domingo, 31 de outubro de 2021

Seleta Piauiense - Alcides Freitas

 


Lírio Branco (*)


                Para a senhorita Amália Pinheiro


Alcides Freitas (1890 – 1913)


Nas seis asas em flor destes pétalos canta

Doce e branca mudez das carícias de um ninho...

Lírio! Geme e sorri... Neste mistério quanta

Macieza de colo em plumoso carinho...

 

Hástia branca a pender sob o candor que encanta...

Alvo e cetíneo seio às quenturas do linho,

Faça de neve o luar, tua magia é tanta

Como se em ti do amor vibrasse o láteo vinho...

 

Oh! Perfumada boca! Oh! Lírio em boca! Oh! Flor!

Em ânsias sacudindo os pistilos nervosos,

Como lábios a arder em lúbrico pudor...

 

As estrelas nos Céus – lençóis de lírios cirgem...

As lagrimas de Mãe – são lírios luminosos

Lírios brancos de sons – os beijos de uma Virgem...


(*) Fiz a atualização, porém mantive as palavras em sua flexão original, tal como estão em Litericultura - Teresina - julho/1912.

sábado, 30 de outubro de 2021

PROFESSOR FREITAS E O GIGANTE ADAMASTOR



 

28 de fevereiro

PROFESSOR FREITAS E O GIGANTE ADAMASTOR


Elmar Carvalho


Ontem à tarde estive no apartamento do professor José de Ribamar Freitas. Muitas vezes o tenho visitado, seja para conversarmos, seja para receber alguma orientação sua, mormente na área de literatura. Ele é um homem sério, para alguns circunspecto, mas para mim foi sempre uma pessoa de fácil convívio e de bom-humor. Admiro a sua avantajada e bela biblioteca.

Muitos de seus livros são, hoje, obras raras, e muitos já não são reeditados há muitos anos. A maioria é composta de clássicos da literatura universal. Ribamar Freitas é, ele próprio, um clássico, e eu o chamo de o último dos helenos. Tem considerável conhecimento de grego e de latim. Lê, no original, os poetas do classicismo greco-romano. É um erudito e grande orador. Está, no momento, às voltas com um livro de ficção, que está preparando para publicar, já tendo escrito vários de seus contos.

Fui seu aluno de Direito Penal, na Universidade Federal do Piauí, na primeira metade da década de 80. Recordo que no primeiro dia de aula cheguei um pouquinho atrasado. Ele estava dizendo que já ninguém lia os clássicos, que ninguém queria mais saber desses grandes mestres do classicismo. Para provar o que dizia, perguntou se alguém já ouvira falar em Adamastor, exatamente no momento em que eu me sentava numa das cadeiras.

Devo dizer que o silêncio foi sepulcral. Então, levantei o braço, e disse que Adamastor era o gigante de Os Lusíadas, de Camões, que ameaçou de males formidáveis os navegadores portugueses, ao dizer que lançaria maldições de toda sorte, e que o menor mal seria a morte. O mestre ficou perplexo, e levemente contrafeito, porque eu quebrara o mote e o fundamento de sua peroração.

Duas décadas depois, encontrei na apresentação ao livro Reflexões sobre a Vaidade dos Homens e Carta sobre a Fortuna, de Mathias Aires, uma passagem que me fez recordar o episódio, algo anedótico, que contei. Consta que Ariano Suassuna, ao ministrar aula em São Paulo, dissera que as universidades brasileiras ensinam de costas para o país. Para provar o que afirmava perguntou se alguns dos alunos já ouvira falar em Kant. Todos levantaram a mão, afirmativamente.

Em seguida, perguntou se eles já tinham ouvido falar em Mathias Aires. Ninguém levantou a mão, exceto um único aluno. Suassuna perguntou a esse aluno se ele já lera esse clássico de nossa literatura, ao que ele respondeu que não. Disse que só conhecia o nome do grande escritor e pensador porque, por coincidência, morava numa rua que tinha o seu nome.

Contudo, se fosse nos dias de hoje, à pergunta de mestre Ribamar Freitas, todas as mãos levantar-se-iam e todas as vozes responderiam sim, em uníssono. Sucede que hoje é sobejamente conhecido o palhaço televisivo Adamastor Pitaco.

28 de fevereiro de 2010

Comentário:

A boa nova!

Foi com incontida alegria que li o seu relato sobre os seus momentos na companhia do Professor Freitas, pois, assim como você, também tive a grande felicidade de ser aluno do memorável mestre, que, à época, prelecionava,  a cadeira de Medicina Legal em um período especial de férias na UFPI!

Em face a essa afortunada oportunidade fui agraciado com ensinamentos que abriram os meus olhos para o mundo clássico greco-romano. Um encantamento!

Lembro-me, por exemplo, dos conceitos médicos a respeito do estudo relativos à mulher, da origem da palavra ginecologia e de sua relação com a palavra GINEO (mulher) acrescida de LOGOS (estudo), resultando no ramo da ciência voltado aos cuidados com a saúde feminina.

A técnica usada pelo Mestre para transmitir conhecimentos é insuperável, está muito acima de tudo que vi na vida!

O conhecimento a respeito de latim e grego é uma ferramenta que o Professor esgrima com uma maestria invejável! Facilmente descreve a etimologia das palavras e, como uma tatuagem, desenha o conhecimento em nossa mente.

A maestria que o Professor domina envolve o espírito de quem o escuta falar! A mansidão de sua voz e o timbre sereno e solene que impõe às suas preleções, por si, fazem calar a audiência. Ele representa a verdadeira imagem do PROFESSOR (com letras maiúsculas, mesmo).

Finalmente, para o bem da humanidade, auguro vida longa ao mestre, haja vista a incessante atividade intelectual que norteia a sua rotina diária.

A ele e a você o meu sincero desejo de saúde, paz e serenidade, sob os auspícios do Grande Arquiteto do Universo.

Com um T.'.F.'.A.'.

Fernando de Sousa Rocha

Membro da Academia Maçônica de Letras


Retificação

Por infortúnio meu, somente agora tomei conhecimento do falecimento do Professor Freitas a cerca de 2 anos.

A distância que nos afastou durante estes 32 anos após a conclusão do curso de direito na UFPI, certamente, justifica o deslize temporal do meu comentário anterior. Hoje, com o peso da perda do meritório mestre, dedico a menção à sua maestria com uma coroa de louro a ser encimada no seu túmulo.

Enfim, fica o dito como dito anteriormente, apenas ressalvado o desconhecimento do pesaroso passamento do Mestre ao plano celestial!

Que o G.'.A.'.D.'.U.'. restabeleça-o no ofício de tutor das chusmas de anjos celestiais!

Com sincero pedido de escusas,

Receba um T.'.F.'.A.'.

Fernando de Sousa Rocha

Membro da Academia Maçônica de Letras

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

domingo, 24 de outubro de 2021

SEX-APPEAL

Fonte: Google

 

SEX-APPEAL


Elmar Carvalho

 

Movo até o teu

meu amoroso coração

- ânfora de lágrimas e solidão.

 

Teu olhar me revida

com uma impressentida carícia

referta de promessas e delícia.

 

Teus olhos escorregam macios

das penumbras dos cílios armados em cios

e afagam minha pele

eriçada em arrepios.

 

Meus anseios

desvelam tuas vestes

e revelam os empinados penedos

sedosos de teus seios,

sem medos

e sem receios,

e devassam em

tênues e tímidos acessos

os teus mais secretos

úmidos e diletos recessos.

 

E eu te desejo mais que tudo,

mas me contenho e me abstenho

e me deixo ficar inerte e mudo...   

sábado, 23 de outubro de 2021

Uma estrela para sempre no céu de Barras do Marataoã

Dr. Wilson Carvalho Gonçalves em formatura no Rio de Janeiro

 

Uma estrela para sempre no céu de Barras do Marataoã


Dílson Lages Monteiro

 

A imagem mais distante que tenho de prof. Wilson Carvalho Gonçalves é de minha meninice. Um dia glorioso para minha cidade natal. Na Câmara Municipal, que funcionava então provisoriamente no térreo do antigo sobrado que se diz pertencera ao Coronel Correia, em sessão festiva, deu-se ampla publicidade ao livro Terra dos Governadores – Fatos da História de Barras. Meu pai, apaixonado por tudo que se relacionava à memória da cidade que escolhera para viver, logo tratou de adquirir exemplar. Era década de 1980 e recordo com muita exatidão o quanto este livro foi festejado.

 

Afeito à leitura desde cedo, li-o com devotamento. Sempre li história como leio ficção – guardadas, claro, as especificidades da natureza de cada tipo de significação e a função estética da literatura. Digo: para mim, quase tudo é matéria de imaginação. Realidade mesmo, só o instante presente, que a gente reconta com algum acréscimo ou interesse ao modo que a linguagem e as motivações permitem. Tudo, no fundo, torna-se discurso e forma de relação com outros tempos e lugares, mesmo a narrativa historiográfica. Formas de relação com outros textos, outras vozes, outros sentidos. História como versão, como uma possível interpretação. Não mais que isso, entretanto, como fundamental ao ser e ao estar no mundo.

 

Em Terra dos Governadores – Fatos da História de Barras, encontrei-me mais ainda inserido em Barras do Marataoã. Em seus personagens, em seus logradouros. Maravilhava-me passear pelas fotos antigas de uma cidade imaginada. Ver a antiga igreja matriz. Ler e reler versos de Teodoro Castello Branco e Celso Pinheiro. Passear pelos perfis biográficos de figuras de outros tempos que pareciam viver: David Caldas, Taumaturgo de Azevedo, João Pinheiro, José Pires de Lima Rebello e tantos outros. Talvez uma emoção ingênua, igualmente vivida por muitos conterrâneos, mas uma emoção sincera de pertencimento, refletida em um livro, nos esforços de pesquisa de um obstinado anatomista do tempo, dr. Wílson Carvalho Gonçalves. Imagino quanta emoção dever ter vivido dr. Wílson em tudo o que descobriu e reuniu sobre a terra-berço.

 

Já adolescente em Teresina, descobri o arquivo público. Na verdade, descobri que, em jornais vencidos, eu encontrava notícias de Barras. Quanta notícia! Para quem fora apartado de lá com grande sentir afetivo, era ocasião para ver-se pelas ruas da cidadela, pelo menos imaginariamente. Movido pela curiosidade e mais pela imaginação, passei a frequentar o espaço, a duas quadras da escola secundária, muitas vezes, quase correndo, até no horário do recreio, sob o pretexto de realizar pesquisas escolares. Coisa nenhuma! Estava interessado, de fato, em remexer papeis antigos como quem joga bola, nada sem impedimentos, passeia pelo bosque, enfim, diverte-se.

 

E foi numa dessas visitas que minha alma encheu-se de entusiasmo quando ali vi prof. Wílson Carvalho devidamente paramentado para a pesquisa. Por várias vezes, a cena se repetiu até criasse coragem de ir à sua pessoa e apresentar-me como barrense. Grande a alegria diante da recepção e empatia que manifestou, de pode ouvi-lo falar, laconicamente, sobre suas pesquisas e, especialmente, de ser ouvido (quanta humildade conceder atenção para aquele quase menino curioso), a ponto que perdi minha extremada timidez diante de sua admirável e humilde pessoa. A mesma que vira por diversas vezes a admirar, com olhos de visível alegria incontida, os festejos religiosos de Nossa Senhora da Conceição das Barras. Eu era apenas um adolescente observador e inquieto que gostava de livros e sonhava, como ainda sonho hoje, vencer por eles.

 

Tratei de adquirir cada livro que dr. Wílson publicava. De vibrar com cada conquista. Nelas enxergava a vitória de toda uma cidade. A vitória, também, da posteridade. Parte significativa de sua vida ele dedicou a recolher informações preciosas, em tempos em que era mais difícil reuni-las de fontes primárias. Três de seus livros foram exclusivamente voltados a Barras, movido por um amor incondicional que começou quando, formado, escolheu a terra natal para sediar sua farmácia e dar aulas; inclusive, estando entre os fundadores do Ginário Nossa Senhora da Conceição de sua cidade. Mesmo pesquisando sobre a história do Piauí e de Teresina, ou nos dicionários biográficos, o município de nascimento era sempre destacado. A ele, sobretudo, Barras deve a divulgação, nas últimas três décadas, de uma forte tradição que existiu até o Estado Novo. Suas pesquisas evitaram que Barras se fragilizasse no imaginário coletivo. Merece, no lugar de origem, a quem devotou um amor sem limites, homenagens grandiosas.

 

De tudo, pesquisou. Inclusive, anotações genealógicas que serviram de base a outros pesquisadores. Das caixas empoeiradas da Casa Anísio Brito, colheu a formação administrativa de Barras de Vila (1841) até o ano de 1989. Para além delas, agrupou um número substancial de perfis biográficos que, para além das conquistas pessoais dos biografados, relatam fatos indispensáveis para a preservação da memória coletiva. Para além de tudo isso, consolidou-se com um dos mais destacados antologistas no meio piauiense, especialmente pelo rigor com que tratava os fatos, ao mesmo tempo, pelo entusiasmo com que os recontava.

 

Em um dos encontros que tive com sua pessoa, ainda rapazote, relatou-me do parentesco com minha avó materna de quem fora contemporâneo (tinham exatamente a mesmo idade), sem que a isso eu desse devida importância por desconhecimento e imaturidade. Somente depois, vários anos depois, é que compreendi que sua mãe era prima de minha bisavó Dasinha (Adalgisa de Carvalho). E mais recentemente é que fui entender que seu grau de ligação era como todos os antigos troncos da antiga Barras do Marataoã, constituidores da gênese da formação do lugar. Vendo que Barras é uma gente só com sobrenome diferente, entendi as pontes entre o antigo Brejo de Anapurus-MA , a partir do velho tronco Feliciana Velves Rodrigues (Lages) e Domingos Gonçalves e a terra de Lêonidas Mello. Pena que a descoberta, mediada pelas leituras de Edgardo Pires Ferreira e Lena Castello Branco Rodrigues, veio em um tempo em que já estava impossível a interlocução com o pesquisador que fora. Certamente, tinha conhecimento sobre.

 

Barras do Marataoã não seria Barras do Marataoã sem Wílson Carvalho Gonçalves. Seu desaparecimento físico na segunda semana de outubro de 2021, aos 98 anos, assinala um grande momento de pesar. Sua obra, porém, permanecerá como um registro indispensável a quem se aventurar a compreender o que foi e é sua terra-berço, por ele rotulada como um “Chão de Estrelas”. Que sua estrela brilhe para sempre nos céus de Barras do Marataoã!   

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

UM TECELÃO DA HISTÓRIA

Fonte: Google




UM TECELÃO DA HISTÓRIA

 

Elmar Carvalho


Fiz amizade com o Dr. Wilson Carvalho Gonçalves, creio, em 1984/85, em circunstância que em outra oportunidade relatarei. Nessa ocasião, ele me falou que fora amigo de juventude de meu pai, posto que eram conterrâneos barrenses e contemporâneos. A partir de então se tornou um grande amigo meu. Prefaciei alguns de seus livros. Fui citado e comentado em várias obras suas. Tive a honra de fazer parte de suas notáveis Antologia da Academia Piauiense de Letras, de cuja primeira edição fiz o prefácio, e da Antologia dos Poetas Piauienses, que igualmente prefaciei. Fui o apresentador de muitos de seus livros, em solenidades de lançamento. Era ele um homem cordial, acolhedor, amável, com delicado senso de humor, em que nunca destilava ironia ou veneno, ainda que sutis. Como uma homenagem ao saudoso amigo, republico a vertente matéria. 

 

O Grande Dicionário Histórico-Biográfico Piauiense, de Wilson Carvalho Gonçalves, para início de conversa, traz uma bela e moderna capa da autoria de Josefina Pacheco Gonçalves, talentosa artista plástica, muito atualizada, sempre em busca de novas concepções e conceitos, de novas técnicas e novos instrumentais, em dia com o que está sendo produzido de mais novo no Brasil e no exterior, e que já conquistou uma vasta legião de fãs e consumidores, no Piauí e no Ceará.

 

O autor vem dedicando o melhor de sua inteligência, tempo e esforço à historiografia piauiense, sem alarde e sem autopromoção. Há longos anos, em laboriosa, porém, discreta pesquisa, vem publicando, em sucessivos livros, atos e fatos de nossa história, sem preocupações com os novos conceitos e métodos historiográficos, sem concessões aos modismos, via de regra efêmeros. Contudo, dentro da boa e velha tradição da história, vem desenvolvendo um grande e importante trabalho, mesmo para os versados e doutos, porque simplesmente trouxe à luz do prelo registros históricos que se encontravam dispersos nas mais variadas fontes, muitas delas de quase impossível acesso, enquanto outras dormiam em velhos alfarrábios, que já quase se diluem aos simples toques dos dedos, por mais carinhosos e sutis que sejam.

 

O livro foi substancialmente aumentado e melhorado, com o acréscimo de mais de trezentos verbetes, sendo que vários dos já existentes foram enriquecidos com novos dados e informações. Em suas páginas desfilam os homens e mulheres que se projetaram em suas diferentes áreas de atuação, sobretudo a política, a artística, a militar, a profissional e a empresarial. É um manancial informativo tão vasto, que em várias outras paragens só é levado a efeito através de um grupo de trabalho, com diferentes especialistas e pesquisadores. Cada verbete traz sua bibliografia, de sorte que abre um amplo caminho para quem quiser se aprofundar em sua temática. Muitos contêm o retrato do biografado e comentários sobre sua obra ou personalidade.

 

Como não poderia deixar de ser, em obra dessa natureza, os verbetes são concisos, dada a amplitude da matéria, entretanto são verdadeiras cápsulas vitamínicas de alta concentração, contendo o máximo de informações por centímetro quadrado. E é nisso que reside o maior mérito da obra, pois para que essa alta densidade de dados e notícias fosse alcançada foi necessário uma alta dosagem de paciência e persistência do autor, porquanto essa massa historiográfica só pôde ser conseguida após demorados anos de penosa e exaustiva pesquisa, em que se não sabe o que mais admirar, se a dedicação de Wilson Carvalho Gonçalves, se a sua habilidade e faro investigativo de encontrar o documento certo no lugar mais incerto.

 

Por tudo isso, comparo o trabalho desse dicionarista com a habilidade e a paciência de um tecelão, porquanto soube extrair das mais diversas e variadas fontes a matéria prima com a qual construiu a sua bela e caprichosa colcha de retalhos - o seu dicionário - que  verdadeiramente forma uma unidade quase inconsútil, tal a competência com  que foi elaborado e articulado.   

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

PAPO DE ESCRITOR

 


Olá, amigos! 

O dia 21 deste mês será marcado pela estreia de Papo de Escritor! Trata-se de uma série de bate papos (regados a poesia) entre poetas que fazem parte do grupo Piauí Poético ou de projetos desenvolvidos por esse espaço literário.

E para iniciar, terá os poetas: Elmar Carvalho, Francisco Gomes, Wilson Maudonado e Claucio Ciarlini.

A live ocorrerá através do Instagram do @piaui_poetico no dia 21 deste mês, as 20h.  

terça-feira, 19 de outubro de 2021

SIGA O ASFALTO, ESQUEÇA DOS DEMAGOGOS

Fonte: Google

 

SIGA O ASFALTO, ESQUEÇA DOS DEMAGOGOS


Antônio Francisco Sousa – Auditor-Fiscal (afcsousa01@hotmail.com)

 

                Sandoval me contou que voltara a morar na casa onde residira por quase dez anos, três décadas depois. No bairro Morada do Sol, no U formado pelas ruas Assis Veloso, Heli Castelo Branco e Major Manoel Lopes. Percebeu, ao retornar, que sua rua e outras vizinhas, em termos de pavimentação, pioraram bastante desde que dali se mudara. A Major Manoel Lopes, porém, até a uns vinte metros da Assis Veloso, está muito bem asfaltada. Por que isso? Desconfiava de que devido ao fato de, quase no cruzamento daquela, Manoel Lopes, com a Assis Veloso, há uns cinco anos, segundo soubera, haver se instalado o consultório dermatológico da filha de, na época, uma vereadora teresinense. Obviamente, a jovem médica não poderia ter dificultada a chegada a seu estabelecimento, de clientes/pacientes, em razão do estado precário da pavimentação das vias públicas que ao mesmo levariam. O que fez, então, a prefeitura da capital, em benefício da filhota da parlamentar? Pavimentou com asfalto – que vem mantendo com denodado zelo e esmero –, todas as ruas que facilitavam o acesso de interessados ao local; graças a isso, a Heli Castelo Branco ganhou uns cinquenta metros de piso asfáltico; bom frisar que esse tipo de cobertura estendeu-se só, e somente só, até a porta do estabelecimento médico; como a Assis Veloso fica a uns vinte metros do consultório, não ganhou nada, assim como também não, outros vários logradouros do entorno ou de arredores; razão de estarem com o mesmo calçamento poliédrico, cabeça de jacaré, da época em fora instalado, quase quatro décadas atrás; como não poderia ser diferente, em péssimo, lastimável estado de conservação.

                Não deixa de ser trágica a situação descrita, mas Sandoval a tem transformado em hilária: sempre que precisa de que alguém venha até sua casa, entregar material, prestar algum serviço, visitá-lo, diante da possível dificuldade de localização do endereço, para quem vem pela Avenida Dom Severino, ele dá a infalível dica: siga o asfalto, vinte metros depois de acabar, vire à esquerda e estará, praticamente, em frente à sua casa. Aos que pretendam vir por vias diferentes, deseja-lhes boa sorte e os aconselha a não se apressarem, não para curtirem a paisagem que se lhes descortina no trajeto, mas a fim de não se arrebentarem com a buraqueira e piso solto que terão de enfrentar. E ele afirma estar adimplente de seus tributos municipais.

                Isto não foi Sandoval que me contou, mas ainda versa sobre o campo minado da política piauiense. Tudo indica ter vindo a calhar a tal lei estadual que isenta do pagamento de multas, imposto sobre propriedade de veículo automotor, seguro, despesas de licenciamento, até sessenta dias após duração dos efeitos da nefasta pandemia pelo coronavírus, motociclistas, taxistas e congêneres, que utilizarem seus veículos no estrito exercício de suas atividades profissionais.

                Como isentar? Porque é isso que acontecerá aos veículos, cujos proprietários em relação aos mesmos estiverem inadimplentes de tributos, seguros e/ou penalidades aplicadas pelas instituições de trânsito. Quantos vão quitar suas obrigações, sabendo que eles não serão apreendidos em razão de tais inadimplências, nem a dívida cobrada após a pandemia?

                Realmente, em boa hora surgiu esse camarada diploma legal. Por mais que viessem a faturar, notadamente, os motociclistas, entregadores de compras ou encomendas feitas por aplicativos, não teriam como quitar as multas que lhes deveriam ser aplicadas por infrações que a cada segundo, minuto ou hora cometem no trânsito, com o que conseguissem levantar como remuneração pelos serviços prestados, nos mesmos intervalos temporais. Raríssimos são os motoqueiros que obedecem às leis de trânsito enquanto fazem suas entregas ou outro serviço qualquer.

Certamente, a lei deve prever que, também a carteira nacional de habilitação, esses maus motoristas ou condutores não perderiam, uma vez que os possíveis pontos que deveriam ser acrescentados a seus prontuários nas repartições de trânsito em razão do cometimento de infrações, seriam desprezados. Quanto aos cidadãos comuns, que andem na linha, senão...

O fato de a lei desconsiderar aqueles cidadãos que utilizam seus veículos para irem até seu local de trabalho, às farmácias, restaurantes, pegar filhos nas escolas, como clientela das benesses legais previstas, apesar de segregá-los, provavelmente, não os teria prejudicado tanto: a pandemia, claro, como a todo mundo, afetou suas relações de trabalho e emprego, mas não a ponto de transformá-los em sonegadores do cumprimento de suas obrigações, nem em transgressores das normas de trânsito. Diminuíram os deslocamentos em seus veículos, por conta das exigências sanitárias, mas, nas vias públicas, continuaram sendo cidadãos honestos, atentos às normas legais pertinentes, e obedientes às proibições impostas. Quanto aos tributos e acessórios devidos, possivelmente, procuraram ou estão buscando a melhor forma de quitá-los.

                Ou seja, há que se dizer que dita lei, aprovada e sancionada, continuará penalizando ou não beneficiando cidadão-contribuinte, empregado ou não, cumpridor de suas obrigações, principalmente, de trânsito, em detrimento daqueles que preferem transgredir, descumprir ou arrepiar normas válidas para todos.

                Enfim, Sandoval, você crê que a justiça fiscal e social possa irromper desse demagógico meio político que temos?  

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

As solidões justapostas

 


As solidões justapostas

 

Fonseca Neto

 

Agora solidões justapostas no povo da casa lucidiana.

 

Ele caçoava da “indesejada das gentes”... Com o devido comedimento, claro. Não se tome maior intimidade com ela.

 

Víamos o mestre tocar no assunto voltando ao convívio acadêmico após os afastamentos para tratar da saúde e que se amiudaram nos últimos anos. Quando Dona Clara silenciou, ele disse: “ronda-me” também a indesejada e não sei se aguento ficar por aqui nessa solidão. Agora ele e ela dissiparam as solidões.

 

Calou a mais completa, bonita e vibrante voz da atual APL. No silêncio o mestre Manoel Paulo Nunes. Não aguentou ficar sem Dona Clara. “É dura a vida de dono de casa” – disse-me tempos depois da partida da amarantina consorte.

 

O corpo do notável mestre e educador – redundância proposital – ofertou-se às entranhas da terra no entardecer quente deste 14 de outubro. Completara 96 anos há três dias, 11. Sua obra fica. Fica porque um escritor dos bons; viveu sob o signo das letras e dos livros. Viveu para os livros. Um totem literário. Realizador nas lavras da cultura, inclusive secretariando a pasta da Cultura.

 

Conheci o grande mestre após sua volta ao Piauí, fora que esteve num exílio da gleba, vivendo em Brasília, funcionário federal que era, muito qualificado. Uma estada de duas décadas. Uma ida necessária, uma volta sonhada e realizada. De Brasília, viu o Brasil, isto é, os brasis, com os olhos de ver, porque já o conhecia pela leitura que fez desde cedo sobre suas literaturas.

 

Servindo junto ao MEC, no DF, eram os anos da infame ditadura militar trazida pelo golpe de 64. Saiu do Piauí após intenso labor pelo erguimento da Universidade Federal, para o que contribuiu, na hora decisiva, ao lado de Dom Avelar, Raimundo Santana, Deolindo Nunes Couto, Camillo Filho, Petrônio Portella, Chagas Rodrigues, Dedé Gayoso, Helvídio Nunes. 

 

De M. Paulo Nunes – nome literário a ornar a capa de seus livros – não é demais afirmar que um piauiense dos mais devotados ao torrão que o engendrou um ser biológico e cultural. Homem que soube apurar o sentido da luz sobre si e de si sobre o arredor. Luzes de sabedoria; homem de fundadas convicções; idealista contumaz – tudo isso traduziu numa luta que teve a Educação escolar como centro de sua vida. Quanto ele, poucos amaram, por exemplo, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. No querer educação para o povo, o “fracasso” desses mestres, dizia, também fora o seu “fracasso”. Mas jamais quis estar no lugar dos “vitoriosos”. E aqui no Piauí – não se enfeite a realidade – Paulo cantava quase sozinho a cantiga esperançosa darço-anisiana.

 

A literatura, os livros, sim, o seu encanto. A criação literária de expressão portuguesa, ibérica, a criação latino-americana, as lavras brasílicas; o chamado “romance de trinta” – falar sobre isso em suas rodas era ver brilharem seus olhos grandes. E vê-lo exercitar sua “crítica”, qual um mago. Daí apreciar o bom vinho ritual; o ouvido especial para a música.

 

Intelectual? Imaginem quanto apreciava João Ferry, dele fazendo patrono de sua Cadeira, 38, na APL. Sobre esse quê literário, a vibração dessa nervura, ele me contava com graça... 

 

Para Cineas ele também contou, n’Solidões Justapostas: “O professor Odilon Nunes dizia que os inteligentes de nossa família não vêm dos Nunes, que ele considerava até meio broncos... A minha avó paterna é maranhense [e] de uma família de bacharéis. Dois primos-irmãos dela foram desembargadores, jornalistas, advogados militantes. O pai não tinha formação acadêmica, mas era um rábula muito inteligente – Severino José Teixeira – meu bisavô. De forma que minha avó, por quem fui criado desde os sete anos, era uma apaixonada por Gonçalves Dias, declamava Gonçalves Dias, inclusive algumas canções de Gonçalves Dias musicadas ela sabia de cor.” Saraus trintanos em Regeneração.

 

Essa história refiro muito a propósito porque por ela travei uma das primeiras conversas com ele, em sabendo que eu também viera daquelas bandas de sua bisavó. Não mais faltou fios de boas histórias para puxar. Sim, os Teixeira do Alto e Médio Itapecuru, são ilustres conterrâneos meus. Gente grande.

 

Estava esperando passar a pandemia para entregar a ele um autógrafo de seu bisavô advogado, que achei em arquivo em Passagem Franca. E dizer a ele o nome da bisavó, que a memória familiar perdera. Sabia ele que era uma Porto... Sim: Francisca do Vale Porto, Teixeira, no silêncio desde 19 de abril de 1882. Agora já se encontraram, nas alturas, e seus mistérios; no destempo.

 

Um pilar na APL. Praticamente todos os que ali ingressaram nos últimos trinta anos têm nele uma referência especial de apoio. E muito devo ao entusiasmo dele pelo chamado para assentar a Cadeira 1 e pela saudação em nome da Casa, naquele 2 de março de 2010.

 

Fonte: Portal Piauí Hoje

domingo, 17 de outubro de 2021

TJPI - 130 anos - depoimentos

 


Seleta Piauiense - Celso Pinheiro

Fonte: Google/Pinterest

 

SONETO

 

Celso Pinheiro (1887 – 1950)

 

 Minha, só minha, só, unicamente minha!...

As tuas mãos de luar, macias e cheirosas,

os teus seios ardendo em músicas de rosas,

a tua boca ideal, ó pérola marinha!

 

É minha a tua carne, a fulgurante vinha |

que tem uvas de sangue, etéreas, luminosas,

e resplende na luz em ânsias ondulosas,

minha, só minha, só unicamente minha! 

 

Minha toda tu és! A graça, o enlevo, o encanto,

a blandícia do olhar, a alva melancolia,

o dealbar do sorriso e o estrelário do pranto! 

 

É minha a exaltação, minha a esperança, minha

a glória de te ter nos meus braços um dia,

minha, só minha, só, unicamente minha!

sábado, 16 de outubro de 2021

Um homem e um século de história

Fonte: Google/Meio Norte


Um homem e  um século de história

Ramon  Vieira de Carvalho

Não havia ninguém mais apaixonado pelas Barras do Maratahoan do que o Tio Wilson. Barrense de berço, emergiu do solo barrense no dia 21 de abril de 1923. Um dos homens mais capazes de seu tempo. Um currículo invejável repleto de honrarias conquistadas pelo esforço próprio reconhecido por vários estados brasileiros. Graduou-se em Farmácia e exerceu a profissão, depois de formado pela Universidade do Rio, em sua terra natal por muitos anos. O interesse pela história corria em sua veia e dotado pelo dom da pesquisa deu cor aos primeiros relatos sobre a cidade do seu coração eternizados no seu primeiro livro, no ano de 1987, intitulado “Terra dos Governadores”. 

Deu o primeiro passo para nós, amantes da história barrense, um norte para seguir. Passou em concurso público para Auditor Fiscal da Receita Federal e obteve por muitos anos um dos maiores salários da Federação não perdendo, com isso, a simplicidade de homem do interior, mas adquirindo a sagacidade para o conhecimento, de um homem do mundo. Impressionava-me sua intimidade com o idioma inglês e seu senso de humor que jamais perdia. Quando, das visitas mensais que o fazia, sempre me indagava em inglês: 

- Where do you come from, man?  - Depois ele traduzia pra mim (De onde vindes, homem?) e eu respondia: 
- Das Barras do Maratahoan. Ele continuava: 
- Love with faith ande pride the land where you were born. (Ame com fé e orgulho a terra onde nasceste) e eu respondia: 
- Forever (para sempre)- A brincadeira virou tradicional e logo aprendi com ele o diálogo. Sempre que chegava com uma camisa contendo frases em inglês, antes mesmo do cumprimento inicial, ele já vinha com a tradução. Boas recordações. 

Wilson Carvalho Gonçalves parte deixando um legado de 98 anos de vida ilibada, honrando sua família, suas raízes, seu povo. Contribuiu com a história de nosso estado dedicando mais de dez livros que remontam biografias e o início do Piauí. Imortal da Academia de Letras, da qual fez sua segunda morada, tamanho era o seu amor por aquela casa, nunca parara de trabalhar incansavelmente como um genuíno guardião de nosso patrimônio histórico. 

Casou-se com uma prima de segundo grau e irmã de minha mãe, Tia Maria Augusta, o que o faz, para o meu orgulho, um parente próximo. A efemeridade da vida nos faz compreender que precisamos cumprir nossa missão em tempo recorde. Cem anos não são nada para quem fez tanto, para um homem que construiu história através do exemplo de correção, empenho, fé e sobretudo, do Amor. 

Ainda que a dor da partida seja grande, que o desfalque no mundo de um homem exemplar seja sentido, o teu exemplo nos reconduz a alegria de ter podido conviver com um homem que amou, em prosa e verso, o nosso PIAUÍ e, excepcionalmente, a nossa BARRAS DO MARATAHOAN. 

O Morro Gemedor da Ilha Grande. O amor de Intã e Ará

Fonte: ferias.tur.br



O Morro Gemedor da Ilha Grande. O amor de Intã e Ará


José Luiz de Carvalho

Presidente da APAL

 

A índia Intã, de pé, na beira do mar na praia da Pedra do Sal, encanta as ondas que em desmaios vem aos seus pés. Dentro de um cenário único no Delta do Rio Parnaíba, um arquipélago fúlvio – oceânico com mais  de 80 ilhas e ilhotas entre rios e igarapés, a Pedra do Sal, é um lugar único, formado na foz do rio Parnaíba e o Oceano Atlântico na divisa do Piauí com o Maranhão.

 

A Pedra do Sal é açoitada por ventos que levantam pequenas tempestades de areia alva e brilhante, um paraíso de rara beleza onde uma enorme formação rochosa divide a praia dando origem a um fenômeno especial que o poeta registrou em seus brancos versos, “Águas mansas, águas bravias, Oh! Pedras do Sal de Frias… refúgio dos amantes…”.

 

Ao lado de Intã, a misteriosa pedra Gigante cravada de sal. Seus longos e negros cabelos em reboliço cobriam um belo rosto tostado do sol daquela quente manhã dos idos de 1755. Relembra sua avó e as estórias que costumava contar das bravuras do índio Mandú Ladino, criado e educado por padres jesuítas e que depois se revoltou com as atrocidades praticadas pelos homens brancos e passou a comandar milhares de guerreiros de várias tribos.

 

Lembranças de sangrentas batalhas contra os brancos da Casa Grande e que culminaram com a morte do cacique Mandú, por afogamento, após ter sido baleado ao tentar atravessar o rio Igaraçu, próximo à Vila de São João da Parnaíba. Janay tinha o costume de ninar os curumins contando as bravuras dos guerreiros Tremembés.

 

Intã passava a mão pelo corpo suado, que agora tinha curvas bem definidas. Aquela barriguinha de menina e as pernas finas haviam se modificado dando destaque para um par de volumosos seios da cor de ameixas do mato, braços arredondados e longas e torneadas pernas. Embora na sua inocência silvícola, não compreendesse sua natureza feminina, tinha a sua faceirice de mulher. De vez em quando a menina moça fazia longas caminhadas. Hora sobre as dunas hora à beira do mar, espantando os pássaros e brincado com as Maria Farinhas, pequenos siris de cor amarela se escondiam na alva areia.

 

Não muito distante dali de onde estava, duas naus cruzavam fogos. Eram os piratas que haviam abordado uma pequena caravela. Depois de longa batalha a caravela vai a pique. Os piratas adentram a baía das Canárias em busca de um lugar seguro para avaliarem os resultados do último assalto.

 

Na beira do mar todas as manhãs Itã repetia seu ritual, o de encantar as ondas olhando os voos atrapalhados das gaivotas, os siris azuis correndo na grossa areia e os carcarás comendo búzios e restos de peixes. Intã parecia esperar do mar algum presente. Tinha uma fascinação pelo horizonte imenso do mar aberto. Queria saber o que havia além daquela linha azul, onde a água parece tocar o céu. Arauté se preocupava com sua filha que não se comportava como as outras meninas da aldeia, que passavam horas tomando banho nas lagoas de água doce. Nadando e pescando pequenas piabas da cor de prata. Os Tremembés adoravam nadar e pescar.

 

Tinham o costume de tomar vários banhos ao dia. A tribo de Intã conhecia bem a língua dos brancos, graças aos ensinamentos passados à tribo pelo seu bisavô Mandu Ladino, índio Arani e que ficou órfão de pai e mãe aos 12 anos de idade, tendo sido criado e educado por padres jesuítas da Ordem dos Capuchinhos, no Cariri do Boqueirão, próximo a Recife. Depois se rebelou contra os brancos e se tornou a maior liderança indígena dessa grande região.

 

Era final de tarde, Intã contemplava o belo por – do- sol e se encantava com aquele extraordinário fenômeno. Era o mais belo pôr-do-sol que assistira em sua vida. Ela caminha em direção ao pontal, onde a praia da Pedra do Sal termina no rio Parnaíba, bem próximo a sua foz.

 

Itã avista de longe, sendo empurrada pelas ondas, alguma coisa. Por alguns instantes pensou se tratar de um tubarão, um filhote de uma baleia encalhado ou uma tartaruga gigante vindo botar seus ovos na praia. A tarde se findava, o sol já se escondia no mar. Intã, curiosa, corre e se aproxima. Começa a perceber que se tratava do corpo de uma pessoa agarrado a pedaços de madeira que fracamente se debatia contra a força das ondas.

 

Movida por um inexplicável impulso cai na água e com fortes braçadas se aproxima, ainda que um pouco assustada, mas com vontade de ajudar aquele infeliz. Observa que o homem estava completamente nu. Suas roupas haviam sido arrastadas pela força das águas. Era um homem grande e forte de cor branca, cabelos longos e loiros, com firme musculatura, uma bela formosura, algo nunca visto por aquela jovem índia.

 

Seus olhos se cruzam. Íntã estende a mão. O homem com um esforço que parecia o último, agarra na mão da índia e larga os pedaços de navios que lhe ajudaram a chegar próximo da praia. Intã, com um esforço muito grande conduz aquele homem até a praia. Desidratado, o náufrago pede água. A índia corre até o rio e traz um pouco de água, coloca a cabeça dele sobre o seu colo e lentamente molha os seus lábios com a fria e doce água do rio Parnaíba.

 

O guerreiro branco logo se recupera e afasta-se com um impulso e tenta correr pela praia, tropeçando em um pequeno barranco de areia. Intã, vendo o desespero daquele homem gigante, sorri. Ele se levanta e se aproxima olhando firme dentro dos seus olhos. Depois gira o olhar para todos os lados e vê que não havia outros índios, apenas aquela bela e frágil mulher. Intã indaga ao estranho.

 

– Quem é você e de onde vem?

 

– De muito além do mar! Minha caravela foi afundado pelos piratas!

 

Íntã dominava muito bem a língua dos bancos, mas aquele era um pouco diferente. Mas com dificuldades entendeu o suficiente para saber que aquele homem precisava de sua ajuda.

 

– Guerreiro Branco, sua vida nestas terras corre perigo. Meu povo caça e mata brancos por vingança. Os brancos tocam fogo nas aldeias, raptam mulheres, matam velhos e crianças.

 

– Devo-lhe minha vida. Minha alma agora está presa à sua.

 

– Vamos andar pelo caminho sobre as dunas até as matas. Temos que seguir em busca de um lugar seguro para você ficar. Ali existe uma velha cabana. Ninguém vai lá!

 

Após longa caminhada, a noite imperava. Uma escuridão sem lua, apenas milhões de estrelas, em um céu de prata. Os dois chegam à rústica cabana, que já estava caindo aos pedaços, restando apenas uma banda de uma coberta feita de palhas de carnaúba.

 

Fria noite de ventos açoitantes de agosto. Em meio ao carnaubal, um verdadeiro moinho de ventos soprava as palhas. Cansado, o guerreiro encosta sua cabeça em um fardo de palhas que estavam amarradas. Em um canto da cabana ele cai em um mais profundo sono. Íntã sabe que tem que voltar para casa e segue sozinha. Pois naquelas horas os índios já estavam à sua procura e sua mãe desesperada, pedindo a ajuda de Tupã.

 

Na manhã seguinte Intã acordara antes do sol nascer. Prepara um uru, enche de frutas. Pega uma cabaça com água e sai. Antes fala bem baixinho no ouvido de sua mãe, que iria assistir ao nascer do sol na praia. Nas pontas dos pés, se afasta da aldeia e depois segue em rápida marcha até a cabana que fica um pouco distante dali. Tinha consciência do perigo que aquele homem corria, caso fosse encontrado por alguém da sua tribo. Ao chegar à cabana não mais encontrou o seu hospede. Saiu gritando. Mas como chamá-lo, pois nem sabia seu nome?

 

– Ará, Ará, Ará… UHU! Ará!

 

Pensou. Ará seria um bom nome para aquele guerreiro branco.

 

Debaixo de um enorme pé de juá, distante umas 30 braças dali – rindo, o homem se aproxima vestido de uma velha calça que havia encontrado junto ao pé de juá. Embora tenha ficado um pouco curta, era melhor do que ficar nu.

 

Intã, ao vê-lo sentiu uma forte sensação. Algo que não costumava sentir. Uma sensação muito forte. Ará, homem experiente da vida na Espanha, logo percebeu que a jovem sentia atração por ele. Aproxima-se e tenta tocá-la, ao que ela rapidamente pula para trás e saca seu arco e fecha. Com uma mira certeira atira ferindo de raspão o seu rosto.

 

Ará, num pulo, digno de um jaguar africano, agarra a moça e lhe toma o arco e retira de suas costas as flechas. Mesmo sagrando um pouco pelo arranhão da flechada, ele fortemente a abraça e lhe dar um beijo ardente. Cheia de emoção, a jovem cai sobre o seu príncipe e rolam abraçados pelo colchão de areia, trocando íntimas carícias e selando ali um perfeito relacionamento, entre duas pessoas de mundos tão diferentes.

 

O choque cultural neste momento cedeu espaço aos mais íntimos instintos carnais, em acasalamento. A partir deste momento o casal passa a viver uma verdadeira lua de mel naquele paraíso. Os dias se sucederam e eles continuaram se encontrando. Andavam de mãos dadas sobre os campos de relva verde entre os carnaubais. Tomavam banho nas muitas lagoas que ali existiam. A ardente paixão crescia a cada dia. Uma verdadeira história de amor.

 

Os índios começaram a desconfiar dos longos períodos de ausência de Intã, que nunca mais ficava na praia olhando as ondas. Mesmo assim transparecia viver um grande momento de felicidade. Era  o início no mês de novembro  do ano de 1755.

 

 

 

(Morro Gemedor – créditos dessa foto: ferias.tur.br)

 

Naquele dia a chuva com fortes trovoadas iniciou cedo da tarde, Ará não deixou que a moça fosse embora, pois seria muito perigoso sair em meio a aquela tempestade. A chuva aumentava e o vento soprava com fortes rajadas, mudando de direção. Relâmpagos iluminavam toda a praia e eram seguidos de grandes trovões.

 

Parecia que o mundo ia se acabar. Na cabana, que embora tenha sido reformada por Ará, ainda permitia passagem de água, soprada pelo vento. Naquela noite o nível do mar subiu muito e uma onda gigante passou pela praia. O grande maremoto seguiu rumo ao continente avançando dezenas de quilômetros cobrindo toda a região costeira, destruindo árvores e aldeias atingindo os litorais do Piauí, Ceará e Maranhão.

 

Os Tremembés que habitavam a parte mais alta daquela região conseguiram fugir deixando para trás seus pertences. Intã e Ará continuaram firmes e agarrados, um ao outro, dentro de sua “tapera” que foi arrastada e soterrada pela onda gigante de água, areia e lama.

 

Ainda hoje, contam os moradores daquela região que em noites escuras é possível do alto das dunas se ouvir os gemidos de Íntã nos braços do seu príncipe encantado no Morro Gemedor.

 

OBS: História (“estória”) de ficção baseada na lenda do Morro Gemedor da Ilha de Santa Izabel no município de Parnaíba.

 

OBS: No dia primeiro de novembro de 1755, ocorreu um terremoto muito forte em Lisboa, Portugal e gerou um grande maremoto que atingiu o Nordeste brasileiro (Tsunami).

 

OBS: Esse conto da Lenda do Morro Gemedor foi publicado  em 2011, no livro de minha autoria – Bury-Açu – O Espirito do Brejo  – Contos, Causos e Lendas.  

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Poesia de Graça Vilhena

Fonte: Google

 

Poesia de Graça Vilhena

 

Carlos Evandro M. Eulálio

Professor, escritor e crítico literário

 

A obra “Poesia Reunida”, da Professora Graça Vilhena, publicada pela Quimera Editora, Teresina 2018, reúne as 40 poesias do livro Em Todo Canto, publicado em 1997, e mais 50 poemas do livro Pedra de Cantaria, de 2013, cujos textos tivemos a oportunidade e o prazer de comentá-los no nosso ensaio “Lírica e Memória em Pedra de Cantaria”, publicado neste Portal e no número 50 da Revista Presença, órgão do Conselho Estadual de Cultura do Piauí.[1], onde destacamos a memória como principal dominante poética naquela obra.

 

Sobre o modus faciendi da poesia de Graça Vilhena, eu resumiria nas palavras do Prof. Cineas Santos:  “[...] Graça constrói versos de rara beleza. O estrutural e o ornamental, em sua poesia, estão de tal forma imbricados que é praticamente impossível dissociá-los”[2].

 

Os poemas de Graça Vilhena, magistralmente elaborados, são em geral de extensão curta e quase todos em versos livres. A riqueza de suas imagens é obtida com o emprego de metáforas, anáforas, assonâncias, aliterações e enjambements, facilmente encontráveis neste poema[3]: 

 

não quero essa rotina triste

o dedo em riste na menor culpa

e a desculpa nos menores atos

não quero esse beco escuro

esse muro alto onde a gente tenta

pacientemente o outro lado

não quero censura por meu desacato

quando desato consciente

o nó indecente das convenções

não quero o coração acomodado

nem dado a aceitar passivamente

as queixas dementes da razão

não quero a vida com ressentimento

e nem momentos que sejam de abandono

em que o sono pareça morte.[4] 

 

O poema é um grito de liberdade da mulher insubmissa, daí o  caráter universal do texto. É construído com versos livres em uma só estrofe. A musicalidade do poema é obtida pelas assonâncias e aliterações em palavras distintas, que colaboram ainda em virtude do ritmo para a criação de imagens.    

 

 A propósito dos versos livres, o poeta Carlos Drummond de Andrade, em entrevista que concedeu em 16 de junho 1984 à pesquisadora Maria Lúcia do Pazo, afirma:

 

[...] o Modernismo abriu avenidas novas em matéria de versificação. Ele deu um impulso muito grande ao verso livre. É um verso talvez mais difícil de manejar, porque não tem limites, não há legislação técnica sobre o verso livre. Há quem diga que ele alcança o limite do ato de respirar da pessoa. Quer dizer, se a pessoa não consegue enunciar o verso de um simples golpe, ele não é mais um verso, serão dois ou três versos..[5]

 

Segundo relato da Prof. Graça, sua opção pelos versos livres se deve à influência de Bandeira e pelo fato de com eles obter imagens e mais ritmo em seus poemas.     

 

H. Dobal[6], referindo-se à poesia da profa. Graça Vilhena, na introdução da obra “Em cada canto”, declara, parafraseando da autora o poema “Fim de mundo” que, “Ao contrário do Bandeira da primeira fase, Graça faz poesia como quem vive “pessoas comuns.” [...]. Por isso os seus poemas suportam com vantagem o teste da releitura, o que é sem dúvida, um sinal de grandeza”.

 

O viver pessoas comuns como afirma H. Dobal é uma forma de estar no outro. Vemos nesse processo de construção poética um traço marcante da lírica moderna, visto que a poesia, até então como expressão exclusiva do eu, faz-se agora porta-voz de um ser que não é mais uno.

 

A poesia passa a interpretar, também, o universo coletivo dos homens. O conteúdo de um poema, nos termos de Adorno[7] não é mera expressão de emoções e experiências individuais. Ao contrário, estas só se tornam artísticas quando, exatamente em virtude da especificação de seu tomar-forma estética, adquirem participação no universal, como nestes versos do poema Os ratos, extraído da obra Pedra de Cantaria:

 

Há um lugar

onde moram os ricos

e outro os pobres

 

porém há um povo

que mora em qualquer lugar

da cidade generosa

com seus chafarizes e sombras

bancos e marquises

 

dele nada sabe o rico

nem o pobre

só os ratos que engordam

e correm pelos domingos vazios

do centro da cidade

 

O texto, cuja temática centra-se na denúncia das desigualdades sociais que acometem as nações em todo o mundo, retrata a realidade do cotidiano transformada em poesia como instrumento de participação social e política. É um traço marcante da poesia lírica universal contemporânea.

 

Conforme Adorno, essa universalidade do conteúdo lírico é essencialmente social e só entende o que o poema diz aquele que escuta, em sua solidão, a voz da humanidade refletida no poema. ”  (ADORNO; p. 67)[8]

 

No entanto, adverte Adorno: “A referência ao social não deve levar o conteúdo para fora da obra de arte, mas sim levá-lo mais fundo para dentro dela mesma. ” Com isso, o filósofo e sociólogo alemão deixa claro que sua intenção “não é criar uma ponte entre dois elementos distantes, mas descobrir o vínculo que a própria lírica, justamente por causa de sua emancipação, ainda mantém com a sociedade”.[9]

 

Ocorre a partir daí o que Anazildo Vasconcelos da Silva denomina semiotização lírica do discurso, através da qual

 

 “A mediação literária, ao tempo em que desenvolve o Eu lírico como instância do discurso, que não se confunde, por sua natureza mimética com o Eu histórico da identidade do autor, rompe com os possíveis condicionamentos externos. Desse modo a estrutura lírica se libera da imagem de mundo tomada como proposição da realidade, e se constitui numa unidade/totalidade autônoma.”[10]

 

Dessa forma, vemos o processo literário de criação de Graça Vilhena, constituído pela mímesis do real, converter-se em discurso lírico nos poemas com tendência para o épico ou epilírico, em que de uma forma híbrida a autora concilia o gênero épico e dramático com a expressão lírica.

 

Nesse sentido Emil Staiger (1997) corrobora a tese de que não há nenhum gênero puramente lírico, dramático ou épico, mas uma interação, uma inter-relação entre os gêneros literários ao acrescentar:

 

“[...] apenas chamo a atenção para um ponto: uma obra exclusivamente lírica, exclusivamente épica ou exclusivamente dramática é absolutamente inconcebível; toda obra poética participa em maior ou menor escala de todos os gêneros e apenas em função de sua maior ou menor participação, designamo-la lírica, épica ou dramática (1997, p. 189/190).

 

Esse hibridismo de gênero literário pode ser observado na poesia lírica de Graça Vilhena nos poemas cujo tom narrativo remete a algum acontecimento passado como no texto “Caso de amor”:                 

 

Foi como está                 

um bar

uma cerveja gelada

e o amor lúdico acontecendo.

 

Depois todos os beijos

pareciam definitivos

o amor amanhava manhãs

colhia girassóis à noite

criava constelações.

 

Foi o amor além do amar 

além do mal 

até tornar-se um desenventivo punhal.

  

O amor nem sempre tem um final feliz; a tragédia amorosa cerca a história dos amantes que não ascendem à felicidade sonhada. O poema embora se enquadre no ramo da Lírica, apresenta características peculiares também à Épica e ao Drama, quando se constata que a apresentação de uma ação é movida por um dinamismo de tensão que se encaminha para o desfecho trágico. Vimos, portanto, que o poema, além de cantar, também conta.

 

 Vale ressaltar no texto uma peculiaridade da poeta: a criação de neologismos recorrentes em muitos dos seus poemas. Em nenhum dicionário encontramos a expressão “desenventivo punhal” que na poesia adquire uma extraordinária dimensão semântica.  

 

Em outro poema, Cena Familiar, o tema social emerge do próprio poema:

 

O avô e a avó tossem 

o pai viajou 

a mãe talvez volte 

 

o menino alheio ao perigo 

brinca à sombra do relógio. 

 

No texto, a voz de um narrador conta o drama familiar, em meio à indiferença da criança que tem a capacidade de imaginar e se maravilhar com a vida. Mesmo à vista do caos, e sinalizado pela inexorável passagem do tempo à sombra do relógio, vê ainda a grande oportunidade de reinventar a brincadeira. Há no poema traços estilísticos épicos, quais sejam: um tempo indeterminado, um espaço tópico, um narrador, a presença de personagens e uma ação que se desenvolve pelo protagonista.

 

O hibridismo dos gêneros literários, tão bem explorado na poesia lírica de Graça Vilhena, é recorrente em muitos poetas modernistas como Bandeira, Cora Coralina, Drummond, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto e outros.

 

Na obra de Graça Vilhena esse tom epilírico é predominante em seu primeiro livro, com destaque para os textos Poema Comum, Perdas e Danos e Homem Grande.

 

Na visão de Mikhail Bakhtin, filósofo e pensador russo, o que existe no texto possível de ser analisado é o enunciado. Ao concebê-lo como objeto de estudos linguísticos, ele considera o dialogismo elemento essencial da linguagem, cujo princípio constitutivo confere significado e sentido ao discurso. Assim, o texto se define pelo diálogo entre os interlocutores. Ressalta ainda como característica principal do enunciado, aqui entendido como a frase em uso, além do dialogismo já citado, a polifonia de vozes.

 

O conceito de polifonia, neste caso, supõe o texto em suas relações com o contexto social, com os textos já lidos pelo leitor e com experiências vividas. Daí as criações metalinguísticas de Graça Vilhena, ao compor poemas dedicados aos poetas H. Dobal, Manoel de Barros e Mário Faustino:

 

Campos passados

 

                                      (para o poeta H. Dobal, in memoriam) 

 

campos de verde engano 

terra alagada de desejos 

onde pastava a inquietação 

 

campos de verdes tempos 

falso silêncio de carnaubeiras 

leques de harém na mão do vento 

 

ai meninas ai bastardos 

grilos de dor que se perderam 

na vastidão dos latifúndios 

                                                     

 Lição de poesia

 

                   (para o poeta Manoel de Barros) 

 

uma rolha de cortiça serve 

para boiar lembranças 

de um amor de festa 

 

caixas de fósforo molhadas 

são também silêncios 

para não acordar os candeeiros 

e baganas espalhadas nas calçadas

 

é só pisá-las 

para que os outros pensem 

que se apagam estrelas                               

 

 ...

 

Faustino

 

                   (para o poeta Mário Faustino, in memoriam)

 

 

 

dentro de tua hora 

em um cavalo alado 

viajo sobre os lagos 

de cisnes traduzidos

 

 disse-me o oráculo 

que vives além do tempo 

entre a aurora e o meio dia 

no movimento das palavras ao sol 

 

e se me põe na colheita 

teu olhar semeador 

sinto a presença humana e infinita 

da poeira estelar que te ilumina

 

Nesses poemas dedicados a cada autor citado, as vozes dos poetas se cruzam em meio aos versos da autora que com eles compõe um novo texto. Cada poema apresenta informações novas e as que já fazem parte do conhecimento prévio do leitor, passando a ocupar novos espaços em que o eu lírico, deixando de ser o centro da interlocução, cede lugar à interdiscursividade.

 

Esses textos são enfim tecidos simultaneamente por vozes que se cruzam no interior de si mesmos. A forma como a autora os constrói guardam semelhança com o poema “Antologia”, de Bandeira, que é composto intratextualmente, mediante a colagem de versos diferentes dos vários poemas do poeta. No caso dos poemas pelos quais Graça Vilhena homenageia os poetas piauienses, eles são compostos de versos desses autores criativamente e intertextualmente reelaborados.

 

 A metapoesia também comparece na obra de Graça Vilhena, no

 

  “Poema sem lua” 

 

melhor falar dos homens 

e seus eventos 

há muito mais poesia 

no bêbedo que alinhava a rua 

do que no repetido luar 

que o ilumina 

 

Aqui a poeta dialoga com Manuel Bandeira, quando este no seu Itinerário de Pasárgada relata como lhe chegaram as primeiras noções de poesia através do pai: 

 

“Assim, na companhia paterna ia-me eu embebendo dessa ideia que a poesia está em tudo – tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas. ” 

 

Para Graça Vilhena a poesia não é só produto da inspiração romântica, pois ao invés “do repetido luar que a ilumina” ela está dispersa no mundo e pode ser encontrada nas coisas e cenas mais cotidianas.

 

A poesia intimista e reflexiva é outro aspecto relevante na poesia de Graça Vilhena, principalmente quando o propósito é a tentativa de interpretar o eu lírico através da imagem que se apresenta no texto intrinsecamente relacionada à poesia.

 

Otávio Paz define a poesia como “a outra voz” que é “memória feita imagem e está convertida em voz. A outra voz não é a voz do além-túmulo: é a do homem que está dormindo no fundo de cada homem. Memória que presentifica o passado pela recordação, atitude fundamental lírica: o não distanciamento, isto é, a fusão do sujeito e do objeto, do mundo interior e exterior, passado, presente e futuro. Por essa razão, Emil Staiger denomina recordação a essência lírica, com base na etimologia da palavra, O vocábulo “recordar” deriva do latim: é a junção do prefixo “re”, que significa “repetir” e “cordis”, que significa “coração”. Assim, “recordar” (re-cordis), tem o sentido de fazer passar novamente pelo coração. Através do poema “Rua da Glória” (atual Lizandro Nogueira) tem-se o resgate da memória pela recordação em sua essência lírica não de uma rua, mas de uma cidade:

 

paisagem de sol nascido 

na estação do trem 

cerzindo os dias 

sobre as pedras da rua 

que abrolhavam luz 

 

manhãs tangiam beatas 

palmolivelmente 

para a missa da Amparo 

 

senhoras varriam calçadas 

recolhiam leiteiras 

e caçoavam histórias 

com suas línguas de camaleão 

 

no mercado central 

as verdureiras arranjavam 

buquês de cheiros-verdes 

 

e mais além 

mulheres permaneciam 

sem hora de seus dias 

dissolvendo-se em transparência 

nas escamas do cais 

 

Através da poesia podemos recuperar uma época e descobrir como se davam as relações sociais no nosso passado. Tem-se no presente a imagem do cenário de Teresina na década de 1950.  Poesia que se constrói em estreita relação com a visualidade presentificada pela memória por meio de uma linguagem metafórica, sinestésica e criativa. O neologismo, tão recorrente em muitos de seus poemas, aqui “palmolivelmente” é empregado com humor e como referência á fragrância do sabonete palmolive que exalava das beatas, já comercializado àquela época. Seguem a mesma linha temática do texto Rua da Glória os poemas: Cine Rex (poema visual e de influência concretista), Na beira do Cais (todo ele composto com versos tetrassílabos, isto é, com quatro sílabas) e o Garrafeiro (poema que recupera a imagem de um profissional que não mais existe entre nós, a exemplo do leiteiro, padeiro, vareiro e pescador de defuntos. Este último, retratado na obra Palha de Arroz por Fontes Ibiapina. 

 

O prof. e filósofo Flávio Kothe, na obra “Literatura e Sistemas Intersemióticos”, afirma que o texto literário, isto é, o artefato, é como Lázaro no túmulo: “a leitura é sua ressurreição. Os textos são cadáveres que ressuscitam de seus túmulos ao toque das mãos e dos olhos do leitor. ” (KOTHE, 1981, p. 17).  Assim, os motivos que tecem a estrutura de uma obra poética, oferecem inúmeras possibilidades de leitura.

 

O poeta Mário Faustino criou e manteve no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB) uma página inteiramente dedicada à poesia, no período de setembro de 1956 a janeiro de 1959. As matérias que ali publicava eram distribuídas em páginas por diferentes seções. Dentre essas seções, a mais lida chamava-se “Pedras de Toque”, título inspirado nas célebres touchstones de Wallace Steven: eram versos de poemas que exemplificavam os momentos de alta realização da linguagem poética.

 

Neste ensaio, selecionei 10 pedras de toque que considero os momentos mais expressivos da poesia de Graça Vilhena: 

 

1. Meus olhos velam tua ausência 

2. Os dias são feitos de um longe esquecer 

3. Do nosso segredo sabe a flor que vigia a noite 

4. Meu coração é um pássaro alongando o céu das incertezas 

5. Menino, passa pra dentro, senão o amor te pega! 

6. O amor ultimamente anda assim desprevenido sem vontade de ficar. 

7. Arranquei de mim tua lembrança como quem solta um pássaro que não canta 

8. Ria do que sobrou – dos meus pedaços eu renasço. 

9. A mágica feliz do amor: ser amado à loucura e não ser louco de amar. 

10. Foi o cafuné das andorinhas que adormeceu os sinos da cidade. 

 

A obra da professora Graça é vasta, bela e agradável de ler.  Diz o escritor IÍtalo Calvino que uma obra clássica é a que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Por isso, a análise que realizamos da obra literária de Graça Vilhena, por si, não esgota todos os aspectos estéticos e estilísticos de seus poemas que possuem um campo linguístico fértil, multissignificativo e plurissignificativo à espera de outros leitores e de outras leituras.  

 

[1] EULÁLIO, Carlos Evandro. Lírica e Memória em Pedra de Cantaria. Teresina-PI : Revista Presença Ano XXZVIII, nº 50 – Conselho Estadual de Cultura, 2013, p.38/41

 

[2] SANTOS, Cineas. Água de Cacimba. In VILHENA, Graça. Pedra de Cantaria, Teresina : Nova Aliança, 2013, p. 8

 

[3] VILHENA, GRAÇA.Não querer, In Em todo canto. Teresina : Corisco / IDB, 1997, p. 19

 

[4] Não querer, VILHENA, 1997, p.19.

 

[5]folha.uol.com.br/ilustrissima/2012/07/1116430-erotismo-poesia-e-psicanalise-em-entrevista-inedita-de-drummond.shtml, acessado em 4/11/18.

 

[6]H. Dobal. Um sinal de grandeza. In VILHENA, Graça. Em todo canto. Teresina : Corisco e IDB, 1997, p.7

 

[7] ADORNO, Theodor. “Palestra sobre lírica e sociedade.” In. Notas de Literatura. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 66

 

[8] ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Trad. Artur Morão. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1988.

 

[9] BOTTON, Alexandre M. A individualidade imanente na poesia lírica. www.unemat.br/revistas moinhos/media/files, acessado em 3/11/18.

 

[10] SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Semiotização literária do discurso. Rio de Janeiro : Elo Edit. 1984, p97