domingo, 29 de setembro de 2013

Seleta Piauiense - Licurgo de Paiva


Horas de Tédio


Licurgo José Henrique de Paiva (1842 - 1887)

Sou um doido, meu Deus! na minha vida
Um momento sequer eu não pensei;
Dei-me inteiro às ficções – somente errei
Pela estrada sem luz e tão batida.

Peregrino, Senhor, na insana lida
A vestal de meus sonhos profanei;
Meus amores na crápula afoguei
Que este mundo senti de fé mentida!

Morro agora de spleen – no meu retiro
Sem menores alívios a meu mal,
Nem do peito exalar um só suspiro.

Levo os dias blasé sem dar sinal
De que cismo sequer: – por vós prefiro
Numa campa dormir que neste val!   

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

VARIAÇÕES SOBRE A MATANÇA DE ANIMAIS



27 de setembro   Diário Incontínuo

VARIAÇÕES SOBRE A MATANÇA DE ANIMAIS

Elmar Carvalho

Tempos atrás, uma alta autoridade, numa festa carnavalesca, fantasiou-se de “comandante”. Parece que ele, até numa brincadeira, queria demonstrar ser o que ele de fato era: um comandante. Era como se desejasse levar a sua autoridade e cargo até para o recinto de uma simples brincadeira momesca, ou então precisasse convencer-se a si próprio de que de fato era um comandante, embora de uma nave burocrática e estatal. Parecia necessitar da bengala de seu cargo, mesmo numa festa de fantasia, em que seria mais coerente ele aparentar ser o que não era, já que se tratava de uma festa de simulacros.

Anos atrás, vi um homem, envergando uma roupa militar de camuflagem, com um potente rifle, posar de poderoso caçador, com uma onça morta a seus pés, como se essa covardia fosse um grande feito, digno de figurar nos fastos da história. A foto fora estampada em jornal de grande circulação. Para mim, não passava do registro de uma barbárie travestida de fanfarronice visual.

Até admito que seria um feito notável, talvez mesmo heroico, se ele tivesse enfrentado o animal sem nenhuma arma de fogo, ou apenas armado com um cacete, no máximo com uma faca, que seria uma espécie de prótese ou simulacro de uma poderosa garra. Mas o homem, naquela fotografia, parecia orgulhoso, como se fosse um semideus mitológico e senhor da vitória. Parecia, em seu sorriso, jactar-se de sua covardia, como se tivesse cometido uma façanha homérica e gloriosa, merecedora de uma epopeia.

Meses atrás, vi na revista Veja uma foto que reputei chocante. Nela aparecia um elefante morto, próximo de uma locomotiva e dos trilhos. O animal tinha a boca aberta, como se tivesse emitido um forte e desesperado urro de dor. Sendo o elefante um animal muito inteligente, me pareceu razoável imaginar que ele percorria aquela floresta, por onde passava a ferrovia, com desenvoltura, sobranceria e destemor, vez que era o maior e mais forte animal terrestre, contudo sem insolência e desprovido de ferocidade gratuita para com os outros animais.

Apenas a girafa é mais alta que ele, mas isso mesmo apenas por causa do pescoço, como gosta de dizer um amigo meu, ante as pessoas que se julgam maiores e mais importantes que os outros. O elefante parecia frágil, pequeno e indefeso diante daquele monstro de ferro e aço. Por essa razão, alguma medida de proteção aos animais deveria existir, quando são feitas obras e desenvolvidas atividades de tamanho impacto ambiental, com o objetivo de serem preservados os animais silvestres, inclusive os ferozes, que vivem em harmonia com o seu ambiente natural.

Vi na TV, vários meses atrás, uma matrona rica, que, diante das câmeras e da mídia, se dizia protetora dos animais, se vangloriar orgulhosamente, para um grupo de “turistas caçadores”, dos quais era guia e hospedeira, de haver matado uma onça grávida.


Fiquei enojado dessa mulher tão hipócrita, que para os meios de comunicação alardeava ser ecologista, mas que na verdade era uma cruel exterminadora de espécimes, que dizia proteger e defender. Não consigo imaginar que orgulho possa existir em se matar, sem nenhuma necessidade, um animal, que apenas desejava usufruir a vida selvagem e instintiva, para a qual fora criado.   

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O Sete de Setembro não é mais o mesmo


Cunha e Silva Filho                 

                   Leitor, já vi muitos  desfiles de Sete de  Setembro,  os quais,  para mim,  sobretudo quando  criança e adolescente,  diziam muito e muito do meu país,  dos  fastos da História  pátria,  do Grito do Ipiranga,   das aulas de  História do Brasil, dos compêndios didáticos   escritos em geral do ponto de vista dos dominadores, ou seja,   subordinando os fatos supostamente   acontecidos  ao crivo  da  historiografia oficial.
Os desfiles de  Sete de Setembro,  do qual  participavam   o  Exército,  as Polícia Militar,  os Bombeiros e os colégios  públicos e  privados  eram  uma festa  na  Teresina dos  anos  de 1950 e, para mim,  até o início da década de 1960.
De alguns desfiles,   ou como  chamávamos, de algumas “paradas”, participei,  como  aluno do Domício e  do Liceu Piauiense. Era um grande evento  para o qual afluíam  gente de todos os bairros e de todos os níveis sociais.
Nessas “paradas”, não havia  passeatas,  manifestações,  desprezo  às forças  policiais, às autoridades, não havia  cartazes  atacando  corruptos nem  reclamando  das condições deploráveis do país.Era   tudo alegria,   comemoração,  reverência,  respeito, enfim,  moralismo  pleno.
Isso tudo, com os anos,  pelo país afora,  foi  diminuindo  em sua beleza  de comemoração ao Dia da Pátria  e na reflexão  voltada  para  os destinos do nosso  povo. No dia seguinte  às “paradas,” só havia um assunto nas escolas ou nos lares:  saber quem  tinha  desfilado melhor, quem havia “marchado” co mais perfeição e mais garbosamente, este colégio  ou aquele? Quem  havia   vencido  e levado  os louros?
A imagem mais  bonita que me vem agora ao espírito era observar  a cadência dos militares  com seus passos  marciais  que faziam  um único  vinco  nos movimentos    exatos ao  ritmo  do passo acertado. Perfeição total  no jogo   dos joelhos  dobrados  nas calças das fardas  ou nos uniformes      dos  estudantes,  bons marchadores.
Agora,  resta  perguntar:  aquela  tranquilidade,  paz,  alegria de outrora  era ou  não o reflexo de uma  sociedade   domesticada e alheia às lutas do poder  político  e dos bastidores  dos palácios  de então? Seria preciso   chamar um  Roberto DaMatta para  explicar  tudo isso.
Cinquenta e poucos anos  depois. Estamos  em 2013 e, neste ano,  no Rio de Janeiro, em Brasília,  em Belo Horizonte, em São Paulo,  praticamente no  país inteiro,  o Sete de Setembro  perdeu  o brilho, sobretudo no Rio de Janeiro, que é a cidade que mais conheço.
Várias condicionantes    e  novas circunstâncias  de ordem  social e pública e institucional   conspiraram para que  o Sete de Setembro  se tornasse um fiasco. Vejam  os fatos.  No palanque  oficial  nem  o governador  do Estado do Rio  se achava presente. Nas arquibancadas   atualmente  montadas para o público  que  ia sempre homenagear e  assistir  ao desfile, o    Corpo de Bombeiros,  as Forças Armadas, os raros  sobreviventes  pracinhas  da Segunda  Guerra Mundial,  o desfile  dos alunos  do  respeitado e centenário  Colégio Militar do Rio de Janeiro, e   tantos  outros participantes   praticamente    desfilaram  para   um reduzido  público  na Avenida  Presidente Vargas, em frente ao  imponente  Palácio  Duque de Caxias, velho  e  belo  prédio  onde já funcionou  o antes denominado  Ministério da Guerra.
De repente,  surgem  grupos de manifestantes,  no meio dos quais  penetram  os  chamados   baderneiros ou vândalos, depredadores -  até hoje não sei quem está  por detrás disso tudo -,  de prédios  públicos,  de bancos, de postes,   de placas  com o nome de ruas. Depois que  Nero  mandou  queimar  Roma e pôr a culpa nos cristãos, tudo  se pode  cogitar  em termos  de  mandantes ou insufladores  do “quanto  pior, melhor.”  O confronto na Presidente Vargas entre manifestantes e baderneiros  empanou a  grandeza  do tradicional   desfile de Sete de Setembro. Das arquibancadas houve uma  debandada geral   correrias,  atropelos,  medo,   violência  policial  que,   sem preparo tático  e competência,  se estende em suas ações  truculentas  indo atingir   inocentes,  idosos, crianças.
Esses acontecimentos   recentes  que o país  tem  vivido  são sinais de que algo  errado e podre existe no  reino da Dinamarca. O clima do  país está mais para uma tragédia shakesperiana, com seus  Macbeths,  seus Shylocks,   seus Iagos, não faltando  algumas  pitadas de comédia  de erros  e de quiproquós  de  um sonho de uma noite de verão, respingando seus efeitos e “malfeitos”  também e principalmente na Câmara  dos Deputados, do Senado, do    Judiciário e de alguns  palácios  estaduais  já por demais  conhecidos da população brasileira.
Brasília, assim,  sem ainda  temer  os protestos  e reivindicações  dos manifestantes  sérios  e conscientizados, continua indiferente na sua soberba e cinismo  nunca antes visto  no passado  da política brasileira.   O  cineasta Cacá Diegues,  na crônica “Vamos tirar a máscara” (O GloboOpinião 7/9/2013), definiu com  propriedade o que  vem a ser  Brasília na simbologia tragicômica de sua imagem ante os olhos do povo brasileiro: “Brasília é a nossa Versalhes republicana. lá está a nobreza secular de nossa vida pública, a bailar ausente do que se passa no  resto do país, se sentindo injustiçada se algum  ingrato reclamar do uso  indevido do que não é deles. Da Praça dos Três Poderes, não se vê a Bastilha cair.”(grifos meus)

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Oeiras, passeio com o álino


Fonseca Neto

Visitei há poucos dias a cidade de Oeiras, ocasião de um Encontro literário da Confraria Eça-Dagobertiana, tudo feito na medida das ardentes sensações que a velha urbe sabe tecer. 
No cenário, obviamente, um filho e guia genial dos passeios ao lugar, o eciano da póvoa de cá, Dagoberto Carvalho Júnior, que tem as estruturas físicas e mentais de Oeiras refletidas e gravadas no espelho ondular de sua alma. Júnior até escreveu e já vai na sexta edição o “Passeio a Oeiras” – e a outras chegará, pois a primeira sé paroquial do Piauí permanecerá tal um convite ao contato com as manhas do tempo que a todos seduzem.
Vou registrar nas linhas seguintes um testemunho de algo que ele próprio já se referiu nesta folha: assisti Dagoberto apresentar o burgo tranqueiro ao acadêmico Reginaldo Miranda, presidente da APL, do alto do calçadão do Cine-Teatro Oeiras, ali ao lado da catedral da Vitória e do frontão angular estadonovista da Associação Comercial em prédio. Chegara a uma e quarenta da matina e, na praça de cima, ainda o Café Oeiras em cantares e beberes.  
O ponto em que estávamos é, de fato, símbolo, e mística, o marco da criação da cidade: a assentada do “tabuleiro que se acha pegado a passayem do Jatubá para a parte do Canindé”, conforme a ata da assembleia de criação da paróquia e que determinou a localização da Matriz. Locada, aliás, segundo a tradição católica de se fazer as igrejas-templo de frente para o poente –assim a da Vitória e as demais setecentistas do Rosário (dos Pretos), e da Conceição (dos Pardos). Estávamos no centro da grande praça.
Pois sim: ali o guia – extático, bem vi – o presidente, e eu. Afora o citado ponto de agito, no Café, o centro antigo de Oeiras dormia àquela hora. E diante do cenário real, na fortuidade daquela boca de madrugada, lua bonita, soprando a cruviana do sertão, Dagoberto apresenta ao visitante ilustrado a “cidadela” que seu espírito retém e que lhe anima, e alina...; que sem dúvida fortalece os nós de sua segurança ontológica. Aponta o casario do entorno da imensa praça vitoriana: casas feitas sobre escombros de casas e sonhos que viraram pó; casas das histórias de hoje lado a lado com as casas que ficaram de ontem: da Câmara e Cadeia, de [São] João de Nepomuceno, do Cônego, do Médico, das Doze Janelas; no centro dela, “a matriz, dominando a paisagem grande..., assistindo o enfileiramento das casas na pressa de fazer ruas...”; sim, dos seus quatro lados, saindo “ruas caminhando o caminho dos homens”.  Aponta, mais ao longe, sul, o campanário do Rosário, “a lua cheia resplendendo sobre a igreja”; Rosário que é um “alto”, igreja e praça: lugar essencial do povo negro de áfricas – pois se açorianas as sensações da praça branca, congos e angoleses são os rufos que ecoam desse morro, que é mesmo do rosário, propriamente, também de lágrimas, açoites, labor e vidas roubadas... E lembra nosso guia que padres de Jesus e governadores do tempo de João Pereira também por ali pontuaram suas presenças...
Para o norte, a casa do Visconde, a igreja da Conceição – e a conversa estica com o presidente Miranda, pesquisador da sociedade curraleira e suas teias familiais, identificando antigos troncos que sobrenominam o Piauí historicamente empoderado. Ora, percorrer as vias do tempo oeirense com os motores memoriais em ação plena, equivale tocar suas rugosidades. É se permitir contemplar as tramas do palco social, em cada casa secular, de pé, no caruncho dos telhados, ou que seja ruína física ou escombro do humano de toda espécie. Num morro no horizonte à frente, meio à direita, uma cruz e cinco letras, três vogais... Muito bom ouvir essas conversas –afinal, História é vida, vivida, a filha da Memória, daí que Clio, filha desta, trombeteia e escreve.

Lembrei-me que tinha visto esse álino incansável, imerso no mesmo cenário, e regalo, sob o sol duma manhã, apresentar a Ariano Suassuna a dita praça e catedral... E é vero que eças dagobertianices recifam Taperoá e além.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Abençoado e milagroso calor


José Maria Vasconcelos

      Chega br-o-bró, chega de chororô. Não suporto alarmistas, especialmente repórteres, assombrados com o calor de Teresina e de outras cidades batendo 38 a 40 graus. Assemelham-se a profetas apocalípticos. Deveriam difundir os benefícios que a bendita estação nos proporciona. Muita gente de regiões frias, residentes aqui, ressalta as virtudes de nosso calor.
    “Frio é bom para turistas, mas, para quem reside no Sul prefere o clima do Nordeste, particularmente do litoral” -  afirma o gaúcho e pastor evangélico, Sérgio Campanelli. “Vocês precisam explorar os benefícios do calor”- costumava estimular Padre Luciano: “Na Itália, há picos de 45 graus, todo mundo se banha mais, ao contrário do que ocorre em rigoroso inverno.” Gerente de importante empresa paranaense, também, defende nossa: “Tempo gelado incomoda até quem se senta no sifão. Não há agasalho que resista. Aqui, vocês enfrentam estiagem; lá, as geadas queimam a pele e as plantações.” Ucraniano, residente em Teresina, senta-se na calçada, tablet nas mãos, envia imagens das tardes ensolaradas aos colegas da geladíssima terra natal: “Vejam quanto é bom morar aqui!”
      Aproveitar o calor, a estação sazonal da manga, caju (cajuína), abacaxi, mamão... Beber mais água, a fim de eliminar radicais livres, toxinas, excessos de sais e açúcares, além de prevenir cálculos. Hábitos que prometem longevidade.  
    Em tempo de estiagem, consegue-se produção agrícola com moderna tecnologia de gotejamento. Cadê minhas favas? Estou colhendo-as em pleno br-o-bró, por rudimentar processo de irrigação. Poucas plantações, abundante suor e prazer que não encontro em academia. Deliciosas favas, caras e disputadas como picanha; cozidas (prefiro as verdes) com arroz, cheiro verde e azeite de coco. Seduzido pela cultura do grão e pelo fácil manejo, sem pragas e predadores, o agrônomo Bartolomeu resolveu seguir-me a lição, além de outros, cumprindo a parábola do bom semeador.
     Piauí, solo fértil, aquíferos e mananciais; mais abundante, só o chororô, a cuia na mão, a avidez de verbas públicas, sabe Deus com que intenções.
   Todas as manhãs, generosos ventos frescos invadem a cidade. À tarde, a canícula dispara até primeiras horas da noite. Mas aquele ventinho das dez... Antigamente, sem televisão e malandragem, sentava-se à porta das casas, esticava-se o papo, aguardando-se a brisa relaxante, sob o brilho do luar. Na zona rural, ainda se conserva saudável hábito. Na capital, porém, muita gente se deleita na cerveja mais estupidamente gelada do Brasil.
     Edênica Cidade Verde, quente como a terra de Jesus, que bateu o mais longo e divino papo com uma samaritana, à beira do poço, sedento e fatigado pelo calor do meio-dia (João, 4). Dois milênios antes, Abraão e três mensageiros, à sombra dos carvalhos de Mambré, “no maior calor do dia”, confraternizavam-se com carne de cordeiro. Os mensageiros anunciariam que a mulher de Abraão geraria um filho, Isaac (Gênesis, 18). Teresinenses apreciam sombra das árvores de restaurantes e bares.
     Lamentar b-r-o-bró, eu, hein?! Sem calor, faltaria suculenta manga, caju, cajuína, mil frutas, de dar água na boca de quem não se adapta aos ciclos e mistérios da natureza.   

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

SÉRGIO FARIAS, UM MESTRE DAS LETRAS

Foto meramente ilustrativa

SÉRGIO FARIAS, UM MESTRE DAS LETRAS

Marcos Damasceno
Escritor


Eis um gigante do Piauí. Um homem de brilhante história e com larga lista de serviços prestados à Terra Querida. Um piauiense que nos orgulha, e que bota nosso Estado para cima e para frente. Numa só pessoa: o cidadão exemplar, o pedagogo experiente, o editor dinâmico, o revisor perfeccionista, o pesquisador catedrático, o crítico literário embasado, o intelectual humilde e o ser humano cortês. Estas são as notáveis qualidades dele. Ele nasceu predestinado a servir ao próximo. Por trás daquela fisionomia séria, há um ser humano ético, bondoso, extrovertido e verdadeiro.
Sérgio Farias tem mais de 30 anos de profissão. Iniciou seu trabalho no Jornal “O Dia” (na capital Teresina), e depois fundou a SERGRAF (Serviços e Edições Gráficas Ltda), prestando serviços para diversas gráficas do Estado, bem como realizando trabalhos de editoração para escritores piauienses e de outros estados. Sua atuação profissional é extensa: já editou mais de 500 obras literárias. Sua história é irretocável, a qualidade acompanha a quantidade.
Sempre me recebe em sua casa aos sábados, aonde chego às 07h00min. Tomo café e almoço lá, a seu convite, e volto às 17h00min. Entre uma xícara de café e outra, surge nosso debate sobre o cotidiano e sobre vários temas. Inevitavelmente recordo a minha infância, das conversas de varanda com meu avô Joaquim Damasceno e meu tio-avô Zeca Damasceno. Ao tempo em que é agradável conversar com ele, é também edificante.
Lembro-me o dia e a hora em que o conheci. Conheci-o pessoalmente em 2007, através do escritor William Palha Dias, que logo me deu boas referências dele. Disse-me, inclusive, que o editor era o divisor de águas entre a edição capenga e a de alto nível, ocorrendo assim uma revolução literária sem precedentes na história cultural do Piauí. Surgiu um interesse maior, e uma preferência mais acentuada, pelos registros de nossas raízes. Proclamaram-se, a partir daquela ocasião, os valores históricos telúricos, contemplados em nossa literatura. Depois de mais de três décadas desse fato, o Piauí literário se faz forte.
Ele é cofundador dessa tradição literária, e um dos pioneiros dessa caminhada. Editor de livros do povo, assim como “Guerra do Pau de Colher: massacre à sombra da Ditadura Vargas”. Aliás, ele editou todos os meus 19 livros. Sempre tem uma postura ética e participativa na obra que está editando: ler o conteúdo... Questiona, debate, faz críticas, opina e colabora. Costuma dizer que “os valores da sociedade são as bases da literatura”.
Ele é um homem de posição. Mais do que isso, é um homem de convicção. Inquebrantável convicção. Com isso, tonou-se nosso senso psicológico e nosso compromisso estético. Seu compromisso selado durante décadas, com trabalho obstinado, legou às gerações posteriores um caminho e uma maneira de caminhar. A maior lição é que a gente deve viajar para dentro, e valorizar as nossas coisas; em vez de viajar para fora e valorizar as coisas dos outros.
Ele é determinado. Abridor de portas e criador de oportunidades. Em nossa caminhada encontramos muitas portas abertas e caminhos criados por ele, no seu passado emancipatório e através do seu ato fundante. Ele é influente, articulado e bem relacionado na sociedade.
Há alguns anos a triste notícia: sofreu um AVC (acidente vascular cerebral), algo que me fez aproximar mais dele. Fez-me, também, ver o mundo numa visão mais humana. Eu ia ao hospital, com o pensamento de animá-lo, e ele é que me animava. Tem uma motivação de vida inabalável. Ele é exemplo de superação. Não vimos, em sequer momento, ele reclamar de nada. A única observação que fez: “Meus amigos ficaram poucos agora”. Lembrei-me a frase do Confúcio: “Para conhecermos os amigos é necessário passar pelo sucesso e pela desgraça. No sucesso, verificamos a quantidade e, na desgraça, a qualidade”.
Parafraseando o líder popular João Amazonas, “Sérgio Farias não é velho, é tradição”. Ele está na galeria dos meus melhores amigos. Tratam-se, estas singelas palavras, de um reconhecimento e uma homenagem. Permita-me, caro editor, na minha plena gratidão, dividir contigo o mérito da concretização desta obra. Gratidão eterna.    

domingo, 22 de setembro de 2013

Seleta Piauiense - J. Coriolano


O Piauí


J. Coriolano [José Coriolano de Sousa Lima] (1829 - 1869)

Vós pensais que minha terra
Menos que as outras encerra
De beleza e de primor?
Enganai-vos: é tão bela,
Tão prendada que como ela
Poucas há, se alguma o for.
É terra, cujas campinas
Se matizam de boninas.

Tem tantas frutas gostosas,
Tantas aves sonorosas,
Tem um sol tão criador!
Tem uma manhã luzida,
Tem uma tarde sentida,
Que recorda tanto amor!
É terra, cujas campinas
Se matizam de boninas;

Tem caças mui saborosas,
Que vivem tão descuidosas,
Sem temer o caçador!
Suas madeiras têm favos
Que abrigam seus filhos bravos
Da fome e mais do calor.
É terra, cujas meninas
Mostram nas faces boninas.

Seus rios são caudalosos,
Navegáveis e piscosos,
Emanam dizendo – amor!
Tem lindas flores fragrantes,
Ouro, prata e diamantes,
E outras minas de valor.
Fogem por entre boninas
As nascentes cristalinas.

Tem um céu tão anilado,
De noite tão estrelado,
Tão gentil e encantador,
Que eu não sei se assim o digo
Porque conservo comigo
O que chamam próprio amor.
Mas quem nega que as meninas
Mostram nas faces boninas?

Seus filhos são mui briosos,
São, em geral, talentosos,
Têm à pátria fido amor;
Suas filhas são fagueiras,
São lindas, são feiticeiras,
De branca ou morena cor.
É terra cujas meninas
Mostram nas faces boninas.

Tem uma lua saudosa,
Uma brisa harmoniosa,
Que exala suave odor;
Tem mancebos dedicados,
Valorosos, extremados
Na paz, na guerra, no amor.
Tem vales e tem colinas
Matizadas de boninas.

Vereis nas altas palmeiras,
Ou nas copadas mangueiras
Chilrar o alado cantor;
Vereis, libando a doçura
Do cravo, da rosa pura
O fulgido beija-flor.
Vê-lo-eis pelas campinas
Beijar olentes boninas.

Vós pensais que minha terra
Menos que as outras encerra
De beleza e de primor?
Enganai-vos: é tão bela,
Tão prendada que como ela
Poucas há, se alguma o for.
É terra, cujas campinas
Se matizam de boninas.

Minha terra é o El Dorado,
Deleitoso, afortunado,
Que Walter Raleigh sonhou;
É o país de Cocanha,
Onde a ventura é tamanha
Que a vida nunca abafou!
Oh! ide ver a minha terra
Que tanta beleza encerra!    

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

MEMORIAL A QUATRO POETAS DE OEIRAS

Fonte: Mural da Vila
Fonte: Mural da Vila



20 de setembro   Diário Incontínuo

MEMORIAL A QUATRO POETAS DE OEIRAS

Elmar Carvalho

No dia 13, sexta-feira, à noite, no Café Oeiras, no centro histórico da velha capital, ocorreria o lançamento do livro Sonetos & Retalhos, do saudoso poeta Gerson Campos, ao qual pretendia comparecer, como de fato compareci. Por causa disso e também em virtude de minha já alongada e visceral ligação com a velhacap, resolvi fazer sozinho, em meu carro, o roteiro poético e sentimental de meu poema Noturno de Oeiras, percorrendo diversos logradouros e monumentos arquitetônicos da vetusta urbe.

O centro histórico venho revendo diariamente, posto que o Fórum, onde está instalado o Juizado Especial Cível e Criminal, fica nele situado. Dessa forma, todo dia revejo os casarões, os velhos sobrados, a casa de doze janelas e a catedral de N. S. da Vitória, os quais celebrei em meus versos. Do adro da velha matriz, revejo a bela praça e as suas palmeiras imperiais, quase diria episcopais palmeiras, uma vez que estão em episcopal cidade, a de mais acendrado e fervoroso catolicismo.

Em meu périplo turístico e poético, fui inicialmente à casa grande da antiga Fazenda Canela, onde viveu e morreu o grande poeta Nogueira Tapety, sobre o qual já tive o ensejo de escrever um pequeno ensaio de crítica literária. Contemplei-a bem, e a achei um tanto deteriorada. Falei isso ao Dr. Carlos Rubem, parente e admirador do poeta, cujo livro póstumo Arte e Tormento foi por ele editado, à noite, um pouco antes do início do evento cultural. Respirei aliviado quando ele me informou que o arquiteto Olavo Pereira da Silva Filho, com o qual se encontrava, estava fazendo o estudo de restauração da sede da extinta fazenda, que remonta ao século XIX.

Impregnado da lembrança dos versos do vate Nogueira Tapety, falecido ainda jovem, cujo extraordinário soneto Senhora da Bondade sei de cor, não pude deixar de me lembrar que outros três grandes poetas piauienses, nascidos em Oeiras, também morreram precocemente. Gerson Campos, o grande homenageado do dia, “traído” pelo coração, cujas engrenagens já vinham desengrenadas, faleceu com 39 anos incompletos, num estádio de futebol, que hoje ostenta seu nome, emocionado com a vitória da Seleção de Oeiras, ocorrida nos momentos finais da partida. Foi ele também radialista e desportista, além de ótimo goleiro; nesta posição fui seu colega, uma vez que também cometi minhas “voadas” e pontes acrobáticas em campos de futebol.

J. Ribamar Matos, funcionário do Banco do Nordeste do Brasil, também morreu precocemente, vítima de um desastre automobilístico, acontecido no Ceará, em circunstâncias que ignoro. Era um poeta ligado à tradição da poesia; seus sonetos, rimados e metrificados, tinham substrato geralmente lírico, pelo que estou lembrado. Um ano antes de sua trágica morte, prestou sentida homenagem a Gerson Campos, em emocionante texto, publicado no jornal O Cometa de junho de 1973, ainda sob o impacto do fatídico acontecimento, no qual dizia não aceitar a “injustiça da Morte, que nivela os bons e os maus”.

O outro grande bardo oeirense, colhido pela “indesejada das gentes” ainda relativamente no verdor dos anos, foi Licurgo de Paiva, patrono da cadeira que ocupo na Academia Piauiense de Letras. Sobre ele disse, por ocasião de minha posse no quase secular sodalício: “Licurgo José Henrique de Paiva, cuja carreira literária foi inicialmente tão auspiciosa, tão plena de esperança, foi depois gradativamente declinando até o seu trágico e melancólico crepúsculo, através de uma série de vicissitudes, em sua vida particular e profissional, sobretudo ocasionadas pela dipsomania, que frustrou todos os bons augúrios com que os astros lhe acenavam. Na derrocada final do sol negro da desgraça, terminou sendo enterrado numa sepultura por muitos considerada ignota, em lugar remoto do Piauí.”


Com a lembrança desses grandes vates em minha mente, e sabedor de que Nogueira Tapety, recolhido na Fazenda Canela, já nos momentos finais de sua curta vida, recebera a visita de Baurélio Mangabeira, outro versejador, e um tanto andarilho (uma vez que fora proprietário de um jornal tipográfico ambulante), que veio de Teresina, em lombo de cavalo, praticamente para se despedir do valoroso bardo tísico, imaginei que a vetusta casa da Canela, após restaurada, poderia transformar-se no memorial dos quatro grandes poetas oeirenses, a que me referi.

Continuando a minha peregrinação poética, turística e afetiva, fui ao adro da igreja do Rosário. Reverenciei o antiquíssimo templo. De lá, contemplei a madona da Vitória, a abençoar a cidade do alto do Leme. Do alto do Rosário, consegui localizar as igrejas de N. S. da Conceição e de N. S. da Vitória. Essa contemplação nostálgica, embebida só de emoção e da mais inefável poesia, me fez ir ao Morro da Cruz, para ver de mais alto a querida e velha cidade e a paisagem adusta e agreste, mas também bela, do seu derredor. Lembrei-me que sugeri, mais de década atrás, ao Dr. Carlos Rubem Campos Reis que encetasse campanha para que no alto desse outeiro fossem colocadas placas com poemas que cantassem a eterna vila do Mocha. Ele entusiasmou-se com essa ideia, mas certamente encontrou os obstáculos intransponíveis da insensibilidade governamental para a arte e a cultura.


À noite, com a alma encharcada de oeirensidade, fui ao lançamento do livro Sonetos & Retalhos. Foi uma noite memorável, memoranda. Jamais a esquecerei. Revi velhos amigos. Fiz parte de uma roda de que faziam parte o Ferrer Freitas, seus irmãos Tadeu e Raimundo, Luís de Artaxerxes (senhor do Alto do Xé) e outros amigos. Foi uma festa de música e poesia. Belas melodias de excelentes letras, verdadeiros poemas, foram executadas e cantadas. O ator Bonifácio Lima, de forma magistral, interpretou o poema Monólogo de uma Rosa, emocionando toda a assistência.

Outras pessoas recitaram outros textos poéticos de Gerson Campos, provocando grande encantamento da plateia. Para minha grata surpresa, o experiente e notável cronista Ferrer Freitas, além de ter prestado breve depoimento sobre Gerson Campos, participou de um dueto musical com Vanda Queiroz, em que se saiu muito bem, mormente para mim, que não lhe conhecia a faceta musical.

O senador Wellington Dias fez a apresentação da obra, através de excelente texto, no qual discorreu sobre o livro e a rica personalidade do autor, em que predominava a cordialidade e o bom-humor, com os quais atraía duradouras e sólidas amizades, que ainda lhe reverenciam a memória. A amiga e professora Rita Campos, na qualidade de irmã, prestou a sua homenagem ao ilustre poeta e escritor. Cassi Neiva fez uma eficiente e esclarecedora apresentação de toda a solenidade lítero-musical.

Para que não se diga que neste registro quase não falei no livro Sonetos e Retalhos, 2ª edição, passo a fazê-lo agora, embora de forma sintética. Trata-se de um belo projeto gráfico e editorial, levado a efeito pela Fundação Nogueira Tapety, da qual é presidente o promotor de Justiça Carlos Rubem. Gutemberg Rocha foi o revisor da obra, e foi também um de seus organizadores e autor de vários textos nela acolhidos. De perfeito acabamento gráfico, foi a obra impressa em papel couché. Último Campos produziu-lhe a capa e Dino Alves fez-lhe a ilustração. O design gráfico é da autoria de Josélia Neves.

Enfeixa os sonetos de Gerson Campos, rimados, ritmados, metrificados, geralmente líricos; na parte denominada Retalhos foram coligidos os poemas de fatura e temática diversa, entre os quais vários acrósticos. Nos acrósticos se percebe o grande domínio técnico do bardo, porquanto ele faz o encadeamento dos versos de forma fluida, sem bruscas rupturas e produzindo boas rimas. Quem não é senhor dessa modalidade poética, geralmente coloca versos autônomos, que na verdade são apenas frases colocadas sobre ou sob frases, sem formarem efetivamente uma unidade harmônica e poética.

O prosador comparece com as crônicas de Caleidoscópio I a IV, que foram bastante elogiadas pelos escritores e poetas José Expedito Rego e Rogério Newton, com os quais concordo. Rogério escreveu um excelente ensaio sobre elas, em que lhes louva as virtudes. Em linguagem despojada, quase coloquial, Gerson fala de suas lembranças antigas, das figuras populares que conheceu na infância, de certos costumes que soube guardar na memória, para depois restaurá-las em sua prosa ágil e vívida.

O livro traz ainda um volumoso caderno de fotografias, que documentam a vida e a época em que viveu o autor. A parte Gerson para Sempre agalha artigos, depoimentos, poemas e crônicas sobre o literato homenageado, em que as suas boas qualidades de poeta, de ser humano e amigo são louvadas com muita ênfase e entusiasmo. Foram escritos por várias pessoas (muitas o conheceram e lhe tinham admiração e estima), entre as quais cito Possidônio Queiroz, Costa Machado, Carlos Said, Gutemberg Soares, Dagoberto Carvalho Jr., Petrarca Rocha de Sá, Joca Oeiras, Bernadete Maria de Andrade Ferraz, além de outros escritores e poetas já referidos ao longo desta crônica.


O lançamento de Sonetos & Retalhos foi uma noite magna, mágica, magnífica, recheada de música e poesia, um verdadeiro e inebriante sarau lítero-musical, em que ouvimos belos depoimentos sobre o inesquecível Gerson Campos, um mestre da alegria, da amizade e da saudável boemia; assim mesmo, com sílaba tônica no i, para que rime com poesia e magia. Afinal, boêmia assenta mais aos gramáticos, puristas, castiços e falsos boêmios.    

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Escrever à mão:o medo de perder esta habilidade


Cunha e Silva Filho

Dizem que  o escritor  Ernest   Hemingway (1899-1961)  tinha um pavor  enorme na vida, o de perder  a capacidade  de  continuar fazendo ficção. Era um fantasma  que  me parece tê-lo acompanhado na sua trajetória de  escritor. No meu caso,  não descartando  de todo  o medo  do autor de O velho e o mar (1952),  tenho  ainda o temor   de perder  o costume,   aliás, o bom e saudável costume, de  escrever à mão. 
Confesso,  porém, que tenho,  sim,  esse receio tecnológico  à medida em que vou  me utilizando mais  da tecla do computador. A princípio, supunha eu que  jamais  seria capaz de escrever um texto  literário diretamente  no teclado. De repente, me descubro que inconscientemente  o estou  fazendo cada vez mais frequentemente. Daí o meu  temor de  não mais  necessitar  de  fazer meus manuscritos. Realmente, leitor,   isso está me  preocupando.
Isso me leva agora àquela imagem encantadora  e lírica de  tantas vezes  ver meu pai, Cunha e Silva (1905-1990), jornalista, professor e escritor  piauiense,  escrevendo  seus artigos febrilmente,  utilizando-se  da caneta esferográfica e,  muito antes,  da pena  molhada no tinteiro,  numa  escrivaninha  que  usava  em  seu quarto que, um dia,  chamei de “quarto-biblioteca’, alheio a todos ao seu redor,  mas    movimentando a caneta -  quase  sem  fazer  pausa -, com  os dedos ágeis e firmes  da mão direita. Isso até seus últimos dias. Seus  artigos saíam  praticamente  sem rasuras, escritos que  eram ao correr da pena como se costumava   falar antigamente.
Poucas vezes, nele reparei  modificações  à margem da página. Os artigos, em geral, saiam  perfeitos,  com a  clareza  que lhe era  inata ainda que  tratando de  temas  mais  complexos  envolvendo  argumentação mais cerrada. Ao contrário,    amiúde surgiam  erros nos seus artigos quando  ele ia ler as chamada  “provas  dos artigos,” com  os  senões de impressão  que vinham das redações dos jornais  para os quais  escrevia.
 Aí é que revelava seu cuidado de ler a prova toda, sobretudo  daquelas composições  antigas  antes do surgimento da linotipia. Ficava  zangado quando,  depois  de ter ele mesmo feito a revisão, ainda mostrassem,  no exemplar  da edição, algumas gralhas. Contudo,   não esquecia,  para qualquer  erro grosseiro que ainda  aparecesse no jornal já pronto para a tiragem  ao público, de, na próxima coluna,  fazer constar, ao final do artigo,  uma errata alusiva a algum  erro ou erros do número  anterior.Todo esse processo  eu acompanhei durante o início da minha adolescência   quando eu mesmo  lhe ia  pegar  a "prova do artigo" para ele corrigir em casa. Era rigoroso  com  a correção  de seus escritos.
Como estava falando no  início desta crônica,  o meu temor  é  deixar completamente  de escrever  à mão, embora venha  fazendo isso  ultimamente com mais  frequência .   Sei que antes  pensava  que escrever direto  no computador  era impossível e me  atrapalhava -   não vou  chamar  isso de “inspiração,” para não me classificarem de  romantismo  tardio -,  no que concerne à a fertilidade das ideias, o germinar  das frases  e à transformação  destas  no texto  completo. Uma coisa, entretanto,   observei: quando  se trata do ato  escrever um texto  de natureza  ensaísta ou crítica, de maior  ou grande extensão,  o faço  primeiro à mão e, em seguida,  passo ao computador.
 Na passagem do  manuscrito, já por si  cheio de  correções feitas e    modificações várias indicadas nas duas  margens   do papel  com  linhas  em formas  de setas para  alterações  que me ocorrem na trabalho  da  escrita,  mudanças  de  palavras, enxertos, torneios diversos dado a enunciados, melhoria  de construções  frasais,  ou  de  parágrafos  inteiros ou mesmo de   ter que  fazer um  “x” enorme   como sinal de  descarte  de parte  do texto, aquela velha ideia de escrita  fluente comigo não  aconteceu. Para mim, o ato de composição  escrita sempre  me foi  difícil, suado,   trabalhoso,  por vezes cansativo, a ponto  às vezes de sentir  vontade de  desistir de muitos parágrafos  já feitos  e  de recomeçar  tudo da estaca zero.
Por outro lado,  sei que escrevendo  diretamente no computador como estou fazendo agora,   me dá a possibilidade  de correção  mais rápida, de  alterações  e inversões  necessárias, de melhoria  no arranjo das frases, ou “amanho do texto, para empregar uma expressão  colhida na leitura  dos  artigos de meu pai.
De alguns escritores brasileiros famosos   tive a oportunidade  de  ver, nos fac-símiles de  seus   manuscritos  o quanto   modificavam   partes  de suas construções ou trocavam  de palavras,  pondo um risco  em cima  das palavras ou borrando–as por inteiro  com  a tinta da pena ou da caneta .Em Rui Barbosa (1849-1923), em Euclides da Cunha (1866-1909), em Guimarães Rosa (1908-1967), enfim,  em  muitos  escritores. Dificilmente,  vemos  um manuscrito  de um  escritor  impecavelmente  limpo e fluente -  indicadores  de uma  escrita que já sai quase perfeita  e pronta para a impressão.  Desses tenho  uma ponta de inveja, mas que hei de fazer?
Não aconselho a ninguém  desistir de  usar algumas vezes ou mesmo  sempre  a forma  manuscrita de seus textos.Há pouco  li que o poeta  Armando Freitas Filho que, mais radical ainda, usa,  primeiro, a  forma manuscrita, em seguida, a datilografada – isso mesmo , a velha máquina de escrever! - e,  finalmente, passa  o texto para o  computador. O cuidado, neste caso,  é triplo.
Descobrir  as facilidades  e as potencialidades  de escrever  diretamente  no computador   é uma  sensação  agradável, mas agradável  mais  é recorrer ao velho hábito de  pôr no papel as ideias que  vão surgindo  naturalmente no nosso  cérebro, fazendo  as necessárias pausas para dar continuidade  à estruturação   das frases, dos parágrafos e do conjunto  inteiro do texto a que  daremos, na horaa  certa, um   ponto final.
Prometo a mim mesmo  que retornarei sempre ao texto manuscrito, embora  tenho  certeza de que, usando o teclado, as ideias  não me faltaram e as possibilidades  múltiplas  estarão  ao meu alcance. Pausa para  refletir e descanso não serão  impedimentos  à capacidade  criativa por via digital.
O medo,  leitor,  de que eu falava há pouco, pensando  melhor,  reside no  ato  puro  de escrever à mão,  de não  perder   o talhe  caligráfico  intransferível, i.e.,   de  dar  o desenho  próprio à letra  de nossa  escrita, dos movimentos  motores,  da liberdade de sentirmos  o comando sinestésico  do próprio  punho que o processo de criação de um  texto é tanto físico como   imaterial. É corpo e alma.   

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Exercer e difundir o bem


José Maria Vasconcelos

         Sento-me diante do computador, paro um instante, inclino a cabeça, fecho os olhos, invoco ao Espírito Santo de Deus o discernimento e fluxos da inspiração. Não me envergonha confessar esse hábito, e, olhe, não sou anjo barroco, cabeça torta aos incensos e louvores. Tenho certeza, apenas, de que não me encontro à toa neste mundo. De que meus dias estão contados. De que me foram confiados talentos, pelos quais prestarei contas, quando me libertar do ciclo solar, na direção etérea do infinito. Acreditar nesse mistério provoca imensa responsabilidade, não permite apego exagerado ao material. Só ao bem, espírito malhado na academia e ginástica das virtudes. Inútil exagerar nos bens fugazes, pois nada, nem a chave do carro, se carregará deste mundo.
          Semanalmente, chegam-me carinhosos e-mails de toda parte. Leitores de blogs e sites, que reproduzem a crônica, deste jornal. Radialistas e professores que leem e comentam passagens, sem asco de religiosidade, mas de espiritualidade. Sabe por quê? Por que ainda há uma casta de gente ávida de degustar o vinho raro do bem. Alegra-me, por acrescentar um tijolinho na construção do mundo. Leitores, como Pimentel, Brasília: “Li e repassei aos amigos”. Ou Camila Coelho, de Parnaíba: “Reúno meus filhos e conversamos sobre temas educativos do jornal”. Homem público, como Sílvio Mendes, médico, ex-prefeito de Teresina, louvado pela conduta enxuta de gestor, assediado por partidos: “Repassando sua crônica aos meus amigos, caríssimo JM. Então você entende bem porque tenho resistido a retornar à gestão pública.”Infelizmente, Sílvio, o campo político assemelha-se à fábula grega de Esopo, recontada por La Fontaine e Monteiro Lobato : cordeiro e lobo bebiam no mesmo riacho: o lobo mais acima, o cordeiro mais embaixo do monte. O lobo acusava o cordeiro de turvar a água, a fim de encontrar motivo para devorá-lo. “Como posso turvar a água, se você, lobo, se encontra mais acima?”
        Está difícil cordeiros do bem conviverem com lobos do mal na política e gestão pública. Lobos tentam, a todo custo, turvar a Justiça com recursos, a fim de voltar ao canibalismo do dinheiro público. Assimilam princípios imorais revestidos de argumentos morais. Consequentemente, o confronto é inevitável, e, quase sempre, cordeiros são levados ao holocausto. 
Em tempo de vacas magras de políticos e gestores virtuosos, o povo clama por José ou Moisés que o libertem do cativeiro da corrupção e avanço do mal.
        Sinto-me gratificado, concluído mais um texto. Debruço-me novamente, agradeço os fluxos recebidos. Brinde de raro vinho dirigido à congregação do bem.


segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Festa no adro: rufos, fogo e chuva


Fonseca Neto

Teresina, 161 anos: no encerramento das celebrações organizadas pelo governo da municipalidade, enchemos o adro da igreja de São Benedito e vimos um espetáculo bonito. 
No papel central, as orquestras Sinfônica e Sanfônica da cidade, apresentando repertório esmerado, que variou do clássico-clássico ao popular-erudito, de Gonzagão a Dominguinhos. Avultando em tudo, a figura do maestro Aurélio Melo, mais um filho e uma arte da musical Oeiras, presenteados à novacap. E a tudo presidindo, de seu nicho externo, lá de cima, a figura de frei Benedito, o titular dessa igreja-templo oitocentista, que os negros e pobres de Teresina ergueram com muito suor e paixão. 
Movem uma forte simbólica esses grandes atos da vida coletiva local acontecendo nesse adro, espécie de chão marcado pela sagração derramada de porta fora da nave da própria igreja. Trata-se de um espaço perfeitamente moldado tal um grande palco da cidade – caracterizado por sua escadaria de ladrilhões – e propício a celebrações apoteóticas.    
Simbólica? Note-se a ironia: a igreja de São Benedito é uma obra idealizada e concluída entre os anos de 1861 e 1886, na então zona periférica  da nova capital do Piauí; templo  erguido sobre um sítio tumbeiro de desvalidos. Em que pese estar no perímetro “enxadrezado” de Saraiva e Isidoro – na assentada do Alto da Jurubeba –, não se conhece intenção manifesta nenhuma dos idealizadores da cidade de fazê-la nesse ou noutro lugar. E muito menos que se tornasse a especial referência cultural da cidade, que é, seja na dimensão material ou imaterial. O grande e calculado palco de Teresina e das celebrações religiosas e cívicas, em suas primeiras décadas, era o adro ou Largo do Amparo, da igreja matriz da Padroeira, aberto até a barranca do rio Parnaíba, hoje o Parque da Bandeira. 
Tinha, porém, esse sítio da Jurubeba, a vizinhança da “quinta” que tocara no rateio dos quarteirões originais a um prócer dos Castelo Branco, que, aliás, pusera-lhe a aristocrática denominação de Karnak. A construção da igreja impõe a reinvenção dessa zona da cidade, a qual estará integrada à chamada “mancha urbana” quando Teresina completou 50 anos, em 1902. Todavia, mais algumas décadas deveriam transcorrer, até que o adro da S. Benedito furtasse ao Largo do Amparo a dita simbólica de chão comum da vida coletiva celebrada. Foi decisiva para tanto a transferência da sede do poder estadual do antigo Largo para a citada Quinta de Karnak. 
Para o adro-escadaria e aos pés de São Benedito conflui o povo em notáveis jornadas caminheiras e celebrações da polis teresinense de hoje. Se já não há mais quermesse a animar a festa do padroeiro, mas é ali que as duas grandes procissões do ano se arrematam para os sermões do preceito: da Sexta-Feira da Paixão e da Quinta de Corpus Christi. É lugar de chegada e de partida de passeatas de protesto; comícios ali houve outrora – é ponto de partida da grande caminhada junina da fraternidade. Rufam tambores no 20 de novembro. Ante seu Cruzeiro cantam/encantam as mil vozes do coral do Natal de todo ano. Do adro para dentro da igreja, vê-se quase todo dia, pomposos cortejos nupciais pisarem tapetes vermelhos – e tiram fino no floral das portas esculpidas pelo gênio do mestre Sebastião, do qual ignoram a história.  
A festa desta sexta passada, 30, na batuta de mestre Aurélio, mobilizou toda essa carga de eventos reais e sensações memoriais da alma coletiva. As orquestras, e seus mais de cem instrumentistas e cantores, tiraram sons e tons para a aniversariante. Até Dominguinhos, já encantado, cantou Teresina, enquanto as estrelas rapidamente fugiam e os fogos artificiais iluminavam o campanário beneditino e a própria noite. E chuviscava: um barrufo agostino. Os sinos sentiram ciúmes de tanta trompa e tanto tímpano e não dobraram. Quê? Fogo e água para um novo batismo da amorável cidade? 
Sim. É de se dizer que os bombos e taróis nessa noite trouxeram ao terreiro das sagrações os rufos dos tambores da ancestralidade em pleno coração da urbe do presente.  

domingo, 15 de setembro de 2013

Seleta Piauiense - Ovídio Saraiva


Soneto LXII

Ovídio Saraiva (1787 – 1852)

Passaram lustros três, e mais três anos,
Que à estância dos mortais volvi do nada;
Mas bem que ainda não seja adiantada
Minha idade, sofrido hei já mil danos.

Além dos torvos mares desumanos,
Recebi de meus pais a vida ervada,
E, contando anos seis, à pátria amada
Arrancaram-me os pais com vis enganos.

Desde então me arrepela a voz maldita
Da desgraça letal, o braço forte,
E sobre os tetos meus o mocho grita;

E, se não me enganei, nos céus... Ó sorte!
Esta sentença, li com sangue escrita:
- "Em breve lutarás com a torva morte".  

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

A TRISTEZA DO PALHAÇO



13 de setembro   Diário Incontínuo

A TRISTEZA DO PALHAÇO

Elmar Carvalho

Na manhã do dia 11, assisti a uma entrevista concedida pelo palhaço russo Slava Polunin, de 63 anos de idade. Não lhe pude prestar muita atenção, pois estava nos preparativos de me arrumar para ir para o trabalho. A matéria foi veiculada, ao que parece, inicialmente pela Globo News, e depois retransmitida pela TV Globo, para os televisores que a captam através de antena parabólica. Apesar do meu interesse, só pude ler trechos das legendas, impedido pelos movimentos de vestir a roupa, de colocar cinto, de calçar meias e sapatos, e de mais alguns outros afazeres matinais.

Alguns anos atrás, li, com muito encantamento, o excelente poema de Heine sobre um velho palhaço, cuja história tentarei sintetizar, mas sem deixar de remeter os meus escassos leitores ao texto poético do excelso mestre da poemática. Um homem, imerso na mais profunda tristeza, que na verdade deveria ser uma brutal depressão, procurou o mais famoso médico e psicanalista da cidade.

Este, depois de ouvi-lo atentamente, recomendou ele fosse a famoso circo, que fazia uma temporada na localidade; aduziu que nessa casa de espetáculo trabalhava o mais competente palhaço de então, um mestre consumado das pantomimas, das gargalhadas e da alegria, e que não havia quem não desse boas risadas em suas apresentações. Para espanto do esculápio, o paciente disse que, diante disso, chegava à conclusão de que o seu mal não tinha cura, que para ele não havia remédio, porquanto era ele o palhaço a que o facultativo se referia.

Um soneto famoso, da lavra do padre Antônio Tomás, um dos príncipes da poesia cearense, descreve a dor de um palhaço, cuja filhinha morrera. Mesmo assim, o proprietário do circo o obrigou a apresentar os seus números humorísticos. O poema narra que, enquanto o pobre artista circense gargalhava e fazia suas graças, mímicas e pantomimas, o seu coração soluçava internamente. O soneto era declamado nos saraus; todos se emocionavam, e todas as mocinhas iam às lágrimas e soluçavam convulsivamente. Muitos o sabiam de cor.

Faz mais de quinze anos, o falecido deputado Humberto Reis da Silveira, que me tinha muita amizade e consideração, que eu procurava retribuir na mesma intensidade, contou-me que um palhaço eslavo, acho que nascido na atual Rússia, assim como Slava Polunin, fora morrer na sua cidade de Jaicós, em cujo cemitério se encontrava sepultado. Não me forneceu maiores detalhes sobre sua biografia e personalidade.

Tentei imaginar o que fizera esse clown deixar a sua distante pátria, de clima frio, para vir perambular num país tropical, como membro da trupe de esfarrapado circo mambembe. Teria fugido de um amor não correspondido, da prosaica falta de emprego ou simplesmente fora movido pelo desejo de aventura? Não sei, e jamais alguém saberá. Cada ser humano guarda mistérios no mais recôndito de sua alma. Escrevi um poema em lembrança desse desterrado e esquecido palhaço, cujo nome desconheço.

Voltando a Slava Polunin, o meu palhaço de hoje, acrescento que a entrevista foi feita em um sítio bucólico, um verdadeiro horto florestal, onde havia vários cenários, esculturas, artefatos lúdicos, estátuas, mesas e cadeiras que podiam ser movimentadas pelas pessoas que as estavam utilizando etc. O sítio tinha recantos aconchegantes para degustações e libações. Tinha até um lago, onde havia um grande palco aquático, destinado a bandas musicais, e uma cama, na qual o palhaço navegou suavemente, impulsionado por um silencioso motor elétrico, para não produzir poluição, nem mesmo sonora. Soube depois, através da internet, que o seu público-alvo não são crianças, mas adultos. Naturalmente, ele considera que os adultos necessitam mais de “tomar alegria”.

Não sei quem banca o luxo e o conforto do extraordinário truão, que ele certamente merece, assim como todos os demais mestres do riso e da alegria. Por muitos, é considerado o melhor palhaço do mundo. Além de atuar em vários shows de palhaçadas (no bom sentido da palavra), criou alguns números para o Cirque du Soleil. Perguntado sobre se era alegre, ao contrário dos palhaços de Heine e do padre Antônio Tomás, respondeu que era radiante. Todavia, depois, em outro trecho da entrevista, quando a apresentadora lhe perguntou se tinha algum momento de tristeza, disse que sim.


Claro, como em todo ser humano, em sua alma deve haver alguma hora sombria, por onde se infiltra o fio insidioso de sutil melancolia.   

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Uma crônica perdida e, agora, encontrada: "Misericórdia para Terri Schiavo"


Cunha e Silva Filho

Todos sabemos que a ainda jovem  norte-americana Terri, de 41 anos,  vinha sofrendo nestes quinze anos, desde que  teve um  ataque cardíaco aos vinte e sete anos, resultando numa  grave lesão cerebral. Vive, até hoje,  em estado quase vegetativo. Segundo informações,  o ataque  cardíaco  foi provocado  por  vários anos  de anorexia e bulimia.   Para alguns     especialistas,  seu estado é de “mínima consciência”  e apenas se  mantém viva graças a tubos através dos quais seu tênue organismo vem  se alimentando. Entretanto, nem todos  sabem  perceber o quanto  vale a sua presença  física, o seu olhar  profundo, o revirar das pupilas e um quase balbuciar, sinais, a meu ver, ainda da presença da vida plena, da vida que é o  que afinal  importa, especialmente. Todavia,  a jovem  Terri  há tempos falando ao marido que  não desejava  manter-se  viva por aparelhos. Terri nascera em Filadélfia, Estados Unidos,  em 1963.
Se o corpo é vivo, se a pele é viva, se o rosto, embora sofrido e modificado em parte pela fragílima situação de saúde,  se ainda dá sinais de vida,  por que  privá-la do convívio de quem a ama acima de contingências materiais e de saúde perfeita?
O corpo é vida,  presença e, para os pais, cujas mãos ainda podem tocá-lo com verdadeiro amor, com o carinho e o calor  do afeto e até mesmo a alegria de ainda  poder tê-la junto deles fisicamente, o sabê-la  ocupando espaço nas suas vidas de pais  devotados é o que mais  lhes conta. O corpo, como disse, está ali,  vivo, lutando  pela vida a qualquer  custo,  mesmo  contra a vontade da doente.que perdeu   a motivação  de viver.
Há,  no entanto,  no olhar de Terri um enlace da pureza e da inocência das crianças. A inocência de seu olhar só a encontramos nos puros,  nos místicos, naqueles  seres  tocados  pelo divino olhar dos anjos, olhar de bondade, de pura  fragilidade. Os olhos se Terri se espiritualizam. Somente os santos  têm aquele olhar de desinteresse pela matéria.
Se Terri Schiavo uma vez a seu marido manifestou a vontade de morrer ainda assim não é válida nem legítima qualquer ação dos homens da Justiça para lhe dar  cabo da vida. Não cabe à lei, à Justiça, ao Estado unilateralmente a determinação  de  mandar desligar o tubo através do qual a jovem Terri  se mantém  se alimentando.
O coração de Terri ainda pulsa, não morreu. Seu olhar pertence aos que ainda respiram  e têm o sopro da vida.
Há uma semana, por ordem judicial,  desligaram  o tubo  que a alimentava. Agora, não recebe alimento, nem mesmo água.  Qualquer ação humana contra  isso me parece  errada, precipitada e mesmo  criminosa.
Estão matando   Terri. A lei a está matando aos poucos. Sem misericórdia, muda aos apelos da sociedade que não a quer ver  morta. Terri agoniza. O Tribunal  aclçheu a determinação do juiz de Tampa, James  Whittme. Nem a Suprema Corte se viu competente para decidir sobre a delicada caso de  Terri. Pela  quinta  vez o Supremo Tribunal negou-se a intervir no caso.
Enquanto isso,  lá fora,  manifestantes  protestam em silêncio.  Sabe-se  quão eloquente é às vezes o silêncio. Porém, as faixas falam  pela mordaça do silêncio. Todos apelam para o  religamento  do tubo, por onde o alimento e a água ainda podem  devolver  um sopro  de vida  à sofrida Terri Schiavo.
 De acordo com os médicos, Terri, impedida de comer  e beber, possivelmente aguentará esta semana só. Os homens constroem as leis do Estado e este passa a ter paradoxalmente a  última  palavra  entre a vida e a morte do indivíduo.. É uma sentença condenatória? Quem   sabe não o é? Somos todos muito pequenos diante  do Estado e do mundo. Há algo absurdo na vida. Algo que escapa  ao entendimento  nas relações humanas, entre a pessoa e a sociedade,  entre a liberdade  e  opressão, entre o  entendimento  comum e as razões do Estado. “Mundo,  mundo vasto mundo..”, diria  Carlos Drummond de Andrade.
Não sei se esta crônica, ao ser publicada,  estará  datada. Espero que não. 


Nota: do colunista  Terri Schiavo morreu  quatorze dias depois que lhe retiraram  do corpo o tubo de alimentação. O caso dela virou  debate  nacional sobre a questão  da eutanásia, ou seja,  do direito de morrer,  questão, até hoje,  amplamente  discutida e que sempre  reacende  candentes  polêmicas  na sociedade  em todo o mundo.


terça-feira, 10 de setembro de 2013

VIDA IN VITRO


VIDA IN VITRO

Elmar Carvalho

andavas pelas ruas de outrora
à procura de ti mesmo
que se encontrava aos pedaços
bêbedo nos bares
aos trancos e barrancos
se arrastando pelos lupanares
tortuosamente andando
pelas ruas tortas.

eras infante e juntavas varapaus
no sonho maluco de tocares
a lua cheia que depressa minguava.

levantaste a túnica da freira
não por sacrilégio ou impudência
mas apenas para constatares se
ela possuía duas pernas e dois
seios como todas as mulheres.

eras infante e quebraste
o joão teimoso, não por maldade,
mas para descobrir o misterioso
mecanismo de sua teimosia.

não, não eras doido, não eras lúcido,
eras apenas um translúcido menino.

escondias tuas vergonhas, tuas frustrações
e teus medos, como todos nós, como se esconde
lixo debaixo dos tapetes de luxo.

recordas a menina que te golpeou
com um não, apenas por capricho e maldade.

recordas a garota que te amava
e que desdenhavas talvez por capricho ou vingança.

eras poeta e criaste uma quimérica
amada imortal e imaginária, inatingível
em sua torre de marfim.
ela talvez também te quisesse,
mas a fizeste intocável.

enternecido, lembras-te da empregadinha
que bolinaste, e que por bondade, amor
ou desejo não te denunciou, com alaridos
e gritos histéricos, estridentes.

eras jovem e te julgavas alexandre
e bonaparte, senão mesmo um deus,
e já seguravas a coroa de ouro e o cetro
e já acariciava tua fronte o louro triunfal.

tudo eram conquistas e tudo conquistavas.

eras jovem e eras frágil
e te sentias impotente quando
contornavas as calçadas de ouro dos hotéis de luxo
ou quando avistavas a menina rica e bela,
com as suas jóias e as suas roupas elegantes e caras.
não sabias de seus desejos, de suas ânsias
e doenças e de seus nojos de si mesma.
talvez ela te amasse, mas o teu orgulho
a fez afastar-se de ti.

ainda procuras o trolley que desviaste
com teus amigos, para uma aventura sem fim
até que os trilhos paralelos
se tocassem no infinito.

ainda assistes a filmes de bang-bang
só para sentires a emoção do tempo
em que teu pai te levava para o reino
encantado e mágico do velho cine nazaré
que em tua memória ainda remanesce.

sentes ainda o cheiro dolorido e pisado dos alecrins
da paixão do senhor morto, do horto das agonias,
das chagas vermelhas, maceradas, da túnica
roxa, brilhante, da coroa de espinhos, dos cravos,
não os de cheiro, mas os de ferro, que ferem...
eras infante, então, e como sofreste
e como fizeste sofrer tua mãe, madona,
mater dolorosa e pietá sofrida e consoladora
de teus sofrimentos de então e de sempre.

buscas os cheiros embriagantes dos
brancos lírios de são josé e das rosas vermelhas
do velho caramanchão de antigamente.
os lírios se transformaram em cálices
de amargura e nas rosas depositas
o orvalho de tuas lágrimas pelo mundo
perdido num canto escuro do passado
e que não restauras, nem mesmo no
terceiro ou no sétimo dia de tua agonia.

a magia da música e dos álbuns de família
te trazem alegres e pungentes recordações
e te fazem viajar no tempo e no espaço
do turbilhão das mesmas emoções.

solitário, no silêncio da noite
pensas nos segredos, vícios
e incestos existentes na cidade,
nas feridas abertas pelos mais acerbos sarcasmos
e nos espasmos de brutais e homéricos orgasmos.

passeias pelos becos e logradouros do passado
e eles te conduzem ao tempo
que buscas em desespero.

perdido e cego caminhaste pelos labirintos,
teseu e minotauro de teu próprio destino,
nos confrontos que travaste com teu ego.

esfinge e édipo, não decifraste
teu enigma, e em vão buscaste
as pitonisas de outrora e de agora,
e inutilmente foste teu próprio ilusionista.
mas eras sábio e em algum momento
te reencontraste, ao te tornares
mais simples e mais puro,
malgrado as pedras, os lodos e as quedas.

em vão tapaste os ouvidos
para as palavras que te feriram
e inutilmente selaste a boca
para as palavras ferinas que proferiste.

não, não eras anjo nem demônio,
eras apenas um deus de barro
e teu sonho secreto e sagrado
foi sempre a transcendência
mas decepado de uma das asas
foste sempre um anjo torto coxo
capenga no a esmo vôo sem pontaria.

procuras ainda a pedra azul
de tua serra encardida.

esperas ainda no pátio da igreja
o ônibus que sempre vinha
demasiado cedo ou demasiado tarde.

lamentas a namoradinha jovem e esbelta
que envelheceu e engordou.
debalde procuras a sua cintura
para ternamente lhe pousares as mãos.
antes não mais a tivesses revisto.

ainda buscas a namoradinha
de uma noite de verão – ou inverno,
não importa, nada mais importa agora.

caim arrependido, pedes perdão:
já não suportas o onisciente olho do Senhor.

sofres pesadelo pela matemática
que te torturava, e acordas suado, ansioso.

procuras o batente da calçada de outrora
onde te cevaste nos lábios e nos seios da amada.

reencontraste a mulher que te amou
sem esperança, em face de tua indiferença,
e chafurdaste em sua carnívora rosa de carne,
talvez para feri-la novamente,
agora com a fúria e com o tédio.

devias estar feliz. realizaste teus sonhos
de consumo. tens uma boa mulher.
teus filhos são maravilhosos. tens
um bom emprego. no entanto ainda
não estás saciado. esperas um milagre
mas não sabes se os milagres ainda existem.

estás perdido: tens inveja de Deus
e não sabes se é virtude ou pecado.

equilibrista, caminhas com teus malabares
e alforjes por uma corda-bamba estendida
de menos infinito a mais infinito.

caminhas para a morte.
muitos dos teus amigos já são mortos
e te procuram com insistência.

infante, desejavas crescer
para realizares os teus sonhos de conquista.
adulto, queres retornar ao país de tua infância.

não sabes o que queres.
queres apenas morrer, esquecer.
queres viver eternamente num mundo
que não é o teu. contudo, tens esperança
e agora teces um poema sem fim
com o novelo infinito de tua vida
que se desdobra do nada ao tudo...