Merquior. Fonte: Jornal Rascunho |
UMA LIÇÃO DE JOSÉ GUILHERME
MERQUIOR
Falemos, contudo, do mencionado artigo de Merquior que tem o título algo simples: “Um pouco de poesia.” O título
pouco sinaliza para a importância analítica do tema tratado: a discussão entre
a poesia de corte conteudístico(que ele não negligaenciava) e a
das vanguardas. Ora, a quem lê ensaios
do grande crítico,
o tom do texto carrega certa virulência e mesmo alguma ironia. Merquior era provocativo e polêmico. Podia-se dar a esse luxo, porquanto lhe sobrava vasta
erudição (não obstante ter vivido tão pouco), extrema capacidade argumentativa, não bastante ser
ele um conhecedor profundo da literatura universal além de dominar toda uma leitura teórica do seu tempo
em vários campos do conhecimento humano.
O núcleo do seu artigo - discussão entre poesias
pura, hermética, experimental e a poesia de estofo tradicional ou
modernista (cita, por exemplo, a superioridade de Gonçalves
Dias sobre o redescoberto Sousândrade, a
poesia comunicativa e “humilde” de Manuel Bandeira) - é, por si só, fortemente controverso visto que abre fogo contra poetas
herméticos estrangeiros e
incensados pela crítica universitária
com a qual sempre, a meu ver,
manteve certa distância, posto que tenha sido
professor na Universidade de Brasília. Lembremos que sua formação
literária, filosófica e sociológica era
apenas uma tendência inescapável de
seu intelecto, tendo em vista que, por profissão, fora
diplomata. Mas, nesses campos do
saber, atuou de forma notável, não só
por ter se doutorado em Letras pela Sorbonne, com uma tese sobre Carlos
Drummond de Andrade, mas também
realizou estudosde
sociologia na London School of
Economics.
O debate por ele
levantado no artigo em exame
visa ao seu posicionamento
quanto à questão entre,
conforme ressaltei linhas atrás,
a declarada preferência de Merquior pelos poetas nos quais a poesia
tenha como grandeza maior a sua
forma e não o culto fetichista da mera “técnica,” da obscuridade, da falta de clareza e naturalidade, enfim, da ausência
do - se assim podemos simplificar
-, do “assunto.”
Daí o ataque do autor de A astúcia da mimese (1972) contra poetas de renome como Eliot, Eza Pound, Saint-John Perse, Edgar
Allan Poe. Ao último chamou de medíocre,
com o que, porém, não concordaria por razões que não cabem neste
texto discutir. O que a crítica
de Merquior subentende é a valorização que ele dava a poetas tal foi o caso de René Char (
1907-1988), cuja poesia era,
segundo Merquior, de “(...) um
praticante de extrema concentração do sentido pela fuga sistemática da
denotação.”
A Merquior agradava poetas da estirpe de Yeats, Kavafis,
Valéry, Rilke, Pessoa, Ana Akhmatova,
Lorca, Vallejo, Drummond, Manuel
Bandeira. Para ele, esses poetas
e outros mais souberam renovar a
poesia, “ (...) dar voz ao homem
contemporâneo sem fazer do poema, a pretexto de
radicalização da linguagem, um
flácido fluxo de expressões desconexas” que fazem o regalo do que chamou de “pedantocracia, ” uma clara referência aos exegetas da literatura encastelados
nas universidades.
A crítica de Merquior, a se deduzir de
um simples artigo de jornal, define, em linhas gerais, o que para ele seria o
poeta de todos os tempos, o
poeta contemporâneo, cuja elaboração
estética para ser original,
profunda e comunicativa se
assentaria na valorização do poema no qual se fizessem presentes
alguns traços que pude
pinçar no desenvolvimento de seu arguto artigo: acessibilidade da mensagem
poética, naturalidade,
humildade, renovação da linguagem sem perder
as raízes do que se poderia denominar ”nossos clássicos” do século XX por ele mencionados no parágrafo
anteior, qualidade estética da forma, do
uso da sintaxe, “memória social,” capacidade
que um poema tenha
para se tornar “memorizável,” traço
ponderável extraído de um conceito de poesia
do poeta Eugênio Montale assim
comentado pelo ensaísta: (...) a
poesia obcecada pela técnica
reflete um problema mais geral.
Como a música sem melodia, e a pintura
sem figuras, a linguagem sem sintaxe do poema seria um ‘grosseira
materialização do ato criador’ levando a uma perda do memorizável."
A
questão do memorizável Merquior
já a ela se reportou ao estudar a poesia do piauiense Da Costa e Silva (1885-1950). No
ano comemorativo do centenário de nascimento
desse poeta, o diplomata e
crítico, na conferência “Indicações para o estudo de Da Costa e Silva,”
[1] pronunciada na Academia Piauiense de Letras, em 1984, em Teresina, Piauí, já
assinalava a força lírica que o
poeta de Sangue (1908) tinha para compor alguns poemas
que caíram na boca do povo, tais são exemplos,
os sonetos “Saudade,” “Amarante,”
“Moenda” entre outros. Ora, esta
peculiaridade, não se evidenciava apenas no poeta Da Costa e Silva, mas em outros poetas
brasileiros ( Olavo Bilac, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, por exemplo) tradicionais.
Segundo o crítico, Da Costa e Silva, tanto quanto outros poetas brasileiros, além da dimensão aristocrática de uma poesia refinada, revelavam uma outra face de seu estro muito ligada a um aspecto de oralidade comunicativa que fazia com que alguns poemas se tornassem
lembrados e declamados por gente culta ou
mesmo comum, porém sensíveis
às formas poéticas mais diretas,
i.e., poemas assim ganhavam
popularidade, eram
memorizadas.
Para o crítico, essa questão
de oralidade na composição de poemas
seria propriamente matéria de
pesquisa “de história literária ou de história da cultura.” Esse fenômeno
de gosto popular pela poesia, a
meu ver, teria relação com
um contexto histórico-cultural,
segundo foi perspicazmente observado por ele.
O que posso aduzir
dessa questão, de resto, bem curiosa
nos estudos de poesia, é o fato de que dificilmente hoje em dia
teríamos esse encantamento de cunho popular para
que apreciadores de poesia, a partir do surgimento das vanguardas
europeias, cheguem àquela fruição de
poesia memorizada. Posto que
movimentos poéticos tradicionais,
lato sensu, como Romantismo, Parnasianismo, Simbolismo
cultivassem o verso mais comunicativo (Romantismo) ou mais
sofisticado na linguagem
(Parnasianismo, parte do Modernismo e
Neoparnasianismo, geração de 45), é
evidente que os poemas de estofo conservador tiveram público
mais ampliado porque o conceito ou ideia geral, até um certo ponto ingênuos, de poesia no espírito das massas mudou, ou melhor, perdeu aquela
antiga aura de poesia entendida
como sinônimo de poema inspirado,
de sentimento, de emoção,
de musicalidade.
Ora,
a hipersofisticação advinda de
todos os
movimentos da poesia moderna
afastou a poesia de uma acessibilidade que poderia ainda se encontrar mesmo na tradição
literária no cânone poético. Alguém
escolarizado, ou mesmo o leitor
familiarizado com a poesia contemporânea
e com as vanguardas
predecessoras podem até se
deleitar com a leitura de bons ou grandes poetas
de hoje tanto brasileiros quanto
estrangeiros. Todavia, aquele
antigo gosto pela declamação ou
memorização de poemas se perdeu. Se a
poesia e a alta literatura foram por muito tempo algo apenas
destinado ao elitismo cultural,
a iniciados, com a contemporaneidade
ainda se tornou bem mais acentuado esse
círculo de receptores.
Não se pense que o
pensamento de Merquior possa ser interpretado como
um conservador nos domínios da literatura e particularmente da poesia.
Longe disso. O grande crítico não se enganava tão facilmente, e, em
assuntos de poesia, o que apenas sustentava
era que o poema não se confundisse com
um produto meramente tecnicista,
“amorfo,” sem o influxo da
vida, sem a capacidade de comunicar e emocionar, algo
que enlaçasse o humanismo à
forma, entendida como portadora de um
tema, um assunto, uma sintaxe, uma expressividade estilística e um domínio completo
da arte poética das origens aos
nossos dias, ou, conforme ele,
arrematou o artigo: (...) um canal de humanismo na
atribulada consciência da modernidade.”
[1]Ver MERQUIOR, José Guilherme. “Indicações para
um estudo da obra de Da Costa e Silva.
Revista Presença, Secretaria de Cultura, Desportos e Turismo Piauí. Ano VI,
Nº 13, Teresina, PI.. [1984]. P. 40-41. Ver
também essa conferência em SILVA,
DA Costa e. Poesias completas. 4 ed.
Nova edição rev., ampl. e anotada por Alberto da Costa e Silva. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.37-45. Ver ainda meu ensaio Da Costa e Silva:
uma leitura da saudade. Teresina: Academia Piauiense de Letras/Universidade
Federal do Piauí, 1966, 108 p. Nesse ensaio, no capítulo introdutório, seção
1,3, analiso a citada conferência-estudo
de José Guilherme Merquior, ressaltando
a questão levantada por
Merquior da popularidade de alguns poemas
do autor de Sangue entrevista na
poesia de Da Costa e Silva, p. 31-33.
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