|
Membros do Jornal Inovação, sob o cajueiro de Humberto de Campos, vendo-se, da esquerda para a direita, no 1º plano: Bartolomeu Martins, Vicente de Paula (Potência), Elmar Carvalho e Canindé Correia; 2º plano: Danilo Melo, Francisco (Neco) Carvalho, Diderot Mavignier, Franzé Ribeiro, Sólima Genuína, Bernardo Silva, Reginaldo Costa e Paulo Martins; 3º plano: Jonas Carvalho, Israel Correia, Porfírio Carvalho, Wilton Porto, Alcenor Candeira Filho e Flamarion Mesquita. Percebe-se, nesta fotografia, a felicidade dos retratados com esse reencontro, posto que vários moravam em outros estados e municípios. Hoje, a maioria já não reside em Parnaíba |
DIÁRIO
[Canindé Correia – Mestre e Amigo]
Elmar Carvalho
24/01/2021
Um ano atrás, à tarde, recebi a notícia do falecimento de meu amigo, de mais de
quatro décadas, Canindé Correia. Fizera amizade com ele na segunda metade da
década de 1970. Imediatamente eu e a Fátima seguimos com destino a Parnaíba,
para participarmos de seu velório, que aconteceu em funerária situada na Avenida
Álvaro Mendes, no início da Avenida Capitão Claro.
Noite
longa, interminável, como são todas as noites em que velamos as pessoas de
nossa amizade e estima. Canindé Correia nasceu no dia 2 de agosto de 1943 e
faleceu no dia 24 de janeiro de 2020, aos 76 anos de idade, portanto. Ambos os
fatos, que são as datas-síntese da vida terrena de todos nós, se deram em
Parnaíba.
Poucos
dias depois, escrevi uma longa e sentida crônica em sua memória e homenagem.
Pensava publicá-la em um opúsculo, e distribuí-la no dia da Missa de um mês de
seu falecimento. Mas não pude fazê-lo, porque, então, as aglomerações já não
eram permitidas. E ainda agora o distanciamento social continua.
O
Reginaldo Costa está finalizando um livro em sua homenagem, sob o título de
Tributo a Canindé Correia. Com crônicas e artigos memorialísticos, participam
da coletânea os seguintes coautores: Alcenor Candeira Filho, Antônio de Pádua
Santos, Elmar Carvalho, Inaldo Pereira de Souza, Israel Correia, Maria de
Lourdes Oliveira Souza, Maria Eleusis Mendes Teles de Souza, Reginaldo Costa,
Vicente de Paula e Wilton Porto.
O
professor Antônio Gallas, que lhe fez caprichada revisão, disse as seguintes
palavras sobre essa obra, em artigo publicado em seu blog:
“Todos
que participaram do livro, em seus depoimentos foram unânimes em enaltecer a
grandeza de um homem que mesmo pertencendo a uma família rica, ilustre, nunca
carregou consigo o orgulho, a prepotência, mas sim a humildade, a solidariedade e a preocupação com as
injustiças sociais em nosso país.
Um
livro muito bem escrito. Fazer a leitura
e a revisão de algumas falhas ortográficas, porventura existentes, para mim foi
motivo de prazer, de alegria, pois só
assim fiquei conhecendo mais um pouco da personalidade do bom amigo, do bom pai
de família, do amante do belo e das coisas certas, enfim, do cidadão chamado
Canindé Correia.”
No
dia 20 de março, quando a pandemia da covid-19 já estava a se alastrar pelo
Brasil e pelo mundo, iniciava eu este Diário. Agora, ainda em pleno estado de
pandemia, como uma homenagem ao bom amigo Francisco de Canindé Correia, trago
para estas páginas diarísticas, como parte integrante delas, a minha aludida
crônica:
CANINDÉ
CORREIA – MESTRE E AMIGO
Amigo
é coisa para se guardar / No lado esquerdo do peito
Milton
Nascimento
Quero
desejar, antes do fim, / Pra mim e os meus amigos, / Muito amor e tudo mais; /
Que fiquem sempre jovens / E tenham as mãos limpas / E aprendam o delírio com
coisas reais.
Belchior
Jovens
tardes de domingo / Tantas alegrias / Velhos tempos / Belos dias
Roberto
Carlos
Já
não tenho epitáfios / para tantas lápides / em meu peito.
Elmar
Carvalho
recordações
de fantasmas / que já nos abandonaram / de amigos mortos / que nos acompanham /
cada vez mais vivos
Elmar
Carvalho
No
começo de 1975 meu pai (Miguel Arcângelo de Deus Carvalho) passou a morar em
Parnaíba, quando foi chefiar a agência local da Empresa Brasileira de Correios
e Telégrafos, e em junho do mesmo ano o restante da família passou a residir na
bela Princesa do Igaraçu, que também poderia ser chamada de “rainha do
litoral”. Em 15 de setembro fui assumir emprego nos Correios em Teresina, mas
no começo de 1977 retornei a Parnaíba, inclusive para iniciar meu curso de
Administração de Empresas, no Campus Ministro Reis Velloso da Universidade
Federal do Piauí.
Foi
ainda em 1977 ou no ano seguinte, quando passei a ser colaborador do jornal
Inovação* (fundado por Reginaldo Costa e Franzé Ribeiro), que iniciei minha
feliz e longa amizade, de mais de 40 anos, com Francisco de Canindé Correia
(02/08/1943 – 24/01/2020, em Parnaíba), que anos mais tarde seria padrinho do
meu filho João Miguel. Logo percebi que ele, além de sua inteligência e
cultura, era um fazedor de amigos, por causa de sua simpatia e conversa
agradável, e talvez e sobretudo por sua humildade e índole acolhedora.
De
ilustre estirpe, disso não fazia alarde e nem tinha jactância; antes, tinha
sempre uma postura discreta quanto a seus notáveis ancestrais, conquanto, sem
dúvida, os admirasse. Constituiu uma bela família, que amava, zelava e da qual
foi irrepreensível provedor e cuidador, tendo igualmente recebido, de sua
esposa Tânia e de suas filhas, Ivana e Fátima, amor, cuidado, compreensão e
carinho, que nunca lhe faltaram. Teve quatro netos, que amava de todo coração,
e os levava a passeios; e sei que foi correspondido plenamente nesse seu amor
de “avô coruja”. Dos parentes, do meu conhecimento, era mais próximo de seus
irmãos Paulo de Moraes Correia (falecido), Maria Aparecida (falecida) e Teresa
de Jesus, de seu tio e primo Dr. Lauro Correia e dos filhos deste, Israel e
Gardênia.
Graças,
em boa parte, a ele e a suas influências e amizades o Inovação, de forma altiva
e independente, pôde circular por vários anos, em periodicidade mensal e
ininterrupta. Foi a partir dessa época e de nossas reuniões para discutirmos a
pauta e as dificuldades financeiras e outras do jornal que lhe pude melhor
observar. Pude perceber a sua inteligência emocional, arguta e aguçada, o seu
equilíbrio e bom senso, a sua alta capacidade argumentativa, focada na lógica,
na logística e na razão, se é que não incorro em certa redundância.
Levou
uma vida digna, embora modesta, pois nunca teve apego ao ter, aos metais. Teve
oportunidade de ser professor da Universidade Federal do Piauí, na época em que
não havia a exigência de concurso público, mas não o quis, seja por não ter
vocação magisterial, seja por não desejar ingressar sem aprovação em certame.
Contudo, sempre foi discreto quanto a isso, e nunca se gabou dessa sua conduta,
e muito menos criticou quem quer que fosse. Também convidado a integrar a
Academia Parnaibana de Letras, em seus momentos iniciais, recusou o honroso
convite, sob a alegação de que não era autor de livro, como registrou o poeta
Alcenor Candeira Filho, seu amigo e cunhado, em seu Depoimento sobre ele,
publicado na internet, acrescentando que lhe era muito fácil publicar uma obra,
bastando para isso coligir os “textos que escreveu em jornais” e os
“pronunciamentos feitos como secretário de educação e superintendente do SESI”.
Portanto, nunca buscou glórias, honrarias e ouropéis, mas tão somente ser um
homem de bem e do bem.
Aliás,
nunca praticou o autoelogio, vez que nunca foi narcisista e muito menos
ególatra. Ao contrário, sempre cultivou o silêncio em relação a suas inúmeras e
altas virtudes, já que a humildade era uma delas, como já disse. Algum afoito
poderia me perguntar: “E defeitos, ele não os tinha?” Claro que os tinha, como
todos os temos. Mas os dele eram poucos, diminutos, e para mim irrelevantes,
tanto que deles não tratarei neste pequeno trabalho.
Era
muito atualizado com o que se passava no mundo e em sua aldeia, vale dizer no
seu entorno. Assistia, creio, aos principais jornais da televisão e não
dispensava a leitura dos impressos. Era sobremaneira antenado com os assuntos
da política. Tenho a impressão de que ele tinha uma recôndita vocação para a
alta política, para uma política escoimada de vilezas e mesquinharia, que
tivesse um pouco de pureza e altruísmo, em que o centro das atenções e do
interesse não fosse jamais o seu umbigo. Melhor dizendo, uma política voltada
para o coletivo, para o interesse público e social.
Tinha
uma argúcia notável para destrinchar os meandros e as entranhas da política
brasileira, piauiense e parnaibana. Parecia um profeta, a antever as jogadas
das lideranças e principais protagonistas. Era como se ele estivesse diante de
um tabuleiro de xadrez, e pudesse prever a movimentação das peças dos jogadores
antagonistas. Se errava uma ou outra vez, é porque o cenário político é muito
instável, sujeito a constantes e inúmeras mutações.
Entretanto,
as explicações que ele dava, as hipóteses que imaginava e as previsões que
fazia, eram concebidas através de um raciocínio límpido e lógico, em que ele
delineava as possíveis causas e consequências. Contudo, se ele tivesse tido a
vontade e as condições de ingressar na política (e não as teve, e acho que
sequer as quis), teria sido um estadista, e não mero político de campanário,
paroquial e rasteiro, movido por ambição, egoísmo e ganância.
Jamais
ele desejaria o poder apenas pelo poder, mas apenas como um instrumento para
servir, para prestar um bom e correto serviço público. Entendo que ele provou
isso, quando foi o secretário de Educação, por quatro anos, no primeiro governo
de José Hamilton Furtado Castelo Branco. Na época ele ainda gozava de boa saúde
e muita disposição física, e pôde dedicar o melhor de seu esforço, capacidade
administrativa e inteligência para ser, e foi, um excelente gestor, com o
imprescindível apoio do prefeito.
Conseguiu
construir várias e dignas unidades educacionais, com várias salas de aula, e
reformou outras tantas, que não irei, aqui, enumerar. Principalmente, manteve o
sistema educacional em ótima atividade, inclusive com o fornecimento de boa
alimentação escolar. Honesto em sua vida particular e nos demais cargos que
exerceu, a probidade foi sua marca pessoal, uma espécie de legenda que lhe
marcou a administração paradigmática.
II
Posso
confessar que me tornei uma pessoa melhor através de minha amizade com Canindé
Correia, ao longo de mais de quatro décadas, ao lhe seguir os conselhos e os
exemplos. Quando lhe pedíamos a opinião a respeito de qualquer assunto, jamais
ele adotava um tom professoral ou doutoral. De forma paciente e simples, e
sempre em voz baixa e humilde, emitia os seus argumentos, demonstrando qual o
melhor caminho a seguir, explicitando os porquês e as consequências da sua e de
outras opções, que acaso fossem aventadas.
Isso
acontecia tanto em relação a assuntos pessoais ou particulares, como no tocante
ao jornal Inovação e a nossa vida profissional ou educacional. De modo que, aos
poucos, sem nenhum desejo de sua parte, tornou-se uma espécie de mentor ou
orientador de nosso grupo, mas, como já deixei implícito, sem imposição sua.
Por
isso, sem misticismo e mitificações, eu o considerava nosso “guru”, não apenas
por ser o mais velho e mais experiente, mas pelo seu alto grau de sensatez,
equilíbrio e inteligência, mormente na época em que nos ardiam muito forte a
impetuosidade e o destemor da juventude. A sua criatividade para resolução de
problemas era notável, e sempre tinha um coringa, que aparecia na hora certa. O
coringa poderia ser um plano b ou c, ou uma guinada na estratégia até então
perseguida.
Amava
o bom, o bem e o belo. Amava o bom porque apreciava as coisas boas, as coisas
amáveis e desejáveis. Amava o bem porque era um homem bom, e nos induzia,
através de seu exemplo e de sua palavra, a que o fôssemos também. E amava o
belo porque amava a beleza da arte, da cultura e da paisagem, vista da janela,
ou ao longe, na linha do horizonte.
Amava,
creio, sobretudo a beleza que existia ou poderia existir no ser humano, a
beleza das músicas que apreciava e a magia de uma boa literatura, fosse em
prosa ou em versos. Nunca teve o silêncio e as restrições mesquinhas dos
invejosos; pelo contrário, aplaudia com ênfase e entusiasmo, e dizia palavras
de admiração e estímulo pelo dom e talento alheios; não às escondidas, mas às
escâncaras, à luz do sol, em verdadeiro processo de difusão, para que outros
tomassem conhecimento.
Com
a criatividade, conhecimento e inteligência que tinha, poderia ter escrito
notáveis livros, porque sabia redigir com fluência e desenvoltura, com objetividade
e clareza. Talvez tenha aprendido a bem escrever através de aulas, mas acredito
tenha sido através de longas horas de leituras, e do convívio com seu pai, o
professor Benedito Jonas Correia, que tinha impecável redação, e ainda pelas
atas burocráticas que redigia, registrando as reuniões da diretoria da FIEPI,
que certamente lhe aumentaram essa habilidade. Quando fui pronunciar alguns de
meus discursos, fossem de improviso ou por escrito, discuti com ele o que
pretendia dizer, e ele me ajudou com muitas sugestões, informações e dados
estatísticos, para reforço de meus argumentos.
Entre
esses discursos, posso citar o de minha posse na presidência do Diretório
Acadêmico “3 de Março” (Campus Ministro Reis Velloso – UFPI) e o que
pronunciei, de improviso, no monumental comício com que Chagas Rodrigues
retornou à vida pública, em plena Praça da Graça, após o término de sua
cassação pelo regime militar, em que estavam presentes Ulisses Guimarães,
Miguel Arraes, Almino Afonso e Franco Montoro, entre as mais conhecidas
lideranças do MDB nacional. Alguns fizeram referências ao meu pronunciamento, e
isso devo, em grande parte, aos dados fornecidos pelo Canindé.
Não
fosse a sua humildade e discrição, sem necessidade de holofotes e ostentações,
poderia ter elaborado excelentes livros historiográficos, de economia, ensaios
sociológicos, memórias, artigos e crônicas. Contudo, preferiu ajudar outros a
escrever e a publicar, e a aplaudir e louvar obras alheias. Talento,
criatividade e capacidade intelectual para essas empreitadas não lhe faltavam.
Era humilde, sim, entretanto tinha o seu amor próprio e a sua altivez e brio, e
sabia se insurgir, de forma civilizada, mas firme, contra quem tivesse a
ousadia de tentar lhe atingir moralmente ou o menoscabar.
III
Mestre,
chamei-o de meu mestre, porque muito aprendi com ele em nossa longa amizade.
Até em coisas simples, dele muitas lições recebi. Ainda no início de nossa
fraternal convivência, aprendi como se devia degustar uma espumante cerveja e
destroçar uma rodada de cordas de caranguejo. Tendo chegado a Parnaíba há pouco
tempo, e não tendo a experiência de manejar um crustáceo, observei como ele o
fazia.
Além
da lição prática, ele, num dia de domingo, pela manhã, nos ensinou que, ao
chegarem as cordas, cada pessoa deveria retirar um caranguejo, e, só após o seu
completo “desmonte”, pegar um outro. Vi que a lição se destinava a combater o
egoísmo daqueles que avidamente só escolhem a melhor parte, ou seja, a
suculenta e carnuda patola. Tempos mais tarde presenciei uma pessoa passar uma
decepção, porque de forma egoística e ávida retirava da bacia todas as grandes
pinças, sem dar chance aos outros, até ser repreendido pelo patrocinador.
Tendo
vindo morar em Parnaíba em 1975, como disse, não lhe poderia conhecer a adolescência
e muito menos a meninice. Soube, no entanto, que foi hábil no futebol e no
basquete. Quando tomou conhecimento, através de um de meus livros, de que eu
havia sido um bom goleiro em minha adolescência, me indagou a respeito, e
estampou um sorriso maroto, como se não estivesse acreditando muito nessa minha
faceta, que ele desconhecia. Era um ardoroso torcedor do Fluminense do Rio de
Janeiro, e a partir dos 50 e poucos anos de idade, sempre que possível, não lhe
perdia uma partida, pela TV.
Quando
o Terminal Rodoviário, que ficava em local na época considerado distante,
passou a funcionar, muitas vezes ele me deu carona, quando eu tinha de retornar
a Teresina, geralmente no domingo à tarde. Não esquecia o compromisso, e na
hora marcada, lá estava ele à porta de meus pais. Essas e outras demonstrações
de amizade fizeram com que a minha família, principalmente meu pai e minha mãe,
também lhe tivessem amizade e consideração, que nunca sofreram arranhões,
ressalvas ou senões.
Até
um pouco antes da doença, de que veio a falecer, fiz com ele muitos passeios e
viagens. Fomos a Viçosa do Ceará, na Ibiapaba, a Barra Grande, em visita a
nosso amigo e “inovador” Jonas Carvalho, e a vários outros povoados. Com ele
participei de muitas e sábias libações e degustações, “regadas”, muitas vezes,
a uma boa música. Num barzinho, que ainda existe, quase debaixo da ponte,
imediatamente antes do então povoado de Morros da Mariana, degustávamos
saborosos caranguejos, que chegavam fresquinhos, ainda cobertos pelas belas e
grandes folhagens do mangue; o igarapé, por onde os crustáceos chegavam, em
pequenas canoas, passava em frente ao boteco, e aumentava a sedução e a beleza
da paisagem.
Ele
vibrava quando ouvia uma bela música, sobretudo ao vivo. Eram da sua predileção
as inesquecíveis serestas da velha guarda, a melhor bossa da bossa nova, as
seletas da velha jovem guarda, naquelas tardes de domingo e outras tardes
imortais, inclusive as tardes mais azuis de um dia de sol esplêndido ou as
enevoadas de um dia chuvoso, e um rítmico
e legítimo samba, do morro ou do asfalto, contanto que fosse bom e de raiz. Era
figura quase onipresente no cenário musical parnaibano dos anos 70/80 o
seresteiro Osmar Bezerra, com seu vozeirão vibrátil e o indefectível violão,
que nos fazia vibrar as cordas todas do coração.
Nessa
época (final dos anos 1970 até o final dos anos 1990) eu tinha decorado um bom
repertório de poemas, sobretudo de Neruda, Da Costa e Silva, Bandeira e Camões,
e ele apreciava quando eu os dizia, com a ênfase de minha juventude cheia de
vitalidade e entusiasmo, inclusive uns dois ou três de minha lavra. Também
gostava das declamações dramáticas (e às vezes um tanto espalhafatosas) do
boêmio e performático Balula, com a sua bela voz tonitruante, que encenava,
quase sempre, como aperitivo, destinado a provocar o suspense, uma espécie de
proêmio.
Das
inesquecíveis libações desse período participavam, com mais ou menos
frequência: Vicente de Paula (Potência), Reginaldo Costa, B. Silva, Zé Hamilton
e os poetas Alcenor e Airton Meneses, fora outras presenças mais esporádicas.
Canindé se esmerava, então, em sua conversa. Sem dúvida era causeur, e sabia
condimentar sua prática, com anedotas, piadas, exemplos e casos pitorescos ou
engraçados que puxava do baú de sua memória, em que fora protagonista,
coadjuvante ou simples observador. Era bem-humorado e gostava de pessoas
bem-humoradas e inteligentes. Fora do grupo do Inovação, tinha amigos bem mais
velhos, entre os quais cito o mais que centenário dentista João Batista Teles,
com quem praticava, de vez quando, um jogo de baralho.
Canindé
adorava um banho de mar. Foram incontáveis as vezes em que fui à praia, em sua
companhia, quando ele levava sua esposa Tânia e suas filhas Ivana e Fátima,
então pequenas. Mas igualmente apreciava um banho de água doce, fosse de rio,
lago, piscina ou bica. Por essa razão, quando a Fátima herdou um pequeno pedaço
de terra, na localidade Várzea do Simão, e decidimos construir o Sítio
Filomena, em homenagem a minha sogra, na parte que vai da margem da estrada
vicinal até a beira do Parnaíba, tratei logo de improvisar uma potente bica.
O
amigo Zé Francisco Marques, de cujas interpretações musicais ao violão o mestre
tanto gostava, tendo observado o quanto Canindé gostava de tomar banho, deu-lhe
o carinhoso epíteto de Aquanindé, fazendo o trocadilho de aqua (água) com o seu
segundo prenome. Assim, quando fiz a estrutura definitiva das duchas, dei-lhe o
nome de Bicas Aquanindé, em homenagem ao saudoso amigo Francisco de Canindé
Correia, que fiz registrar em placa metálica, que ele inaugurou. E nessas bicas
ele banhou tantas vezes, em agradáveis e inesquecíveis dias de ensolarados
domingos, em que tivemos o prazer de sua marcante presença.
Tendo
sido seu amigo por anos e anos, não poderia ter deixado de me enriquecer
espiritualmente com suas palavras e exemplos. A sua morte foi uma das perdas
que mais senti. Quando lhe fecharam o caixão, na hora da saída do cortejo para
o seu sepultamento no Cemitério da Igualdade, e vi que não mais o veria nesta
atual dimensão, me comovi de verdade, e o pranteei em meu íntimo.
Por
isso mesmo, neste sábado, na reunião ordinária da Academia Piauiense de Letras,
ao propor voto de pesar por seu falecimento, aprovado por unanimidade,
enumerei, em síntese, as suas principais virtudes, e disse que Canindé Correia
não foi apenas uma pessoa importante, mas foi, sobretudo, um homem bom, com
quem tive a honra e o privilégio de construir e aperfeiçoar uma amizade por
mais de quarenta anos.
Agradeço
a Deus a graça de tê-lo conhecido e de lhe ter merecido a amizade, a que
procurei corresponder, embora com as minhas involuntárias falhas, e por ter
usufruído de suas benfazejas, quão agradáveis companhia e conversa.
Teresina,
5 de fevereiro de 2020.
*
Para maiores informações sobre o jornal Inovação e sobre a literatura
parnaibana, consultar meu livro Aspectos da Literatura Parnaibana e meu
Depoimento sobre esse jornal, publicado na internet. O primeiro, em edição
revista e bastante aumentada, pode ser adquirido na Amazon.