segunda-feira, 13 de maio de 2024

A "RODA" DA CASA DO VOVÔ TONHO

 

Iniciando da esquerda: Antônio Freitas (vovô Tonho); Antônio Portela (Senhor Portela), comerciante e intelectual; José Cândido Gayoso, comerciante; Alberto Veras, Juiz de Direito; Ary Carvalho, político, duas vezes prefeito do município.




A "RODA" DA CASA DO VOVÔ TONHO

 

Fernando Freitas

Historiador e ex-prefeito

 

Uma maravilhosa lembrança, das mais antigas que tenho da vida é de uma "roda" de gente em frente à casa de meus avós, o bangalô branco de 1935 (vai sediar o museu local), em José de Freitas. Só pessoas adultas, autoridades, funcionários públicos, proprietários rurais, comerciantes, muitos políticos. Era o final dos anos 50, e a "roda", existente desde os anos 40, todos os dias se fazia, das 19h às 21:30h porque a luz da cidade apagava, literalmente, às 22h. 

Eu tinha menos de dez anos de idade e me sentia adulto e privilegiado de ficar por ali. As 18h, impreterivelmente, minha avó Corina cobrava de uma empregada: - "já botou as cadeiras pra fora? Não esqueça de fazer o café". A "roda" era frequentada pelas pessoas influentes da cidade, mas assiduamente por meu avô Tonho (Antônio Freitas), o então  chefe político de maior expressão da cidade e dono da casa; Ferdinand Freitas (prefeito), filho e sucessor de Tonho por cerca de três décadas; pelo Juiz Alberto Veras; Jacob Sampaio Almendra (ex-prefeito); Ary Carvalho, irmão da vó Corina e um dos mais ricos, nunca casou; os irmãos Edgar Gaioso (ex-prefeito) e Moacy Gaioso, Renato Batista (IBGE), Antônio Craveiro de Melo (caixa da Casa Almendra e ex-prefeito); os irmãos Chico Araujo (vereador) e Nemésio Araújo (oficial de justiça); Levy Carvalho (como ele mesmo se intitulava: "alto funcionário público federal aposentado". Era dos Correios). Dr. Francisco Craveiro de Melo (médico da cidade que aparecia de vez em quando)... 

As lojas da cidade fechavam às 17 horas. No final de semana, o comércio só ficava aberto até a hora do almoço do sábado. À noite, praticamente não existia opção de divertimento, as famílias sentavam-se às portas de casa e assim a "roda" da casa de "seu" Tonho transcendeu no tempo, inclusive à sua morte, em 1963, e permaneceu até a chegada da televisão nos anos 70. Aí a "roda” não aguentou a concorrência da tal modernidade.

domingo, 12 de maio de 2024

NOTURNO DE OEIRAS

 

Fonte: Google

NOTURNO DE OEIRAS


Elmar Carvalho

 

Meia-noite.

Metade silêncio,

metade solidão.

 

Atravesso a praça das Vitórias

na hora dolorosa das doze badaladas

punhaladas que também me atravessam.

 

Da casa de doze janelas

doze donzelas me espiam com olhares

que são setas de medo que

assustam e extasiam.

 

Passadas pesadas

nos assoalhos de tábuas

dos rugosos sobrados se confundem

com o batuque tuc-tuc e

com o atabaque tac-tac

de meu desengrenado coração.

 

A lua se esgueira e espreita

das frestas das nuvens.

 

Os fantasmas caminham

solenes, devagar,

visíveis e invisíveis,

seres que são e não são.

 

No horto do Pé de Deus

visagens rezam contritas.

No horto do Pé do Diabo

assombrações assombram

bichos e visitas.

 

À distância a casa da pólvora

vigia em sua solidez de pedra bruta.

 

Nos campanários de antigas igrejas

algum falecido sineiro repica

os sinos para si mesmo.

 

Uma sonata se evola

de piano que já não existe.

E persiste por pura teimosia.

 

O suicida se insinua

no vão da escada de vetusto sobrado.

Uma taça de prata tilinta e se despedaça ...

 

O relógio da catedral

parou no tempo que continua:

a pátina rói as bordas

da ferida do mostrador e

mostra a dor das doze badaladas.

 

Negros ainda esperam abolição

absolvição nas cercanias do Rosário

pelos pecados que não pecaram.

 

As pedras antigas do calçamento

são percorridas por sombras

feitas somente de alumbramento.

 

O vento que passa

não é vento: é fru-fru

de saia de pessoa morta

ou hálito de porta

de casa já demolida.

 

Da Madona lágrimas escorrem

e chovem sobre os telhados ...

 

Oeiras navega na noite

de um tempo que não termina.

De um tempo sem medida, fugitivo

de ampulhetas e relógios.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

CEGO BENTO

 

Charge da autoria de Gervásio Castro

CEGO BENTO 

 

Elmar Carvalho

 

Desde 1975, quando fui morar em Parnaíba, passei a ver o cego Bento (Bento Araújo da Cunha, *1921 - +2013) perambulando pela cidade, com seus acompanhantes, um dos quais, seu irmão, também mergulhado nas densas trevas da cegueira, a encher os bares com a música de sua sanfona. Compunham um legítimo conjunto do chamado forró “pé-de-serra”. Após a apresentação, o ouvinte dava ao sanfoneiro o dinheiro de que podia dispor, quase sempre muito escasso. Pouco ou nada sabia da história do cego.

A minha série de poemas titulada “PoeMitos da Parnaíba”, em que canto os “mitos” dessa amada e aprazível cidade, foi elaborada aos poucos, e aos poucos foi publicada no jornal Inovação, periódico valente, de saudosa memória, que não poupava o lombo dos pulhas, salafrários e corruptos. Cada número trazia dois ou três “poemitos”, o Reginaldo Costa sempre me cobrando novos poemas, mas eu já me sentia esgotado na inspiração, pois caracterizar ou caricaturar uma pessoa, no que ela tem de pungente ou anedótico, em poucos versos, é uma tarefa difícil e ingrata. Só anos após a desativação do brioso pasquim é que encerrei a série, creio que com chave de ouro, ao consagrar o último poema ao cego Bento. Tempos depois, estando eu numa barraca, ao pé do mar, na praia de Atalaia, a que prefiro o nome poético e sugestivo de Amarração – de amar, amarrar-se, amar de coração – chegou o cego trazendo a música na caixa e no fole de sua sanfona. Identifiquei-me como o autor do poema que lhe endereçara, e lhe fiz um meteórico discurso. O cego emocionou-se, agradeceu-me, e lamentou não haver sido gravada a minha, talvez importuna e inoportuna, peroração.

Alguns meses atrás recebo uma correspondência sua, na qual está contada, em síntese, a sua vida de pobre e de amante inveterado da música, desde criancinha, em palavras simples, mas claras e precisas. Nasceu para a vida e para a música em 17 de setembro de 1921, no lugar Boa Vista, município de Luís Correia. Casou-se no dia 31 de janeiro de 1951, tendo gerado doze filhos. Aos dez anos já tocava uma gaita de boca, mais conhecida em nosso meio como realejo, enquanto seu irmão Bernardo balançava um badalo, mas afirmando estar a tocar um cavaquinho, o sonho e o desejo se impondo à crua realidade de percalços e pobreza. Seu irmão Benedito batia com o “cabeção” em um tamborete e fazia retinir umas argolas, como se fossem um maracá. Foi assim, com essa improvisada orquestra de crianças irmãs, que se iniciou a bela trajetória musical do cego Bento.

Em 1935, quando tinha 14 anos, seu pai foi morar no lugar Gameleira, onde aprendeu a executar uma pequena harmônica de quatro baixos. Seu irmão Bernardo tocava um cavaquinho, porém sem saber afiná-lo, apenas fazia barulho, mais servindo de percussão do que de acompanhamento, o amor à música muito maior do que a sua habilidade de criança. Benedito, o outro irmão, empunhava o reco-reco. Surgiram os contratos, que possibilitaram a melhora da orquestra. Às vezes, percorriam de sete a oito léguas (multipliquem-se esses números por seis, para se encontrar a quilometragem), a pé, como uma espécie de menestréis de antigamente, para tocarem numa festa.

A partir de 1940, o cego Bento passou a residir na cidade de Parnaíba. O seu conjunto musical já possuía uma sanfona nova, bombo, tamborim, banjo e clarineta. Para se tornar mais conhecido, começou a fazer festas. Os contratos foram, gradativamente, aumentando. Com isso, sua responsabilidade artística foi crescendo, bem como a sua autocrítica, pelo que passou a sentir, em face talvez dos modismos, que o seu repertório já não estava agradando. Por esse motivo, resolveu ser aluno do maestro Raimundo Ribeiro da Silva, mais conhecido como Raimundo Tropa. As aulas lhe foram muito úteis, porquanto passou a conhecer, como ele mesmo diz, “tonalidade do instrumento, escala cromática, escala natural e mais algumas coisas”. Aprendeu a tocar samba, marcha, rumba, fox, xote e baião, músicas que, na época, caíam mais no gosto popular. Cego Bento crescia na competência e na fama.

Nas comemorações do centenário de Parnaíba, ocorrido em 1944, em plena e majestosa praça da Graça de então, a sua orquestra tocou, para deleite do povo, durante nove noites. Foi, talvez, o ápice de sua glória e consagração. No clube Sinorion, durante muitos anos, tocava, no período de carnaval, as encantadoras e belas músicas da época. Era o carnaval gostoso, alegre e típico do Zé Pereira, e não os arremedos e macaqueamentos, hoje tão em voga, do pomposo e “cinematográfico” carnaval carioca. Tocou nos principais clubes da cidade, entre eles o Fluminense, Ferroviário, do Trabalhador, Guarani, Coroa. Animou bailes matutos no aristocrático Cassino 24 de Janeiro. Apresentou-se nas boates das irmãs Justina e Luzia Chaves. Eram os áureos tempos do “Sonho Azul”, dos “bailes azuis” e de outras cores. Animou os reboliços dançantes das boates Madalena (sem Madalenas arrependidas), QG (quartel-general de estripulias estrambóticas e eróticas), Cabeleira, Lulu, Ninho do Xexéu (onde muitos se aninharam em lúdicos e sensuais aconchegos), atuando também na Munguba e no Gordo.

No dia 27 de julho de 1974, cego Bento desativou sua orquestra, e formou o “Trio Igaraçu”, constituído por ele próprio, na sanfona, pelo seu irmão Luís, no pandeiro, e Nonato Gordo, no cavaquinho. Nonato, que fora membro da banda municipal, faleceu, sendo substituído por outro instrumentista. O “Trio Igaraçu” ainda hoje torna mais alegre a praia de Amarração, provocando amarrações no embalo da música e no ritmo dos corações.

Cego Bento, em 17 de setembro de 2002, completou 81 anos de idade, mas, ao contrário do que ele diz na carta, não o fim da vida nem da carreira. Todavia, como ele afirma na carta, e eu já afirmara em versos, pode dizer com todas as letras: “Posso dizer, sou uma tradição, sou uma relíquia, sou folclore, sou museu desta cidade”. E eu somente acrescentaria: um museu muito vivo, muito vivo e alegre, e não triste e fossilizado como certos museus de glórias vãs.

Não podendo, como gostaria, de estampá-los em placa de bronze, estampo nas placas da eternidade estes versos que dediquei ao imortal cego Bento: “Não morrerás, / meu quimérico e homérico cego. / Um mito não morre: / um mito se encanta e permanece.”

Segue meu poema sobre o Cego Bento, na íntegra:

 

Cego Bento

 

Elmar Carvalho

 

Não morrerás,

meu quimérico e homérico cego.

Um mito não morre:

um mito se encanta e permanece.

Teus dois percursionistas

são dois anjos da guarda

de asas dissimuladas.

Um te abriga com a sombra

de seus olhos também sem luz.

O outro é tua estrela guia,

que te conduz em tua noite sem dia,

pelas trevas espessas de teus olhos,

como um Virgílio da nova mitologia.

Não morrerás,

não por seres Bento,

mas por teu talento.

A música escorre de teus dedos,

saltita sobre os teclados,

palpita e resfolega no fole,

cabriola no molejo moleque

do leque da sanfona,

evola-se pelos ares,

remexe as ondas dos mares,

sacoleja as folhas dos palmares,

se quebra e se requebra pelos bares

e remelexe no chamego e aconchego dos pares.

Não morrerás, cego Bento.  

quarta-feira, 8 de maio de 2024

In Poemoriam (*)

 

Foto: Elmar Carvalho

In Poemoriam (*)

 

Claucio Ciarlini

 

Sepultaram o meu poema

Não mais está entre nós

Soterrado que foi, lamento

Debaixo de mil caracteres

De outros muitos assuntos

Nem piores e nem melhores

Palavras, fotos, elogios, tantos…

 

Sepultaram o meu poema

Agora há pouco respirava

Mas vida em internet corre

Ingrata, nem bem agradece

A alma do poeta é que padece

Vendo a sua cria evaporar

Vem outro e toma o lugar

 

Sepultaram o meu poema

Fica difícil até de protestar

É que me encontro num dilema

Entre o coexistir e o reclamar

No que geralmente me calo

Mas há o dia de encarar os medos

E o desabafo escorrer pelos dedos…

 

Sepultaram o meu poema

Porém das cinzas construí este aqui.

 

Claucio Ciarlini (2021)

 

(*) Dedicado a todos que sofrem ou já sofreram nos vários grupos de WhatsApp com estas lamentáveis, porém inevitáveis, ocorrências.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Conversa com o poeta Virgílio Queiroz

 



Conversa com o poeta Virgílio Queiroz

 

Elmar Carvalho

 

Conheço o poeta amarantino Virgílio Queiroz desde meados dos anos 1980. Nessa época, num hotel da Avenida Des. Amaral, situado numa das esquinas ao pé do Morro da Saudade, ele nos contou anedotas jocosas de sua terra natal, em que as figuras populares e folclóricas eram protagonistas. Era bem-humorado, bom de copo e de papo, como ainda o é. Agora, ele me mandou a seguinte mensagem escrita, por WhatsApp:

“Já vivi e já morri por dezenas de vezes e perdoem-me minha (in)credulidade. Não me interesso mais por questões profundas sobre a vida e regimes políticos e sociais. Estou no fim e já baixei a guarda. Não adianta lutar, a batalha é inglória. Os meus livros ficarão inéditos e minhas ideias sepultadas. A vida vai continuar apesar dessa minha metamorfose ambulante. E tudo passa e nós não morremos cedo ou tarde. Apenas morremos. Como fênix morri e renasci. Agora, jogo-me ao fogo dos deuses do esquecimento. Não haverá obra, não haverá sobra, apenas essa tolice de dizer que apesar do ódio, existe o amor. Grande besteira que não chega nem à beira do que posso pensar.”

Respondi-lhe haver notado certa sombra de pessimismo em suas palavras, mas que talvez fosse apenas reflexo da realidade pura e simples, que nos assola. Lhe disse já estar também um tanto desencantado, mesmo com a literatura, que já não me dá o mesmo prazer que me deu outrora, sobretudo nesta época em que já não temos bons leitores, em que todo mundo virou escritor. Aduzi que não tenho prazer com o ato de escrever, mas apenas com o texto final, quando algum leitor gosta, ou quando a minha implacável autocrítica me indica que fiz um bom texto.  

Virgílio respondeu:

“Realmente. Lembro-me que esse ‘pessimismo é moda em 73’. Naquele tempo existiam poucos cantores e bons letristas. Poucos e bons. Hoje, muitos e poucos [bons]. Grandes articulistas/jornalistas, embora pouco. Muito pouco. Hoje, milhões se dizem jornalistas e, com eles, a falta de ética, de conhecimento, de responsabilidade. De certa forma, acabou o pedantismo dos semideuses do saber. É, estou entrando no fogo dos deuses do esquecimento."

Repeti que já não há leitores, mas apenas escritores; que todo mundo se acha no direito de deitar falação sobre tudo e sobre todas as coisas. Citei Umberto Eco: “As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade”. Falei que a Bíblia nos adverte para não chamarmos nossos irmãos de tolos, mas o fato é que pessoas sem o devido preparo estão emitindo opiniões sobre assuntos complexos, que não dominam ou não conhecem bem. Sem falar nas chamadas fake news.

Resolvi “me citar-me a mim mesmo”: “Desmanchei / com minhas mãos / que os criara / os deuses em que cria”. Expliquei que nos tempos bíblicos havia os ídolos de metais, de barro, de madeira, mas que agora os ídolos eram cantores, políticos, moedas, carros, roupas e outros abjetos objetos. Para ilustrar o que dizia, resolvi escrever o poeminha abaixo, que imediatamente lhe enviei:

Meus ídolos

Eram de barro

E se quebraram;

Eram de madeira

E sem eira nem beira

Se queimaram.

Meus ídolos

Eram somente

Ídolos e não deuses.

Virgílio Queiroz, flamenguista como eu, não poderia perder a deixa; matou no peito, chutou com força, de forma rápida e certeira, e marcou um gol de placa, encerrando com chave de ouro, cravejada de diamante e outras pedras preciosas, o nosso diálogo:

“'OS ÍDOLOS SÃO DE BARRO’. Aos vinte anos eu lia Nietzsche e era repreendido pela minha irmã Fátima (de saudosa memória). Ela, muito religiosa, não entendia esse meu gosto literário. Para ela o ateísmo de Nietzsche se fazia presente em todo o seu pensamento e obra, numa constante e inexplicável batalha contra os ensinamentos cristãos (o ANTICRISTO). E eu, como forma de criar animosidade, dizia: os ídolos são de barro."

segunda-feira, 6 de maio de 2024

OS VAREIROS E A PARNAÍBA DE OUTRORA (*)

 

No pré-cisco, antes da solenidade: Elmar Carvalho, Carvalho Filho, Ana Ferreira e Antonio Gallas Pimentel 


Solenidade conjunta da APL e da APAL  Foto: Jairo Moura


OS VAREIROS E A PARNAÍBA DE OUTRORA (*)

 

Elmar Carvalho

 

Estes escritos de Raimundo Souza Lima estiveram perdidos durante alguns anos, após sua morte. Depois, foram encontrados e publicados em 1988, graças à “influência de poetas e escritores vinculados ao Grupo INOVAÇÃO, junto ao professor universitário” Israel Correia, na época secretário de Cultura, Desportos e Turismo do Estado do Piauí. Tenho orgulho de haver pertencido ao jornal Inovação, fundado por Reginaldo Costa e Franzé Ribeiro, e vibrei com a publicação deste livro, cujo autor cheguei a conhecer em 1976, numa roda de cerveja, no Clube do SESC Beira Rio, em Parnaíba.

Mesmo assim a obra contém apenas menos da metade do que foi escrito por Souza Lima, segundo informação de Raul Furtado Bacelar em discurso na Academia Parnaibana de Letras, conforme está contido na apresentação do poeta e escritor Alcenor Candeira Filho. A outra parte do livro talvez se encontre extraviada para sempre, ou se encontre oculta em alguma esconsa gaveta, à espera de algum garimpeiro de velhos papéis literários. Raul Bacelar era o ocupante da cadeira 21, da qual é patrono Souza Lima. Indo minha família morar em Parnaíba em 1975, conheci o farmacêutico Raul Bacelar, com a sua indefectível e personalíssima gravata borboleta, em sua antiga farmácia de manipulação, hoje transformada em museu, e o entrevistei, certa vez, para uma das edições do jornal Inovação.

Esta edição, que agora estamos entregando à luz da publicidade, é belíssima e bem-organizada, com elucidativas e bem escritas páginas preambulares. Seu projeto gráfico foi elaborado com esmero, em papel de ótima qualidade. Ao longo de suas páginas nos deparamos com pertinentes e históricas fotografias, além de enriquecedoras ilustrações, de Iri Santiago. Portanto, além de seu valioso conteúdo, o livro é uma verdadeira obra de arte; vale dizer, é um objeto artístico em si mesmo. Esta segunda edição foi patrocinada pelo Instituto Amostragem, cujo proprietário é o professor universitário e estatístico João Batista Mendes Teles, que foi colaborador assíduo do jornal Inovação, para o qual elaborou importantes pesquisas, em rigorosa metodologia científica, para detectação e análise de mazelas sociais da cidade de Parnaíba.      

Raimundo Souza Lima foi casado com Raimunda Amélia de Moraes Lima, com quem teve os filhos Maria de Lourdes, Anchieta, Francisco das Chagas, Paulo Roberto, Rita de Cássia e Raimundo, mais conhecido como Juca Lima. Dentre eles, conheci o Francisco ou Chico Lima, que na época era um tanto boêmio e brincalhão, com as suas piadas de circunstância; soube que depois veio a se tornar pastor de uma igreja evangélica, e se afastou das lides etílicas. O Juca Lima se tornou um excelente artesão, um verdadeiro mestre de esculturas de madeira, em que alia a sua admirável criatividade com a sua esmerada técnica, de lavor sutil e primoroso.

Nasceu o autor na cidade de Parnaíba, em 1911, onde faleceu em 1976, portanto, aos 65 anos de idade. Consequentemente, foi contemporâneo do apogeu e decadência da exploração da maniçoba e de nosso extrativismo do tucum, do óleo de coco babaçu e da cera de carnaúba, em que nossa cidade alcançou o seu fastígio e fausto, com a construção de esplêndidos solares, palacetes e sobrados. Nessa época, a cidade sediava as maiores empresas do Piauí, entre as quais cito: Moraes S. A., Casa Inglesa, Casa Marc Jacob, Pedro Machado, Poncion Rodrigues, que depois entraram em declínio. Em Campo Maior e em Parnaíba, conheci todas em plena atividade.

Em seus relatos e episódios, extraídos de sua memória, como ele próprio o diz, o autor se reporta a essa época de muita movimentação comercial no Porto Salgado e no entorno do Porto das Barcas, com o trabalho e burburinho de embarcadiços, carregadores, comerciários, comerciantes e compradores. Nas imediações, ficavam os prostíbulos da Munguba e da Quarenta. Em meu romance Histórias de Évora (cidade fictícia, misto de Parnaíba e Campo Maior) tentei sintetizar essa azáfama:

“As calçadas desses armazéns eram lisas, impregnadas pelo pó que ia aos poucos se desprendendo dessas ceras, e eram alisadas pelo pisotear constante dos transeuntes, que vinham fazer suas compras ou exercer suas atividades laborais no centro comercial. Eram figuras emblemáticas os carregadores, de forte compleição, que carregavam grandes sacas desses produtos sobre a cabeça, protegida apenas por uma rodilha de pano, e os porcos d’água, que atuavam no porto improvisado do Paraguaçu, com os seus pequenos trapiches, toscos depósitos e acanhado guindaste.”

O guindaste, movido a vapor, um dia encrencou, numa manobra arriscada; caiu sobre seu proprietário e o matou. A maria fumaça, vinda da estação, seguia pelo meio da Rua Grande até esbarrar na beira do cais.

O autor presenciou esse grande tráfego de rebocadores, alvarengas, vapores, barcos do tipo gaiola, chalanas, canoas e balsas de talo de buriti, no Porto Salgado e no Porto das Barcas, ainda menino, quando ia lavar o cavalo de seu pai no Igaraçu, e aproveitava para fazer suas traquinagens, como nadar, dar tainhas e cangapés. Viu, certamente, as embarcações da Lloyd Brasileiro e da Booth Line, e os hidroaviões da Condor, que pousavam no Igaraçu. Nessa fase de sua existência foi vendedor de bolos de goma, produzidos por sua mãe.

Adulto, pôde presenciar com mais acuidade esse movimento comercial, quando exerceu suas funções de operário, ferroviário, comerciário, contabilista e despachante. Como autodidata, adquiriu certa erudição e aprendeu a falar a língua inglesa. Assim, conseguiu ser jornalista e tradutor de cartas comerciais. Certamente, sendo Parnaíba ainda uma cidade pequena, deve ter conhecido os professores, jornalistas, intelectuais, poetas e escritores desse tempo, entre os quais citaria Benedito dos Santos Lima, o Bembém, R. Petit, Alarico da Cunha e o célebre professor Amstein.

Reza a “lenda urbana” que Bembém lhe teria pedido um artigo sobre Jesus Cristo, ao que o nosso autor, em evidente blague, lhe teria perguntado: contra ou a favor? R. Petit, magnífico poeta, ao contrair lepra, com medo de uma espécie de “prisão para tratamento” no leprosário, por sugestão do alcaide da época, deixou Parnaíba para sempre, em 1944, esgueirando-se pelas sombras e silêncio de certa madrugada melancólica. Alarico, que tirava o chapéu para os espíritos que só ele via, e Amstein, mítico e mistificador, se tornaram mitos em meus PoeMitos da Parnaíba.

O autor não alcançou sua cidade se tornar uma nova fênix, quando Parnaíba se reinventou, através da prestação de serviços, sobretudo no setor da Educação e da Saúde, do empreendedorismo turístico e da instalação de novas e opulentas empresas comerciais, no setor de varejo e atacado, com inúmeras pessoas de municípios da região norte do Piauí, do Ceará e do Maranhão vindo se abastecer ou buscar prestação de serviços em nosso município.   

Raimundo Souza Lima tinha o que contar e sabia contar, em boa linguagem, em estilo fluente, escorreito, conciso, claro e objetivo. Soube contar seus “causos”, soube relatar seus episódios, alguns jocosos ou anedóticos, soube narrar as peripécias de sua vida e do que viu, soube traçar o retrato e o panorama de uma época, de suas figuras miúdas, simples, populares e folclóricas, com engenhosa arte.

No belo poema que serve de epígrafe ao livro e que tem o seu título, o poeta Alcenor Candeira Filho pergunta: “homens e mulheres da beira rio beira vida / sousalimamente falando / cadê os Vareiros do Rio Parnaíba?”

Respondo: ficaram encantados e redivivos nas páginas imortais do livro de Souza Lima.

(*) Palestra proferida no dia 04/05/2024, na Academia Piauiense de Letras, na solenidade em que foram lançadas as obras Almanaque da Parnaíba, edição comemorativa do Centenário do periódico e dos 40 anos de fundação da Academia Parnaibana de Letras, O que fazer com o militar – anotações para uma nova defesa nacional, de Manuel Domingos Neto, e Vareiros do Rio Parnaíba & outras histórias, de Raimundo Souza Lima. Foram seus apresentadores: José Luiz de Carvalho, presidente da APAL, Elmar Carvalho e Felipe Mendes. Também falaram Manuel Domingos Neto e João Batista Mendes Teles, proprietário do Instituto Amostragem, editor de Vareiros (...).

domingo, 5 de maio de 2024

3 POSTAIS DE TERESINA

 

Fonte: Google

3 POSTAIS DE TERESINA

 

Elmar Carvalho          


POSTAL I

 

Na Paissandu e adjacências bêbados passeiam

equilibrados sobre a corda-bamba dos pés.

Velhas meretrizes sem freguesia

conversam e cospem na calçada.

Nas noites serenas de serenatas

as luzes mortiças dos postes

espiam de pálpebras cansadas

os amores camuflados clandestinos (in)decentes.

Os amores puros, sem rotas e rótulos.

A lua, velha safada, espreita a intimidade

das alcovas dos casais.

 

           POSTAL II

 

No Morro do Querosene

– sem quero, sem querosene e sem gás –

a miséria mora em cada casa

sem água e sem luz.

Um bolero ou tango

                          tange o tédio.

De repente, um tiro na noite.

Assassinato ou suicídio?

Último ato: cai o pano do silêncio

sobre o silêncio do morto.

 

           POSTAL III

 

O Morro do Urubu

se muito foi terá sido

morro do urubu chumbado, morro do

urubu chagado, sifilítico e faminto.

O Morro do Urubu

hoje é Morro da Esperança.

Esperança de quem?

Daqueles que nada esperam

em sua ab/so/luta miséria.

Morro da Esperança?

Morro dos bastardos da vida,

dos pobres, dos desvalidos.

Morro da morte matada,

morro da morte morrida,

morro da morte em vida:

morro da (des)Esperança.

sábado, 4 de maio de 2024

Em defesa do Almanaque da Parnaíba!

 


Em defesa do Almanaque da Parnaíba!

 

Claucio Ciarlini

 

A noite de 02 de maio de 2024 ficará marcada na história por conta do lançamento da 75° edição do Almanaque da Parnaíba, referente ao ano de 2023, celebrando os 100 anos do primeiro Almanaque, os 40 anos da Academia Parnaibana de Letras e os 30 anos em que a APAL está à frente do periódico.

 

Dentre os membros da APAL que se fizeram presentes na mesa de honra, estava Claucio Ciarlini (membro da cadeira de número 23) que proferiu um discurso marcante sobre a história do Almanaque da Parnaíba, com enfoque nos que foram produzidos pela APAL nos últimos 30 anos. Segue abaixo e na integra:

 

“Boa noite a todos…

 

Cumprimento a todos os confrades e autoridades presentes nesta mesa de honra, assim como o público presente!

 

Gostaria de iniciar minha breve e humilde fala, através de duas perguntas:

 

Parnaíba é a “terra do já teve”?

Ou se trata de uma cidade, como muitas neste país (e até no mundo), onde alguns aspectos e locais não mais existem, porém existem outros, igualmente importantes?

Acredito que os amigos, confrades e esta plateia, deveras informada e acolhedora, irá concordar, que a segunda questão é a correta. 

 

Parnaíba deixou de ter inúmeros espaços, tradições e grupos, porém, hoje possui novas opções, como por exemplo, os inúmeros cursos de ensino superior, fazendo com que os “filhos da cidade” não sejam obrigados a mudar para a capital ou até mesmo para outros estados na busca de prosseguir em suas formações. No que lhes deixo mais uma provocação:

 

Parnaíba, por ter mudado em vários aspectos, ainda deveria ser chamada de Parnaíba?

Deixo esta pergunta para que vocês possam ir refletindo, enquanto começo a falar do meu objetivo principal.

 

No ano de 2021, participei de uma palestra online, onde o tema era a História do Almanaque da Parnaíba, proferida por um professor de história, que me reservo aqui, por motivos éticos, a não mencionar o nome, além do fato de se tratar de um excelente educador e um grande ser humano. Porém, no decorrer de sua fala, que se iniciou com a origem do Almanaque, pelas mãos de Benedicto dos Santos Lima, passando pela organização de Ranulpho Torres Raposo e alcançando os anos 80, com Manoel Domingos Neto… Notei, para a minha surpresa, que o referido professor não mencionou os almanaques lançados nos idos de 1994 a 2020, editados pela Academia Parnaibana de Letras. Livros muito bem capitaneados por nomes como Lauro Correia (de 1994 a 1999); Iweltiman Mendes (edição de 2004); Pádua Santos (de 2006 a 2017); e José Luiz de Carvalho (de 2018 até aquele instante). Obras estas, que tiveram, dentre seus organizadores ou como parte do conselho editorial, nomes como os de: Alcenor Candeira Filho, Danilo Melo Souza, Israel Nunes Correia, Fernando Basto Ferraz, Pádua Santos, Maria Dilma Ponte de Brito, Maria do Amparo Coelho, Antonio Gallas Pimentel, Wilton Porto, Diego Mendes Sousa, além deste ser que vos profere estas palavras.

 

Daí, quando do encerramento da fala do professor e abertura para comentários e perguntas, aproveitei para falar, de forma muito rápida e resumida, deste período que ficou de fora. Até porque, achei que o professor não havia falado por conta do tempo avançado ou até mesmo esquecimento diante de tanta história, em detalhes e aprofundada, pois assim foi a sua fala, rica em detalhes, no que condiz ao período de 1923 a1985. E para a minha surpresa, até mesmo perplexidade, o professor respondeu que, propositalmente, havia deixado de fora os 11 almanaques lançados nas últimas décadas, por considerar que houve certa descaracterização, se comparado aos almanaques que os antecederam, ou seja, os que vieram antes dos cuidados da APAL.

 

Diante disso, e de fôlego recuperado, utilizei-me de uma fala do próprio professor durante a palestra, quando ele mencionou a expressão de “terra do já teve”, termo esse que ele criticou, afirmando que Parnaíba perdeu em alguns aspectos, mas ganhou em outros.

 

Fiz então a pergunta a ele, a mesma que fiz a todos há alguns minutos, se Parnaíba deveria mudar de nome… Ao mesmo tempo que logo respondi: Claro que não! E continuei, afirmando que o mesmo podemos dizer do Almanaque da Parnaíba, que é sim, continua a ser, embora com algumas mudanças e adaptações, o Almanaque da Parnaíba!

 

Tudo na vida evolui. O ser humano também. Tenho a convicção de que não sou mais a mesma pessoa que iniciou no mundo da escrita há 30 anos. Embora eu tenha mantido uma base de caráter e de valores, em diversos pontos eu mudei, evoluí. O meu nome, então deve ser, por isso, alterado? Eu devo ser desconsiderado ou desrespeitado?

 

Podem até não gostar da pessoa que me tornei… Assim como não aceitarem a Parnaíba atual, todas as mudanças que houve, pode-se até não aprovar ou não curtir o que o Almanaque se tornou… Mas não é por isso que se deixa de ser o que é! Não é por isso que deixo de ser o Claucio; não é por essa razão que teremos que mudar o nome de Parnaíba e nem tão pouco dizer que o Almanaque só será considerado até a década de 80.

 

Em conversa com o amigo e confrade Elmar Carvalho sobre esta questão e ocorrido, Elmar comentou:

 

“Como visto, a partir de 1994, edição nº 61, o Almanaque da Parnaíba, na qualidade de sua revista, passou a ser editado pela Academia Parnaibana de Letras. O número anterior data de 1985, quando o periódico completara 62 anos de sua existência. Com exceção das charadas, dos quadros estatísticos e das propagandas comerciais, praticamente sua nova linha editorial manteve, em sua essência, o projeto anterior, senão vejamos: continuou a publicar textos literários, tais como poemas, contos, crônicas, ensaios e artigos, além de textos de caráter historiográfico ou sobre cultura e arte.

Muitos desses trabalhos são de alta qualidade e diria imprescindíveis para quem queira analisar a produção literária parnaibana de 1994 a esta parte. Vários dos colaboradores dessa época, escreveram em números anteriores do Almanaque. Cabe ainda salientar que nos primeiros números editados pela APAL ainda foram publicados dados estatísticos. Contudo, sendo essa publicação voltada preferencialmente para a produção dos seus membros, esse viés, por não ter interesse literário, não foi mantido por muito tempo. Com relação às charadas, nos dias apressados e cibernéticos de hoje, já praticamente não há quem as faça, e, tampouco, quem as leia; não vai nisso nenhuma crítica, mas uma simples constatação.

Entre os colaboradores desse notável periódico piauiense, ao longo dessas três décadas, além dos acadêmicos, podemos citar: Paulo Nunes, Renato Castelo Branco, Benjamim Santos, José Camilo da Silveira Filho, Orfila Lima dos Santos, Vítor Athayde Couto, João Evangelista Mendes da Rocha, João Maria Madeira Basto, Marc Jacob, Jorge Carvalho, Norma Couto, Sólima Genuína dos Santos, Flamarion Mesquita, Cláudio de Albuquerque Bastos, James Kelso Clark Nunes, Antero Cardoso Filho, Magalhães da Costa etc.

A edição nº 67, de 2004, foi comemorativa dos 80 anos do Almanaque; trazia em sua capa as imagens das capas de números antigos e estampou em suas páginas as propagandas históricas e interessantes de velhas edições. Durante várias edições, graças ao esforço de Alcenor Candeira Filho, a nossa revista publicou uma coluna das “parnárias”, com textos de poetas falecidos e vivos.  E a capa desta edição de 2023 (nº 75), por sinal muito esmerada (com “efeitos visuais” modernos), utiliza em sua montagem a capa da edição inaugural do Almanaque da Parnaíba. Comemora o Centenário do Almanaque, em plena circulação, e os 40 anos da Academia Parnaibana de Letras, sua editora há 3 décadas.”

 

Enfim, Academia Parnaibana de Letras, que é um forte exemplo de coisas importantes que, hoje, Parnaíba tem, vem desempenhando um excelente trabalho, no que condiz à manutenção do Almanaque. Digo porque, desde o primeiro número que a APAL assumiu, ou seja, o 61º, de 1994, quando eu ainda era um estudante da sétima série do ensino fundamental, mas já apreciador da literatura, até chegar nas cinco últimas edições lançadas, onde acompanhei de perto a produção, sendo um dos organizadores das quatro mais recentes. Posso atestar o zelo para com que estas páginas são construídas. O esmero que todos os presidentes tiveram, a citar o mais recente, José Luiz de Carvalho, um batalhador da literatura e da cultura em Parnaíba; assim como os meus confrades e parceiros de organização nestes últimos: Antônio Gallas Pimentel, Diego Mendes Sousa, Maria Dilma Ponte de Brito e Wilton Porto. Assim como não poderia deixar de destacar a pessoa que é responsável por este periódico continuar vivo, o nosso Mecenas, o amigo e confrade Valdeci Cavalcante. Além de todos os acadêmicos e escritores convidados ou que participaram dos concursos literários realizados, com seus inspirados textos, ao longo desses 30 anos! Sim, três décadas! Muito provavelmente, se não fosse a APAL, o Almanaque até estaria completando 100 anos, mas apenas de aniversário de sua primeira edição, em se tratando de publicações frequentes, só teria pouco mais de 60 anos…

 

Então pergunto:

 

Como alguém pode ignorar todo esse rico trabalho desenvolvido ao longo de três décadas?

É o último questionamento que vos deixo, ao mesmo tempo que afirmo, que certamente o tempo, este grande sábio, cuidará de fazer justiça e eternizar essas memórias!

 

Muito Obrigado!”  

quinta-feira, 2 de maio de 2024

FLAGRANTES NO CÉU





FLAGRANTES NO CÉU


Elmar Carvalho

 

Estive literalmente no céu. Mais precisamente no restaurante do Zé Nilson, situado na região da Fazenda Céu. De fato, a paisagem é paradisíaca. Quando fui para a beira-rio, para melhor contemplar a beleza ímpar do Parnaíba, uma ave canora, ou anjo – nunca se sabe ao certo as verdades limítrofes deste mundo e do outro – desatou umas notas musicais de inefável beleza. Disse que poderia ser um ente do outro mundo uma vez que o canto não era de nenhum pássaro do meu conhecimento. Com certeza, não era sabiá, nem corrupião, nem chico preto, as criaturas aladas de mais belo canto que conheço.

 

Dois homens falavam placidamente de negócios e serviços, enquanto tomavam banho, com certeza delicioso, sob o testemunho de um menino. Estavam à sombra de uma árvore ribeirinha, que lentamente amadurecia seus tenros frutos. A conversa só foi interrompida por uma canoa que passou perto deles, deslizando suavemente contra a corrente. O rio se embarreirava largamente, na bela, porém triste degradação ambiental, que lenta, mas inexoravelmente poderá conduzi-lo à morte de há muito anunciada.

 

À sombra de copada árvore, uma vaca, que mais parecia uma gorda e maternal matrona, ruminava preguiçosamente. Parecia ruminar o próprio tempo, que parecia não passar, como as águas do rio, que rolavam lentamente para o Atlântico. Voltei para a churrascaria do Zé Nilson, onde comi muito vagarosamente uma gostosa galinha caipira, à sombra do teto e de uma imensa árvore, que parecia sair do galpão.

 

Na verdade, o telheiro nascera em seu derredor, servindo-lhe o tronco grosso e anoso de esteio e decoração. Não fiz nenhuma viagem mística, não precisei morrer, mas estive literalmente no céu.


30 de julho de 2010