quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

AS CAPAS CARDINALÍCIAS

 




AS CAPAS CARDINALÍCIAS


Elmar Carvalho

 

Recebi recentemente o livro titulado Contos, de José de Ribamar Freitas, do qual fui aluno na UFPI. Tenho procurado cultivar a sua amizade, talvez um pouco por egoísmo, pois com isso tenho desfrutado de sua conversa agradável e tenho procurado sorver sua erudição. As ficções, como não poderiam deixar de ser, são escritas no estilo elevado e austero do mestre, naquela linguagem clássica, que nada fica a dever a Antônio Vieira ou Manuel Bernardes.

 

Dizia Mário de Andrade que conto é o que se chama conto. Com essa resposta, talvez, pretendesse dizer que um conto deve contar algo; ou que um texto que narrasse alguma coisa teria que ser considerado um conto. Com efeito, os textos da obra de Ribamar Freitas, nessa interpretação, são legítimos contos, porque são narrativas, porque contam uma história, porque descrevem acontecimentos e fatos imaginários.

 

O mestre tem uma imaginação fértil, poderosa, e sabe criar o suspense, ao prender a atenção do leitor, com a descrição do ambiente, com a intercalação de episódios menores, porém importantes, com a caracterização psicológica e física da personagem, com diálogos atraentes, em que as suas criaturas revelam o seu espírito e a sua cultura.

 

Ribamar Freitas teve a ousadia intelectual de cometer um longo conto histórico, quase uma novela, cuja personagem principal é nada mais nada menos que o célebre rei Dom Sebastião, desaparecido na Batalha de Alcácer-Kebir, em terras africanas, cujo cadáver nunca foi encontrado, o que fez surgir a lenda e o misticismo do Sebastianismo, em que os portugueses sonhavam com o retorno dele à governança de sua pátria.

 

O mestre fez um belo trabalho de pesquisa, e soube urdir a ambientação e a linguagem da época, sem descurar do contexto histórico em que o texto está inserido. A capa não poderia ser mais atraente em sua singeleza: em letras brancas, encimando-a, vê-se o nome  completo do autor, José de Ribamar Freitas, e no meio, em letras maiores e níveas, o título CONTOS, tudo vazado sobre um fundo vermelho.

 

Essa capa vermelha me fez recordar o tratamento gentil que o mestre Ribamar Freitas dedicou a meus humildes livros, que lhe autografei em sua portentosa biblioteca. Entreguei-lhe a segunda edição de Rosa dos Ventos Gerais, que tem um belo estudo dele sobre figuras de linguagem que tenho usado em meus poemas, e conversamos um pouco.

 

Quando eu já me preparava para descer os degraus de sua cobertura, o mestre me fez voltar, e me chamou para ver onde ele iria colocar o exemplar. Acompanhei-o, entre apreensivo e curioso, até um dos compartimentos de sua avantajada biblioteca. O mestre, apontando para o alto de uma das estantes, exclamou: “É ali, entre os poetas ilustres do Piauí, que vai ficar o seu livro”. Não irei, nesta ocasião, ter o cabotinismo de declinar os nomes dos poetas que lá estavam.

 

Depois, em novo critério de arrumação bibliotecária, ele houve por bem colocar meu livro entre outros que tinham textos seus. Não lhe disse, mas é claro que preferia que ele ficasse no lugar que lhe coubera anteriormente. Porém, tempos depois, como uma compensação de que não me acho merecedor, o professor Freitas mandou colocar capas duras, protetoras, vermelhas, sanguíneas, com letras e ornatos dourados, em meus livros. Pareciam vestes talares e cardinalícias, a cobrir a simplicidade de Rosa dos Ventos Gerais e Lira dos Cinqüentanos.

 

Após essa nova indumentária, ele os depôs entre os seus aedos prediletos, em lugar de destaque. Fiquei com a leve desconfiança de que o Mestre, em lugar de me homenagear, queria me matar de emoção. Afinal, já não sou mais nenhum garoto.

 

Devo acrescentar que um gesto espontâneo e sincero como esse tem para mim muito mais valor do que certas medalhas e comendas, que se azinhavram e desbotam ao longo de pouco tempo.    

13 de outubro de 2010

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Como foi que tudo começou

 

Participei, juntamento com Paulo Couto, de todas as coletâneas e periódicos, que ilustram a vertente postagem. [Elmar Carvalho] 



Como foi que tudo começou

 

Paulo de Athayde Couto

 

Nos anos 70 quando iniciei o Curso de Administração de Empresas na UFPI, Campus Reis Veloso, tive um colega de turma chamado Elmar Carvalho. Tenho boas lembranças de todos os colegas, mas com o Elmar foi diferente. Ele era poeta e numa das muitas conversas que tivemos, ele ficou sabendo que eu tinha escrito algumas poesias. O Elmar me levou na gráfica do Jornal Norte do Piauí e lá eu conheci o proprietário Mário Meireles. Minha primeira poesia foi publicada nesse jornal.

Depois eu conheci a gráfica do Jornal Folha do Litoral. Foi outro jornal que passou a publicar minhas poesias. Na época meu pai professor José de Lima Couto tinha assinatura de todos os periódicos editados em Parnaíba. Eu sempre lia esses Jornais. Por acaso eu vi uma crônica que me chamou a atenção, escrita por um primo meu. A partir daí, comecei a escrever crônicas sempre incentivado pelo meu pai. Tive por um bom tempo uma coluna chamada “Cosmo” na Folha do Litoral.

Aí conheci o Bernardo Silva, o jornalista Rubem Freitas e o jornalista Batista Leão que na época era gerente do Jornal e da Rádio Educadora de Parnaíba. Na Folha do Litoral eu lembro do “Xixinó”, um dos funcionários que faziam o trabalho artesanal da montagem das páginas do Jornal. Também tinha o Batistinha que era gerente da Folha.

Nesse periódico, cheguei a fazer, a título de colaboração, a revisão de páginas que seriam impressas.  Estávamos em plena Ditadura. Vários jornais alternativos surgiram na época. Colaborei com poesias e crônicas em alguns deles e participei de algumas antologias poéticas.  


terça-feira, 28 de janeiro de 2025

A ontologia poética de J. L. Rocha do Nascimento




A ontologia poética de J. L. Rocha do Nascimento


Elmar Carvalho


No domingo, às 14 horas, ao retornar a minha residência, recebi da portaria do condomínio um exemplar do livro de poemas Ontologia do Ser, devidamente autografado, que seu autor, o ilustre magistrado J. L. Rocha do Nascimento me havia deixado.

O poeta tem se dedicado sobretudo à contística, na qual tem merecido lugar de destaque, com seus contos breves, às vezes brevíssimos, lavrados algumas vezes em legítima prosa poética. J. L. integrou o grupo de contistas denominado Os tarântulas, do qual também faziam parte o José Pereira Bezerra, Airton Sampaio e Leonam (Manoel de Moura Filho).

José Pereira prestou um relevante serviço à Geração 70 ou do Mimeógrafo, ao escrever seu livro Anos 70: Por que Essa Lâmina nas Palavras?, editado em 1993, pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves, quando eu era presidente de seu Conselho Editorial. Em sua contracapa tive a oportunidade de dizer:

“É um livro de capital importância para a plenitude do conhecimento da Geração Mimeógrafo, que se firma como uma das mais robustas gerações literárias piauienses, tanto em termos quantitativo, como qualitativo. Indispensável para a perfeita compreensão do fenômeno literário ocorrido nos anos 70, também conhecido como literatura marginal ou alternativa, pela maneira segura e profunda com que aborda o tema. Vertida numa linguagem enxuta e elegante, esta monografia é um balanço geral e detalhado, senão também uma verdadeira radiografia dessa produção cultural.”    

J. L. é um dos mais notáveis membros dessa geração, mormente como contista, mas também como poeta, o que agora se comprova com essa sua obra poética, recentemente publicada. Em rápida leitura, pude vislumbrar em seus poemas um viés existencialista, assim como um timbre de perquirições filosóficas, em linguagem emocionalmente contida e concisa. Em seus versos perpassam breves e sutis intertextualizações, que podem passar despercebidas a um leitor desatento. Portanto, o contista é também um poeta competente e criativo.

Segue a apresentação do livro, feita pelo seu próprio autor:


Apresentação

Em Sobre os sonhos e outros diálogos, livro que reúne uma série de entrevistas concedidas a Osvaldo Ferrari, Jorge Luis Borges diz que não sabe se existe uma diferença essencial entre a poesia e a prosa, exceto, diz ele, pelo que sustentava Stevenson ao afirmar que a prosa seria a forma mais difícil da poesia. Para ele, Borges, não há literatura sem poesia.

Assim como a grande maioria dos escritores, comecei com os poemas. Tempos depois, fui picado pelo aguilhão da narrativa breve, muito provavelmente pelo fato de pertencer a uma geração de escritores forjada a partir dos anos setenta, época em que surgiu no Brasil um “boom” literário cuja maior expressão foi o conto. Essa, pois, a razão pela qual passei a me dedicar mais à prosa, optando pela narrativa breve. Essa opção, contudo, provocou danos colaterais: o encobrimento do poeta que, como saída, encontrou na prosa poética do contista um modo de se revelar, ainda que indiretamente.

Depois de publicar quatro livros de contos, resolvi que já era hora de compartilhar com o público leitor parte dos poemas que escrevi ao longo dos anos. Muitos deles eu mantive guardados apenas para o meu, digamos assim, “consumo” próprio, o que inclui os familiares. Sobre uma porção bem menor, alguns poucos, raros amigos, tiveram acesso.

Nesse tempo todo, apesar de possuir material suficiente para compor pelo menos três livros, publiquei um único poema, o mesmo que republico aqui como elemento pré-textual: Manifesto, cuja publicação original ocorreu na obra intitulada Descartável, uma coletânea de poemas organizada pelo professor, escritor e poeta piauiense Cineas Santos no longínquo ano de 1979.

Tomei a decisão de colocá-lo neste livro em forma de epígrafe, preservando a redação original, por duas razões. Prestar uma homenagem, resgatando-o, essa a primeira delas. Afinal, se este livro, essa a principal leitura que faço, é um estudo poético sobre o ser e o seu sentido, esse mesmo ser meio que já se revela no poema escrito há mais de quarenta anos. A par disso, tem a função de nunca deixar de lembrar. Sendo certo que o poema deve ser lido no presente com os olhos do passado, não devemos esquecer que num passado bem recente, alguns saudosistas tentaram reviver tempos obscuros. Trata-se, portanto, de um alerta: lembrar para não esquecer jamais.

Ontologia do ser é, portanto, passados mais de 40 anos da publicação de Manifesto, o meu primeiro livro de poesia. Ou pelo menos é como eu o estou chamando. Como no livro predomina o discurso direto, é possível que seja recepcionado como poemas em prosa. Quando não, como prosa poética, o que, de resto, já venho fazendo há algum tempo. Um ou outro não importa, mesmo porque, para lembrar Clarice Lispector, essa coisa de gênero também não me pega.

A propósito, outro escritor que também se mostrou indiferente a essa divisão foi Baudelaire, que, sendo desenganadamente poeta, publicou Spleen de Paris, que ele próprio chamou de pequenos poemas em prosa. Contudo, qualquer um que se atreva a lê-lo ainda preso à rígida classificação de gênero, dirá que são rigorosamente textos em prosa.

No mais, se Mário de Andrade disse que conto é tudo aquilo que o autor chama de conto, por que não dizer que poesia é tudo aquilo que o autor chama de poesia? Mesmo porque, como disse Borges, não há literatura sem poesia.

Para além dessas discussões sobre gênero, creio que, em relação à temática, não há dúvida de que existe um fio condutor comum que atravessa todo o livro: o existencial. Daí se dizer que, em síntese, o livro é um estudo poético sobre o ser e o seu sentido.

Fico então na expectativa de que Ontologia do ser seja bem recebido pelo leitor que, sem muito esforço, perceberá que muito do contista poderá ser encontrado no poeta. O raciocínio contrário também é verdadeiro. E se é verdade que todo ser é o ser de um ente que só existe no seu ser, é possível dizer que, no meu caso, a relação entre o poeta e o contista é semelhante à que existe entre o ser e o ente. Cabe ao leitor dizer quem é quem.

O autor.

Teresina, 19 de fevereiro de 2024.

 

Aproveito para também publicar a “orelha” de Ontologia do Ser:

Ontologia do ser é um livro atravessado por um fio condutor temático comum: o existencial. Na sua maioria, os poemas são uma reflexão sobre a vida, o existir e, de resto, sobre o mundo. Diz-se ontologia porque a sua questão primeira é o ser e o questionamento sobre o seu sentido. Trata-se, em síntese, de um estudo poético sobre o ser e o seu sentido, assim como sobre o modo de ser do indivíduo no mundo no qual foi jogado e sua angústia diante da finitude para a qual nem sempre está preparado. Indicativos desses questionamentos (ou dessa presença) se fazem sentir logo na abertura do livro com o poema Eu e os vários de mim, onde a questão central é a (não)descoberta do próprio ser, e se agudiza em Angústia heideggeriana. Nele, o autor, ao trabalhar com as diferentes dimensões do tempo, diz nas entrelinhas que o maior desafio do ser-no-mundo é fazer com que o presente não seja apenas um tempo estéril sem memória e sem projeto. E é aí que reside a sua maior angústia.

domingo, 26 de janeiro de 2025

VIDA IN VITRO


 

VIDA IN VITRO

 

Elmar Carvalho 

                                                     

andavas pelas ruas de outrora

à procura de ti mesmo

que se encontrava aos pedaços

bêbedo nos bares

aos trancos e barrancos

se arrastando pelos lupanares

tortuosamente andando

pelas ruas tortas.

 

eras infante e juntavas varapaus

no sonho maluco de tocares

a lua cheia que depressa minguava.

 

levantaste a túnica da freira

não por sacrilégio ou impudência

mas apenas para constatares se

ela possuía duas pernas e dois

seios como todas as mulheres.

 

eras infante e quebraste

o joão teimoso, não por maldade,

mas para descobrir o misterioso

mecanismo de sua teimosia.

 

não, não eras doido, não eras lúcido,

eras apenas um translúcido menino.

 

escondias tuas vergonhas, tuas frustrações

e teus medos, como todos nós, como se esconde

lixo debaixo dos tapetes de luxo.

 

recordas a menina que te golpeou

com um não, apenas por capricho e maldade.

 

recordas a garota que te amava

e que desdenhavas talvez por capricho ou vingança.

eras poeta e criaste uma quimérica

amada imortal e imaginária, inatingível

em sua torre de marfim.

ela talvez também te quisesse,

mas a fizeste intocável.

 

enternecido, lembras-te da empregadinha

que bolinaste, e que por bondade, amor

ou desejo não te denunciou, com alaridos

e gritos histéricos, estridentes.

 

eras jovem e te julgavas alexandre

e bonaparte, senão mesmo um deus,

e já seguravas a coroa de ouro e o cetro

e já acariciava tua fronte o louro triunfal.

 

tudo eram conquistas e tudo conquistavas.

 

eras jovem e eras frágil

e te sentias impotente quando

contornavas as calçadas de ouro dos hotéis de luxo

ou quando avistavas a menina rica e bela,

com as suas jóias e as suas roupas elegantes e caras.

não sabias de seus desejos, de suas ânsias

e doenças e de seus nojos de si mesma.

talvez ela te amasse, mas o teu orgulho

a fez afastar-se de ti. 

 

ainda procuras o trolley que desviaste

com teus amigos, para uma aventura sem fim

até que os trilhos paralelos

se tocassem no infinito.

 

ainda assistes a filmes de bang-bang

só para sentires a emoção do tempo

em que teu pai te levava para o reino

encantado e mágico do velho cine nazaré

que em tua memória ainda remanesce.

 

sentes ainda o cheiro dolorido e pisado dos alecrins

da paixão do senhor morto, do horto das agonias,

das chagas vermelhas, maceradas, da túnica

roxa, brilhante, da coroa de espinhos, dos cravos,

não os de cheiro, mas os de ferro, que ferem...

eras infante, então, e como sofreste

e como fizeste sofrer tua mãe, madona,

mater dolorosa e pietá sofrida e consoladora

de teus sofrimentos de então e de sempre.

 

buscas os cheiros embriagantes dos

brancos lírios de são josé e das rosas vermelhas

do velho caramanchão de antigamente.

os lírios se transformaram em cálices

de amargura e nas rosas depositas

o orvalho de tuas lágrimas pelo mundo

perdido num canto escuro do passado

e que não restauras, nem mesmo no

terceiro ou no sétimo dia de tua agonia.

 

a magia da música e dos álbuns de família

te trazem alegres e pungentes recordações

e te fazem viajar no tempo e no espaço

do turbilhão das mesmas emoções.

 

solitário, no silêncio da noite

pensas nos segredos, vícios

e incestos existentes na cidade,

nas feridas abertas pelos mais acerbos sarcasmos

e nos espasmos de brutais e homéricos orgasmos.

 

passeias pelos becos e logradouros do passado

e eles te conduzem ao tempo

que buscas em desespero.  

            

perdido e cego caminhaste pelos labirintos,

teseu e minotauro de teu próprio destino,

nos confrontos que travaste com teu ego.

 

esfinge e édipo, não decifraste

teu enigma, e em vão buscaste

as pitonisas de outrora e de agora,

e inutilmente foste teu próprio ilusionista.

mas eras sábio e em algum momento

te reencontraste, ao te tornares

mais simples e mais puro,

malgrado as pedras, os lodos e as quedas.

 

em vão tapaste os ouvidos

para as palavras que te feriram

e inutilmente selaste a boca

para as palavras ferinas que proferiste.

 

não, não eras anjo nem demônio,

eras apenas um deus de barro

e teu sonho secreto e sagrado

foi sempre a transcendência

mas decepado de uma das asas

foste sempre um anjo torto coxo

capenga no a esmo voo sem pontaria.

 

procuras ainda a pedra azul

de tua serra encardida.

 

esperas ainda no pátio da igreja

o ônibus que sempre vinha

demasiado cedo ou demasiado tarde.

 

lamentas a namoradinha jovem e esbelta

que envelheceu e engordou.

debalde procuras a sua cintura

para ternamente lhe pousares as mãos.

antes não mais a tivesses revisto.

 

ainda buscas a namoradinha

de uma noite de verão – ou inverno,

não importa, nada mais importa agora.

 

caim arrependido, pedes perdão:

já não suportas o onisciente olho do senhor.

 

sofres pesadelo pela matemática

que te torturava, e acordas suado, ansioso.

 

procuras o batente da calçada de outrora

onde te cevaste nos lábios e nos seios da amada.

 

reencontraste a mulher que te amou

sem esperança, em face de tua indiferença,

e chafurdaste em sua carnívora rosa de carne,

talvez para feri-la novamente,

agora com a fúria e com o tédio.

 

devias estar feliz. realizaste teus sonhos

de consumo. tens uma boa mulher.

teus filhos são maravilhosos. tens

um bom emprego. no entanto ainda

não estás saciado. esperas um milagre

mas não sabes se os milagres ainda existem.

 

estás perdido: tens inveja de deus

e não sabes se é virtude ou pecado.

 

equilibrista, caminhas com teus malabares

e alforjes por uma corda-bamba estendida

de menos infinito a mais infinito.

 

caminhas para a morte.

muitos dos teus amigos já são mortos

e te procuram com insistência.

 

infante, desejavas crescer

para realizares os teus sonhos de conquista.

adulto, queres retornar ao país de tua infância.

 

não sabes o que queres.

queres apenas morrer, esquecer.

queres viver eternamente num mundo

que não é o teu.

 

contudo, tens esperança

e agora teces um poema sem fim

com o novelo infinito de tua vida

que se desdobra do nada ao tudo...

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

A VELHA E A NOVA CASA


               

A VELHA E A NOVA CASA


Elmar Carvalho

 

Após 25 anos morando na mesma casa, com o mesmo número telefônico, que foi apenas acrescido compulsoriamente de um três antecedendo o prefixo original, me mudei para nova casa. Posso dizer que, dentro do que é possível a um ser humano nesta passagem terrena, fui feliz, a meu modo. Meus dois filhos nasceram nesse período, e, portanto, passaram a infância e a juventude nessa casa. Tive bons vizinhos, dos quais tenho boas recordações e nenhuma mágoa. Espero que a recíproca seja verdadeira, e creio que o seja; pelo menos o Batista Vasconcelos me externou a sua saudade antecipada, quando soube que estávamos perto da mudança.

 

Segundo acredito, o ser humano não é uma obra perfeita e acabada, mas em permanente construção. Somos a construção, e somos, em parte, nossos próprios construtores. Disse em parte, porque muitas coisas que nos acontecem e nos influenciam e nos dirigem e movem não dependem de nós. Os arrogantes e os tolos, não aceitam essa hipótese. Eles se “acham”, e acham que estão no controle e no comando de tudo, quando, muitas vezes, um vendaval transforma em pó tudo que eles construíram.

 

Um minúsculo inseto, ou menos ainda, uma simples bactéria pode nos destruir ou nos arruinar a saúde. Já pouco desejo e já não alimento ilusões, a essa altura de minha vida. Quando cheguei a minha nova casa, disse a minha mulher que não mais me mudarei, a não ser para o campo santo.

 

O Didi, um rapaz bom e simples, que nos ajudava na mudança, e que nos prestava serviços e aos nossos vizinhos durante todo esse tempo no conjunto habitacional onde morávamos, ou por brincadeira ou porque a ideia da morte o perturbasse, disse que pensava eu estar me referindo a uma futura chácara no campo.

 

O homem vem para esse mundo e nada traz, como todos sabemos. Deixa esse mundo e nada leva, como também é evidente, tanto que existe um aforismo que diz não ter bolso a mortalha. Por isso, já não desejo fazer esforços em acumular bens e coisas, que nos dão muito trabalho e despesas, na conservação, reforma, revisões e com os locais em que ficarão, sem falar nos tributos, nas taxas, tarifas e na inveja que, às vezes, provocam.

 

De certo modo, tenho inveja do caracol, que é a sua própria casa, que carrega para onde vai. Não é espaçoso e nem perdulário, ocupa apenas o espaço de seu próprio corpo gelatinoso e compacto. Quando morre, seu corpo sem osso, quase etéreo, quase espiritual, parece evolar-se, deixando a concha limpa e vazia, na qual o mar parece marulhar e murmurar cantigas inefáveis.

 

Como disse, me fui construindo na velha casa, tentando desbastar meus defeitos, e a casa também se foi construindo, se adaptando a novas necessidades, através de ampliações e reformas. Nela moraram nossas duas cachorrinhas, que estranharam a mudança. Todavia, já se adaptaram porque o lar das cadelinhas somos nós, que somos a família delas. Elas estando conosco estarão bem, estarão felizes, como estão.

 

Nesses 25 anos fui ampliando minha biblioteca, que ainda quero conservar por algum tempo, até doar os livros para umas duas bibliotecas públicas, em que eles possam servir a um número maior de pessoas. Aos poucos, irei trazê-los para perto de mim novamente, como hoje trarei mais alguns. Trouxe as recordações, trouxe as saudades, mas impossível trazer a concretude das paredes, dos quartos, da sala.

 

Espero que eles sirvam a outras pessoas, como me serviram. Posso dizer que é uma casa abençoada. Afinal, nunca sofreu um único assalto. Peço a Deus que abençoe minha nova casa. E os arcanjos dirão no azul: Amém!

12 de outubro de 2010

Espelho, espelho meu... será que esse ainda sou eu?



Espelho, espelho meu... será que esse ainda sou eu?


Fabrício Carvalho Amorim Leite


Anteontem, a notícia chegou com grande pompa através dos afáveis alto-falantes:

"Realocamos os colaboradores dos provadores de roupas em novos postos estratégicos, garantindo a vocês, queridos clientes, uma experiência mais inclusiva e personalizada. Boas compras!"

Confesso que, à primeira vista, senti um certo alívio. Sempre considerei desconfortável e até intimidadora a presença de alguém à espreita nos provadores, invadindo o pouco de privacidade que ainda nos resta. Afinal, quem nunca teve a sensação de estar sendo vigiado pela “polícia secreta” dos grandes magazines?

Naquele ambiente, cada gesto é observado, cada movimento, seguido com desconfiança. Nos corredores e em todos os cantos, aquela voz parece ganhar pernas e asas, repetindo sem parar: Bem-vindo, boas compras.

Acredito, caro leitor, que posso até entender quem me julga paranoico. Mas garanto: não há canto no shopping onde eu me sinta à vontade. Sou dos tempos das praças, quitandas e bodegas, onde os olhares atentos vinham dos bem-te-vis, dos guriatãs, dos cardeais-do-nordeste e de outros pássaros – sempre vigilantes, temendo as aves de rapina – ou, no máximo, do dono da mercearia. Seu olhar atento e o trato acolhedor faziam com que cada freguês se sentisse em casa.

Ao retornar ao mal (dito) ambiente, reconheço que, sim, havia pequenas alegrias. Como quando Dona Deusa, do caixa do estacionamento, devolvia o troco com um sorriso aberto. Mas onde está ela agora? Descontinuada por uma máquina quadrada, que espirra cupons sem vida. Ainda assim, saudosista como sou, peguei-me dando um bom dia ao vil dispositivo. Nada. Apenas indiferença.

Dia desses, por um triz, estive a ponto de ser atropelado por um desses robôs de limpeza. Lá estava ele, errante pelos corredores do shopping. Indo e vindo, repetitivo e monótono, parecia mais um asno do que um aparelho astuto. Resolvi testar sua "humanidade": joguei um chiclete mastigado em seu caminho. Nenhuma reação. Nem desgosto, nem censura.

Perguntando a um dos raros humanos que ainda trabalham por lá, descobri, por fim, que Dona Deusa, como outros, havia sido relegada ao subsolo – uma realocação, onde dá bom dia às baratas e viventes do lugar, como se fosse uma personagem esquecida dos contos de fadas de Branca de Neve, sem direito a uma reprise na Sessão da Tarde.

Como se tudo isso já não bastasse, chegou a última boa nova: os provadores e até as araras físicas estão com os dias contados. Em seu lugar, painéis interativos vestirão você virtualmente, eliminando a necessidade de tocar em um único fio de roupa. Adeus aos cantinhos discretos, com suas divisórias e espelhos reais.

Araras virtuais, sim, araras virtuais! Telas, apenas telas!

E, diante do espelho virtual da loja, tasquei: “Espelho, espelho meu... será que esse ainda sou eu? ”.

Réplica da tal arara virtual: Ah, ainda é você... ou pelo menos o que restou, projetado por algoritmos para caber perfeitamente nas vitrines digitais. A dúvida é: será que você reconhece quem – ou o que – se tornou?

 (Fabrício Carvalho Amorim Leite é cronista e contista.)

domingo, 19 de janeiro de 2025

GRAN FINALE

 

Arte: Meta AI

GRAN FINALE


Elmar Carvalho

                Fragmentos de uma alma em chamas: "Gran Finale".

                                                                            Meta AI

Desmanchei

com minhas mãos

que os criara

os deuses em que cria.

Desfiz

a imagem que fizera

da mulher amada.

Perdi a fé em tudo

como quem nada perde.

Depois

gritei, berrei,

chorei gargalhando

e resolvi ficar louco.

Depois de doido,

resolvi tentar a sorte

            sal –

                        tan-

                                    do de cabeça

do alto do arranha-céu.   

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

TEMPOS IDOS E VIVIDOS DE DOMINGOS JOSÉ

Francy Monte e Ramon Vieira


 

TEMPOS IDOS E VIVIDOS DE DOMINGOS JOSÉ

 

Elmar Carvalho

 

Ocorreu em Campo Maior, ontem à noite (15/01/2025), o lançamento do livro Tempos Idos e Vividos, da autoria do médico e escritor Domingos José Carvalho.

O autor nasceu em Barras, em 27 de agosto de 1943, mas ainda bem jovem, juntamente com sua família, radicou-se em Campo Maior, onde prosseguiu em seus estudos. Formou-se em Medicina pela Universidade Federal do Ceará. Fez especializações e tem pós-graduação latu-sensu em Medicina do Trabalho. O autor pertence a várias entidades filantrópicas, assistenciais, culturais e literárias. Recebeu inúmeras distinções honoríficas.

A solenidade foi iniciada por uma série de belas músicas, entre as quais o hino do Glorioso Santo Antônio Aparecido ou do Surubim, dobrados e marchas, executadas pela afinada filarmônica do Lar da Juventude, dirigido pelo dinâmico diácono Gean Medeiros. Houve também a participação do coral dessa entidade, que nos brindou com lindas melodias, inclusive uma de caráter erudito.

Na oportunidade os pronunciamentos de Ana Cunha, presidente da Academia Campomaiorense de Ciências, Artes e Letras, Monte Filho, Elmar Carvalho, João Carvalho, Sávio Túlio Andrade, Érico Carvalho, filho de Domingos José, enalteceram as qualidades e as virtudes da obra e do autor, bem como a competência e a dedicação profissional deste.

O livro tem uma excelente programação visual, em papel de alta qualidade (couchê), uma revisão excelente (professor Moisés Andrade e Antonio Soares) e várias fotografias. Foi dividido em quatro partes: Acrósticos, Poemas, Crônicas e Contos e Prefácios, Homenagens e Discursos. Da sequência de acrósticos, em que homenageia filhos, netos, pais, irmãos e esposa, destaco o seguinte:

Jesus – esposa

    Justamente foi você a musa

    Encantadora dos meus sentimentos

    Suave como o voar das brancas garças

    Universo de compreensão, amor e ternura

    Sonho realizado dos meus afetos     

Não preciso dizer que com os versos acima Domingos José fez uma “média” para mais de várias décadas junto a sua musa. Da parte denominada Poemas, de temática diversificada, terei o cabotinismo e a imodéstia de pinçar este, em que fui (in)justamente louvado:

Ao poeta Elmar Carvalho

    Se tantos já fizeram

    Eu também vou sublinhar

    Mesmo sem rimas perfeitas

    Ao poeta vou desejar

    Planuras de vida sem fim

    Aos deuses vou suplicar

    Que conserve cada vez melhor

    A inteligência do grande poeta Elmar

Não mereço, mas, penhorado, agradeço ao autor o poema acima, de desvanecedor conteúdo expresso em ritmo e rima.

Ao longo de suas mais de 200 páginas, permeadas por várias fotografias, são narradas várias peripécias jocosas, relatados vários fatos interessantes, bem como são homenageados personagens ilustres de Campo Maior e do Piauí.

Aproveito para encerrar com a minha pequena apresentação, que se encontra no excelente TEMPOS idos e vividos:

“Desde bem jovem, Domingos José Carvalho, nascido em Barras, veio estudar e morar em Campo Maior, onde se radicou, para se tornar um notável campomaiorense como os que mais o sejam.

Cidadão exemplar, dele nunca se ouviu falar de nenhum ato ou conduta que pudesse desabonar a sua honorabilidade. Os cargos que ocupou foram por ele exercidos com competência, correção e zelo, de modo que nenhum reparo se lhe pode fazer.

Maçom paradigmático, nunca foi perjuro, e, portanto, nunca deslustrou seu avental e nem tampouco maculou as vestes maçônicas que envergou ao longo de várias décadas, como obreiro dinâmico, estudioso e dedicado.

Médico há vários decênios, jamais descumpriu o Juramento de Hipócrates, que um dia pronunciou, ao concluir seu curso, tendo exercido sua profissão de esculápio com invulgar competência e proverbial dedicação, podendo dele ser dito que é humanitário e caridoso, para com todos, sobretudo os mais pobres e necessitados.

Conquanto muito atarefado em sua vida profissional, tem exercido a literatura e a oratória com invulgar talento, posto que suas produções são lavradas em estilo escorreito, fluente, claro, objetivo e conciso, dentro do que recomenda a melhor prática redacional.

Seus trabalhos são frutos de pesquisa, reflexões, senso de observação, em que revela conhecimento, argúcia e perspicácia, ao se aprofundar no assunto ou tema que desenvolve. Assim, é um literato de muito mérito e valor, que merece os nossos efusivos aplausos e admiração.”