sábado, 4 de novembro de 2017

UMA LIÇÃO DE JOSÉ GUILHERME MERQUIOR

Merquior. Fonte: Jornal Rascunho

UMA LIÇÃO DE JOSÉ GUILHERME MERQUIOR

 Cunha e Silva Filho

             Não fui procurar a data do artigo de José Guilherme Merquior (1941-1991). Apenas tenho  dele o recorte e, por descuido,  nem escrevi a data  à margem  do texto. O artigo  é do tempo em que  escreveu para o Globo numa coluna   com título “A vida das ideias,” que muito  traduz  do seu estilo de ensaísta,   historiador e pensador  brasileiro. Dele também li muitos  artigos  publicados no  velho e extinto Jornal do Brasil, Caderno Ideias. Eu costumo  guardar alguns  recortes do que  me chama a atenção, recortes sobretudo de  escritores brasileiros. Muitos   perdi em mudanças ou porque  não tinha espaço onde guardá-los. Eram muitos. Nem mesmo  sei ao certo  quantos ainda tenho. Lembro-me de artigos de Tristão de Athayde (artigos, crítica, teoria literária), Afrânio Coutinho (crítica, teoria literária,  artigos,  ), crônicas de Carlos  Drummond de Andrade (crônicas, poesia) de Otto Lara Resende (crônicas, artigos) e ultimamente de Ferreira  Gullar (crônicas ).
         Falemos, contudo,  do mencionado  artigo de Merquior  que tem o título  algo simples: “Um pouco de poesia.” O título pouco  sinaliza  para a importância analítica do tema  tratado: a discussão  entre  a poesia  de corte  conteudístico(que ele não negligaenciava) e a das vanguardas. Ora,  a quem lê ensaios do  grande  crítico,  o tom  do texto  carrega certa virulência e mesmo  alguma ironia. Merquior  era provocativo  e polêmico. Podia-se  dar a esse luxo, porquanto lhe sobrava vasta erudição (não obstante ter vivido tão pouco), extrema   capacidade argumentativa, não bastante ser ele um  conhecedor  profundo da literatura  universal além de dominar  toda uma leitura  teórica do seu  tempo   em vários  campos do  conhecimento humano.
          O núcleo  do seu artigo - discussão entre  poesias  pura, hermética, experimental e a poesia de estofo tradicional ou modernista  (cita,  por exemplo, a superioridade de Gonçalves Dias sobre o redescoberto  Sousândrade, a poesia  comunicativa  e “humilde” de Manuel Bandeira)  - é, por si só, fortemente  controverso visto que abre fogo contra  poetas  herméticos estrangeiros   e incensados pela  crítica universitária com a qual sempre, a meu ver,  manteve   certa distância,   posto que tenha  sido  professor na Universidade de Brasília. Lembremos que sua formação literária, filosófica e sociológica  era apenas uma tendência   inescapável de seu  intelecto, tendo em vista que,  por profissão,  fora  diplomata. Mas, nesses campos   do saber,   atuou de forma notável, não só por ter se doutorado em Letras pela Sorbonne, com uma tese sobre Carlos Drummond de Andrade, mas também  realizou  estudosde sociologia  na London School of Economics.
          O debate  por ele  levantado  no artigo  em exame   visa ao seu posicionamento    quanto  à questão   entre,   conforme  ressaltei linhas atrás, a declarada  preferência  de Merquior pelos  poetas nos quais  a poesia  tenha  como  grandeza maior  a sua   forma e não o culto fetichista da mera “técnica,”  da obscuridade,  da falta de clareza  e naturalidade, enfim,   da ausência  do - se assim podemos  simplificar -,  do “assunto.”
         Daí o ataque do autor de  A astúcia da mimese (1972) contra poetas  de renome como  Eliot, Eza Pound, Saint-John Perse, Edgar Allan Poe. Ao último chamou  de medíocre, com o que, porém,  não  concordaria por razões que não cabem  neste  texto discutir. O que a crítica  de Merquior  subentende   é a valorização  que ele dava a poetas  tal foi o caso de René Char ( 1907-1988),  cuja  poesia era,   segundo Merquior,  de “(...) um praticante de extrema concentração do sentido pela fuga sistemática da denotação.”
         A Merquior  agradava poetas da estirpe de Yeats, Kavafis, Valéry, Rilke, Pessoa,  Ana Akhmatova, Lorca, Vallejo, Drummond, Manuel  Bandeira. Para ele, esses poetas  e outros mais  souberam   renovar a  poesia, “ (...) dar  voz ao homem contemporâneo sem fazer do poema, a pretexto de  radicalização  da linguagem, um flácido fluxo de expressões desconexas” que fazem o regalo  do que chamou de  “pedantocracia, ”   uma clara referência aos exegetas  da literatura   encastelados  nas universidades.
        A crítica de Merquior, a se deduzir de um simples artigo  de jornal,   define, em linhas gerais,  o que para ele seria  o  poeta  de todos os tempos, o poeta  contemporâneo, cuja  elaboração  estética  para ser  original,  profunda e  comunicativa se assentaria  na valorização  do poema no qual se fizessem  presentes  alguns traços   que pude pinçar  no desenvolvimento de seu   arguto artigo:  acessibilidade  da mensagem  poética,  naturalidade, humildade,   renovação da linguagem  sem perder  as raízes  do que se poderia  denominar ”nossos clássicos”  do século XX por ele mencionados no parágrafo anteior, qualidade  estética da forma, do uso da sintaxe, “memória social,” capacidade   que  um  poema tenha  para se tornar “memorizável,”  traço ponderável   extraído de um conceito  de poesia  do poeta Eugênio Montale assim  comentado pelo  ensaísta: (...) a poesia obcecada pela técnica  reflete  um problema mais geral. Como  a música sem melodia, e a pintura sem figuras, a linguagem sem sintaxe do poema seria  um ‘grosseira  materialização do ato criador’ levando a uma perda do memorizável."
        A   questão do memorizável Merquior  já a ela se reportou  ao  estudar a poesia  do piauiense Da Costa e Silva (1885-1950). No ano comemorativo do centenário de nascimento  desse   poeta,  o diplomata e  crítico, na conferência “Indicações para o estudo de Da Costa e Silva,” [1]  pronunciada na  Academia Piauiense de Letras, em  1984, em Teresina, Piauí,   já  assinalava   a força lírica que o poeta de Sangue (1908) tinha  para compor  alguns poemas  que  caíram  na boca do povo, tais  são exemplos,  os sonetos “Saudade,” “Amarante,”  “Moenda” entre outros. Ora,  esta peculiaridade, não se evidenciava apenas no poeta  Da Costa e Silva, mas em outros  poetas  brasileiros ( Olavo Bilac, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, por exemplo)   tradicionais. 
       Segundo o crítico,  Da Costa e Silva, tanto quanto outros  poetas brasileiros, além da dimensão  aristocrática de uma  poesia refinada, revelavam  uma outra face  de seu estro muito ligada   a um aspecto de oralidade   comunicativa   que fazia com que alguns poemas  se tornassem  lembrados e  declamados  por gente culta  ou   mesmo  comum, porém   sensíveis  às formas  poéticas mais diretas, i.e.,  poemas assim    ganhavam  popularidade, eram  memorizadas.       
     Para o crítico,   essa questão  de oralidade  na composição  de poemas  seria propriamente  matéria de pesquisa  “de história literária  ou de história da cultura.” Esse  fenômeno   de gosto  popular pela poesia, a meu ver,   teria   relação com  um contexto  histórico-cultural, segundo  foi perspicazmente  observado por ele.
       O que posso  aduzir  dessa questão, de resto,  bem  curiosa  nos estudos de poesia, é o fato de que dificilmente hoje em dia teríamos   esse encantamento  de cunho popular  para  que apreciadores de poesia, a partir do surgimento das vanguardas europeias, cheguem   àquela fruição de poesia memorizada. Posto que   movimentos  poéticos tradicionais, lato sensu, como  Romantismo,  Parnasianismo,  Simbolismo  cultivassem  o verso   mais comunicativo (Romantismo)  ou mais   sofisticado   na linguagem (Parnasianismo, parte do  Modernismo e Neoparnasianismo, geração de 45),  é evidente que  os poemas  de estofo conservador tiveram  público  mais ampliado  porque  o conceito ou ideia geral,  até um certo ponto ingênuos,   de poesia no espírito   das massas mudou, ou melhor, perdeu aquela antiga aura   de poesia   entendida  como sinônimo de  poema inspirado, de  sentimento,  de emoção,  de musicalidade.
        Ora,   a hipersofisticação    advinda de todos  os  movimentos  da poesia moderna afastou  a poesia   de uma acessibilidade que  poderia ainda se encontrar mesmo  na tradição  literária no cânone poético. Alguém  escolarizado,   ou mesmo  o leitor  familiarizado com  a poesia  contemporânea  e com as vanguardas  predecessoras  podem até  se  deleitar com   a leitura de  bons ou grandes  poetas   de hoje tanto brasileiros quanto   estrangeiros. Todavia,  aquele antigo gosto  pela declamação ou memorização de poemas   se perdeu. Se a poesia  e a  alta literatura foram  por muito tempo  algo apenas  destinado  ao elitismo  cultural,  a iniciados, com   a contemporaneidade ainda se tornou  bem mais acentuado esse círculo  de receptores.
       Não se pense que  o  pensamento  de Merquior  possa ser interpretado  como  um conservador  nos domínios  da literatura e particularmente da poesia. Longe  disso. O grande  crítico não se enganava  tão facilmente,   e, em  assuntos  de poesia,   o que apenas   sustentava  era que o  poema  não se confundisse  com   um produto   meramente   tecnicista,  “amorfo,” sem o influxo  da vida,  sem  a capacidade de  comunicar e emocionar,   algo  que enlaçasse  o humanismo à forma, entendida como   portadora de um tema, um assunto, uma sintaxe, uma expressividade  estilística e um domínio   completo  da arte  poética das origens aos nossos dias, ou, conforme ele,   arrematou  o  artigo: (...) um canal de humanismo na atribulada consciência da modernidade.” 
           
[1]Ver  MERQUIOR, José Guilherme. “Indicações para um  estudo da obra de Da Costa e Silva. Revista Presença,  Secretaria de  Cultura, Desportos e Turismo Piauí. Ano VI, Nº 13, Teresina, PI.. [1984]. P. 40-41. Ver  também essa conferência  em SILVA, DA Costa e. Poesias completas. 4 ed.  Nova edição rev., ampl. e anotada por Alberto da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.37-45. Ver ainda meu ensaio Da Costa e Silva: uma leitura da saudade. Teresina: Academia Piauiense de Letras/Universidade Federal do Piauí, 1966, 108 p. Nesse ensaio, no capítulo introdutório, seção 1,3,  analiso a citada conferência-estudo de José Guilherme  Merquior,  ressaltando    a  questão levantada por Merquior  da popularidade de alguns  poemas  do autor  de Sangue entrevista na poesia   de Da Costa e Silva, p. 31-33.

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