, cheia de distinção e glamour, percorre, aparatosamente, as cidades brasileiras, as escolas municipais de Bom Jardim, MA, sucumbem. Exibindo trapagem que deprime, desonra o Brasil, e humilha maranhenses, uma delas (reportagem de Alex Barbosa da Rede Globo), se destaca pelo cenário trágico, próprio de escombro: um barracão taipado, teto de palha e piso de chão batido onde o lampião a gás, no papel de energia elétrica, se esforça, debalde, para clarear a sala. Os alunos noturnos são instados a fazerem-se acompanhar das suas lamparinas ou lanternas.  As duas únicas salas são divididas apenas por uma lona. Sem banheiro, os alunos recorrem a um buraco, insólito, nas proximidades escuras, cuja orla orbicular é protegida por uma cerca feita de palha. Toda essa indignidade, metida em cabresto, ou dignidade confiscada, (denúncia do Jornal Nacional) refletem os efeitos nocentes da corrupção.  A ex-prefeita, Lidiane Leite, depois de pompear abundantes sinais de riqueza, fora presa por haver furtado o dinheiro da educação; já se encontra em liberdade, porém encobrindo a simbologia do crime: uma tornozeleira eletrônica. À parte a corrupção, a Tocha Olímpica testifica que o Brasil ainda não se libertou inteiramente da cegueira que enevoa as lentes do seu horizonte ao permitir que o acessório prepondere sobre o essencial. A bem dizer, os dispêndios com a Tocha Olímpica deveriam ocorrer somente quando o País eliminasse os “educandários” alumiados à moda colonial, isto é, por luz de lampião ou lamparina. A inversão de prioridade constitui ultraje à “pátria educadora”.     

domingo, 15 de maio de 2016

CETICISMO


CETICISMO

Elmar Carvalho

Náufrago de uma tempestade
num copo dágua,
escuto o canto da desgraça
como um chamado de sereia.
Pregado numa cruz invisível,
de cabeça para baixo,
tenho os braços fechados
em sinal de protesto.
Herói morto de
um sonho desfeito,
tenho como epitáfio
a solidão e o
esquecimento.
Cantor do silêncio,
tenho a lira sem cordas
e as mãos paralíticas.
Pássaro-símbolo da liberdade,
tenho as asas quebradas e a
garganta afônica.
Mendigo da solidão,
tenho as mãos vazias.
Descendente de troglodita,
sou menos que um
macaco.
Partícula de mim mesmo,
sou menos que uma célula
fragmentada.
Resumo de mim mesmo
uma expressão me resume:
o NADA absoluto.


           Parnaíba, 04.09.77

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Ana Jansen, tresloucada rainha do Maranhão


Ana Jansen, tresloucada rainha do Maranhão

José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com

            Nestes últimos dias, não me desgrudei do noticiário sobre sessões longas e desgastantes da Câmara e do Senado, para definir a sorte da presidente Dilma. Houve até momento hilariante: deputado Waldir Maranhão, que substituiu Eduardo Cunha na presidência da Câmara, redigiu, de madrugada, uma decisão autoritária para anular 367 votos dos parlamentares... Todo mundo sabe o resultado dessa presunçosa e risível atitude, de repercussão internacional. E fui dormir, pensando nas asneiras do aloprado parlamentar maranhense. E olhe só o que sonhei.

         Ana Joaquina Jansen, descendente de aristocratas europeus, nasceu em 1797, em São Luís, Maranhão. Ainda criança, sofrera pobreza e abandono. Casou-se e enviuvou duas vezes, conseguindo acumular imensa fortuna. Comerciante de invejáveis méritos, poderosa, milionária, forte influência social e política, temida na cidade, uma lenda.

         Donana, como era chamada, faleceu em 1869, deixando inúmeros imóveis, inimigos políticos e desafetos. Perversa, exercia crueldade com os inúmeros escravos, torturando-os até à morte. Para não sujar os longos vestidos, obrigava-os a se deitar na lama para atravessar a rua.

         Ana Jansen acumulou riqueza colocando escravaos para recolher penicos de urina e cocô da cidade. Conta-se que um dos inimigos de Donana, comendador Meireles, rico comerciante, mandou fabricar centenas de belos penicos de louça na Inglaterra, com a cara da velha no fundo do vaso, para vender, quase de graça, na sua loja. Donana suportou com paciência a gozação das ruas, mandando comprar dois, três ou mais penicos de cada vez, até esgotar o produto. Costumava-se usar penicos nas residências, até há algumas décadas, hoje substituídos por banheiros internos.

         A poderosa e rica Jansen recebeu a alcunha de Rainha do Maranhão. Firmou-se como vendedora de água, pelos escravos, e não aceitava concorrências com técnicas mais avançadas. Proprietária das maiores produtoras de cana de açúcar e algodão do império, além de numerosos escravos. Habilidosa política, costurava acordos nos bastidores, patrocinou batalhas da Balaiada e de Duque de Caxias.

         Depois de falecida, muitas histórias se contam, algumas lendária, que despertam curiosidade e material para literatura, No cinema, aparece como LENDA DE ANA JANSEN, produção da Globo.


         Num país onde famosos viram reis da fantasia, fica fácil, muito fácil, homenagem ao Rei Roberto Carlos, Rei Pelé, Rei da Soja, Rei Luís Gonzaga. Até um jogador de futebos de Minas virou rei nos anos 70. Joaquina Ana Jansen, Rainha do Maranhão não faz exceção. Salvo se um presidente temporão da Câmara ultrapasse os limites da arrogância, servindo de chacota, até para aparecer em fundos de penicos de louça.     

quinta-feira, 12 de maio de 2016

HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo V



HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos foram sendo escritos.

            Capítulo V

A iniciação sexual de Marcos

Elmar Carvalho

O QG ficava no centro histórico de Évora. Era considerado um dos melhores cabarés da cidade. A madame Doralice, embora educada e também instruída para os padrões da época, impunha respeito e ordem no ambiente, de modo que todos se comportavam de maneira conveniente, sob pena de ser convidado a se retirar. Ocupava um casarão antigo, conhecido como Solar da Rosa dos Ventos, que se via estampada nos mosaicos do imenso salão, que na verdade era o átrio, de onde, através do largo corredor, se acessava os quartos, que lhe ficavam de um lado e outro.

Quando Marcos e seus amigos chegaram ao Quartel General havia poucos clientes, de modo que eles escolheram uma mesa posta num dos cantos, ao fundo, onde ficariam mais à vontade. O plantel de mulheres já estava em “exposição”, em lugares estratégicos, como se elas fossem manequins em vitrine. Quase todas vestiam roupas curtas e de generosos decotes, e se apresentavam maquiadas e com unhas bem cuidadas.

Uma delas, uma cabrocha morena, quase ainda uma ninfeta, de carnes firmes e de acentuadas curvas, era muito assediada, e no intervalo de apenas duas horas foi, sucessivamente, para o quarto com quatro ou cinco rapazes. Estava sendo muito rentável para a casa, pois, além da bebida consumida pelos clientes, estes ainda tinham que pagar a chave do “abatedouro”, cuja taxa ficava toda para a proprietária. Os honorários das raparigas eram pagos “de fora à parte”, quase sempre combinados antes de adentrarem a alcova.

Fabrício Moreira se dava com a madame Doralice, que sempre lhe fornecia carne fresca, saudável, recém chegada ao lupanar. Ela era cliente da loja do pai do rapaz. Graças à intermediação deste comprara no crediário, em módicas e suaves prestações, a mais luxuosa e eficiente vitrola disponível, possuidora de um dispositivo em que poderiam ser colocados vários LP's de uma única vez, que ela ia tocando de forma automática.

Logo após o segundo copo de cerveja, ele foi falar com Doralice, sobre a possibilidade de ela ser a “professora” de Marcos em sua iniciação sexual, tendo ela ficado muito honrada com a missão. Seria ele recebido, com todas as honras e cuidados, em seu próprio dormitório, o mais luxuoso e espaçoso do prostíbulo.

Ficou acertado que tão logo Marcos se sentisse mais à vontade a procuraria. Fabrício retornou à mesa onde estavam seus amigos e explicou a Marcos o que acertara com a madame, mulher bonita, asseada, ainda nova e, segundo comentavam, muito fogosa. Talvez ela tivesse entre 35 e 40 anos, mas ainda se mostrava exuberante em suas formas curvilíneas e na textura da pele sem manchas e cicatrizes.

Doralice, após algum tempo, veio até a mesa dos três rapazes, para cumprimentá-los, e quando se despediu, Marcos a acompanhou. Foram para a grande suíte. Marcos, no ímpeto de sua juventude, a beijou com sofreguidão e a acariciou, graças à experiência angariada nas danças e nos “amassos” ou “pinos” de seus eventuais namoros. Aos poucos foram se desnudando, até se deitarem no grande e fofo colchão. Não irei, amigo leitor, entrar em detalhes sobre o que aconteceu ou deixou de acontecer. Deixo-o livre para imaginar o que bem lhe aprouver, conforme a sua capacidade imaginativa.

Contudo, algo inusitado aconteceu. Doralice, em dado momento, estrebuchou e escaramuçou agoniada; gemeu muito, e pronunciou sons ininteligíveis, que mais pareciam grunhidos, como se fosse morrer. De repente, distendeu-se toda, e retesa abraçou o parceiro com muita força, como se quisesse (na velha imagem) fundir-se com ele, suada e tremendo, como se estivesse tendo um ataque de sezão ou calafrio. Ao retesar-se, as juntas de sua espinha dorsal estalaram, como se estivessem se partindo, semelhante às vergas de um navio ante forte temporal. Com as pernas o enlaçou com força, como se fosse o bote de uma jiboia, fazendo com grande maestria a conhecida chave de pernas.
   
Todavia, o rapaz simplesmente não conseguiu atingir o orgasmo. Talvez ansioso, com medo de falhar, ou sugestionado com a conversa do Mário Cunha, sobre os supostos ou verdadeiros efeitos da bebida, não ejaculou, de modo que seu membro se manteve ereto por quase uma hora, até que Doralice, com bons modos, muita delicadeza e muito veludo em sua voz suave, perguntou se o jovem não desejava “dar um tempo”, tendo ele aceitado a sugestão.

Ela então o aconselhou a não pensar em sexo. Induziu-o a relaxar. Pegou uma cerveja da geladeira que havia no quarto, e convidou o rapaz para acompanhá-la. Iniciou uma conversa amena, mas foi aos poucos revelando os seus conhecimentos, mostrando que era de fato e de direito uma verdadeira mestra e sacerdotisa do prazer, do qual dominava todos os mistérios, ritos e mitos, tanto na prática como na teoria. Na estante podiam ser vistos, além de romances, alguns livros sobre sexo, inclusive um luxuoso e ilustradíssimo Kama Sutra, em que eram vistas as mais mirabolantes, extravagantes e acrobáticas posições sexuais, cujas pinturas  foram executadas por renomados artistas. 

Revelou a moça que, por ocasião de uma doença, fora consultar-se na capital com famoso médico, que lhe fez várias perguntas sobre sua vida e hábitos. O esculápio terminou por lhe dizer que ela nascera para o sexo, e se não fosse mulher da vida, como na época se dizia, talvez viesse a ter graves problemas mentais ou psicológicos, de tal sorte que não podia ficar muito tempo afastada desse mister. Após a segunda garrafa de cerveja, convidou Marcos para irem tomar banho. Primeiro, se assearam com o uso da ducha. Em seguida, foram para a suntuosa banheira, onde se beijaram e se acariciaram a valer.

Refrescados e perfumados voltaram para a cama. A madame, mostrando então todo o seu conhecimento, obtido nos livros e na experiência, para estimular a sensibilidade de Marcos, fez coisas inefáveis, que ele jamais havia imaginado, mesmo nos sonhos mais libidinosos. Nunca ele havia sentido língua e dedos tão macios e peritos, tão adestrados, hábeis e certeiros, que mal pareciam tocar a pele.

A luz da alcova não fora apagada, de modo que o rapaz via o lindo corpo feminino refletido no espelho fixado no teto, sobretudo as costas e a esplêndida coluna dorsal, já que Doralice tomara a iniciativa de ficar por cima. Quando a mulher baixou a cabeça, para colocá-la ao lado da sua, e alteava e baixava o bumbum, no ritmado movimento, ele lhe pôde ver o perfeito contorno dos rijos glúteos, que desenhava um coração, como na monumental Apoteose de Niemeyer. Nos movimentos ascendentes via o períneo distender-se sobre seu membro, o que mais o enlouquecia. Era quase como se estivesse se vendo e vendo a mulher de fora de seu próprio corpo. 

Por fim, sentada triunfalmente sobre o rapaz, Doralice fez evoluções de verdadeira contorcionista, mostrando invejável elasticidade e preparo físico, em que girava 360 graus, e fazia movimentos ascendentes e descendentes, revolvendo-se para todos os lados, de forma espiralada, como se estivesse contornando os sulcos de um parafuso ou de uma rosca infinita. Quando descia, colocava todo o peso de seu corpo sobre os grandes lábios; o rapaz lhes sentia a umidade e o relevo no entorno da base de seu sexo. Até explodir num jato denso, intenso e quente.    

quarta-feira, 11 de maio de 2016

A Bela dos Diários


A Bela dos Diários

 Dílson  Lages (*)

O professor de Teoria Literária Salvatore D'Onofrio, em Teoria do Texto - Prolegômenos e Teoria da Narrativa, evidencia que "os personagens constituem os suportes vivos da ação e os veículos das ideias que povoam as narrativas". Por essa razão, segundo o pesquisador, o estudo dos personagens deveria ocorrer simultaneamente ao das sequências narrativas, porque "a caracterização dos personagens ilumina o sentido da história e vice-versa".

A assertiva de D'Onofrio serve para dialogar com os temas e o estilo de "A Bela dos Diários", reunião de treze contos de Austregésilo Brito, nome de obra já consolidada  na literatura piauiense, por meio de livros de contos como Fetiche e Algodões. Austré Brito centra-se em praticamente todos os contos - como uma das estratégias maiores da interlocução com os leitores - no superdimensionamento dos personagens e das ambientações em que eles se inserem. Esse, alias, é sem dúvidas o ponto de partida da gênese de suas criações, ponto em torno do qual organiza estrutural e semanticamente suas narrativas. Ao fazê-lo, sua perspicácia e estilo selecionam exclusivamente detalhes-ações que se inter-relacionam, e paradoxalmente tornam a escritura mais exata, mais fluente.

Enfatizando esses elementos, consegue o escritor provocar os leitores, ao transferir características do ambiente para os personagens e vice-versa, em processo de humanização da paisagem, por meio do qual ganham impulso as representações mentais e as associações que asseguram o deslanchar da leitura, reiteradamente, em passagens como: "O pai na bodega, o dia todo. Caminhava pra lá e pra cá, do balcão ao armazém. De passagem pela cozinha, olhava de esguelha para Elzzira. Ela correspondia. arregaçava o vestido colado ao corpo, mostrava as coxas (O primeiro amor, p.41). Quase um Albergue. Fachada comum, porta larga ao centro separava os janelões. Corredor longo da entrada à sala de jantar, de onde seguia outro corredor menor, estreito, até a cozinha ampla e semiaberta(...). No hall, o banheiro e o dormitório de dona Judite (Casa de pensão, p.57)”.

Assim é que, respectivamente, a angústia pela consumação do encontro amoroso, acentuado pela distância dos lugares sociais de ambos (o quitandeiro e Elzzira) naquele momento, funde-se ao espaço, a partir da ansiedade gerada pelos movimentos do quitandeiro e da própria Elzzira. Assim é que o desejo de controle que almejava ou pensava em ter dona Judite sobre sua pensão se apresenta na associação entre a disposição da arquitetura do recinto em que reside e o perfil do personagem em construção, mais evidente à proporção que a narrativa avança até apontar a avareza peculiar à proprietária da pensão.

Mantendo a linha de outras produções, divide-se o escritor entre dois grandes eixos. Divide-se entre o mergulho nas insatisfações e contradições da materialidade do amor, em textos de acentuado apelo erótico, e o desnudamento de dramas sociais ou das situações pitorescas das pequenas comunidades e sua gente; com a revelação, em plano secundário, de traços característicos do ethos da paisagem social dos lugarejos.

Na primeira parte de A bela dos Diários, os leitores se absorvem com narrativas cujo cerne é as contradições da paixão cega. Em algumas sequências, a ênfase com que o tema é tratado pode até chocá-los, dada a contundência do léxico ou a estilização da vulgaridade em que se revertem as cenas fundamentais dos núcleos narrativos. Personagens como Consuella, Jéssica e Úrsula – mesmo que focalizadas exclusivamente pelo olhar do desejo – e exaustivamente erotizadas, reduzidas à condição de objeto do amor – resumem o  mistério e encantamento da sedução.

Nesse sentido, recriam os narradores a aura de perplexidade própria do jogo erótico e impulsionam as carências que alimentam o prazer. Assim, deparam-se os leitores com personagens masculinos hipnotizados, à procura de explicações que não encontram ou à busca de se libertar da paixão. Confirma-se, por meio desses personagens, o que explica Maria Rita Kehl, em estudo sobre o olhar da sedução: “O olhar seduzido é perplexo. Procura recobrar o domínio de si mesmo”.

Na segunda parte do livro, os leitores encontrarão episódios pitorescos, que resgatam a temática dos contos populares, sem, contudo, estereotipar a linguagem ou modificar o modo de contar próprio de Austré. Nesses contos, a paisagem e os personagens, humanizados pela imaginação pessoal dos leitores, dão margem a antigos costumes de pequenos lugarejos, desemborcando, sempre, em inesperada situação de humor, ou, fugindo à regra dos temas dessa parte, em denúncia social - caso específico de “O caos”, no qual o drama de se locomover pelo tráfego de Teresina-PI é tratado de maneira inusitada.

“Em literatura, todo conteúdo está associado a um colorido emocional, que faz parte da informação transmitida pela obra”, escreve Vicente Jouve, enfatizando que “os textos quase sempre exemplificam emoções (a dor, a insatisfação, a tristeza), por meio de propriedades formais que as exprimem metaforicamente”. Em A Bela dos Diários, essas emoções possuem lugar certo: personagens e ambientes que dão corpo e substância à linguagem. O leitor é capturado pelos dramas, carências e desejos de cada personagem ou sorri de situações que a literatura, como a vida, revela-nos inesperadamente.

(*) Dílson Lages Monteiro é professor, diretor do Portal e Editora Entretextos e membro da Academia Piauiense de Letras (APL). E-mail: dilsonlages@uol.com.br    

Fonte: portal Entre-textos