31 de janeiro Diário Incontínuo
REVENDO PEDRO II
Elmar Carvalho
Sete anos atrás, quando eu era o titular da Comarca de
Capitão de Campos, o irmão Francisco José Sousa, eminente grão
mestre do Grande Oriente do Brasil – Piauí, sob o argumento de que
eu estava trabalhando relativamente perto de sua terra natal, Pedro
II, colocou sua casa nessa cidade à minha disposição, para ali
passar alguns dias. Quando o reencontrava, em algumas ocasiões,
perguntava se a oferta ainda estava valendo, respondendo-me ele
sempre afirmativamente.
Não querendo abusar de sua generosidade, somente agora
resolvi lhe solicitar a casa, como um apoio logístico a um passeio
que faria com alguns familiares, entre os quais minha mulher, meus
pais, minha filha, duas irmãs e alguns sobrinhos. Ao todo, éramos
doze pessoas. Prontamente, o nobre irmão Francisco José cedeu a
casa, fornecendo-me um mapa com endereço e telefone de pessoas
amigas. Recomendou-me não deixasse de visitar o Museu da Roça, cujo
proprietário é o irmão maçom Mundote Galvão, pai do magistrado
Olímpio José Passos Galvão, também membro da sublime Ordem.
Quando eu já chegava ao Posto da Polícia Rodoviária
Federal em Piripiri, meu celular tocou, tendo sido atendido pela
Fátima. Era o meu irmão Antônio José, nos avisando que ele e os
demais membros de nossa comitiva familiar já se encontravam no Museu
da Roça, onde nos aguardariam. Ele, meus pais, meus irmãos e meus
sobrinhos chegaram a Pedro II na parte da manhã, e à tarde foram
conhecer esse importante ponto cultural, que fica a poucos
quilômetros da cidade.
Sem necessidade de ultrapassar a velocidade máxima
permitida, cheguei ao local em aproximadamente meia hora. Logo notei
que o museu era bem cuidado, com pequenas trilhas sinalizadas, arcos
de ramos e flores e caramanchões. Existiam muitas pequenas placas,
com frases educativas, de temáticas ecológicas, e outras,
reflexivas, contendo sabedoria de vida. Quando cheguei até onde se
encontrava o patriarca Mundote Galvão, já ele havia entretido uma
longa conversa com meu pai, que tem a sua idade, ou seja, 87 anos.
Na prática que teve comigo e com meus familiares, disse
que o segredo de sua boa saúde e longevidade é não pensar em
doença, e em comer rapadura diariamente, seja escoteira, seja com
comida, seja para adoçar suco ou café. Também disse não gostar de
usar medicamentos, exceto, de forma muito moderada, os naturais,
feitos com ervas e plantas. Após algum tempo, perguntou-me se eu
desejava tomar uma cerveja. Respondi-lhe que sim. Ele mesmo colocou a
bebida nos copos de meu irmão, de meu sobrinho e no meu.
Somente quando pedi para pagar a garrafa de cerveja
(que, aliás, ele não me permitiu fazê-lo), é que soube que ele
nada tomara. Indagado a respeito, respondeu que bebera apenas algumas
poucas vezes em sua juventude, mas descobrira que bebida não lhe
servia para nada, porquanto bebera para esquecer as suas paixões
juvenis, mas o efeito foi que ficara mais apaixonado ainda. Como ele
tem senso de humor, e falava com disfarçado sorriso, não sei ao
certo se brincava ou se falava para valer.
Mundote Galvão, pelo que percebi de nossa conversa, e
pelas informações que tenho sobre ele, é um bom cidadão, um homem
de boa-vontade e um maçom dedicado e cheio de entusiasmo, e que
soube desbastar, lavrando-a com afinco, a pedra bruta que existe em
todos nós. Ao lhe indagar se fora ele o idealizador e criador do
museu, disse que fora uma de suas filhas, Inês Passos Galvão, que
muito se empenhava em mantê-lo e conservá-lo. Não sei se em sua
resposta houve um excesso de modéstia, mas o certo é que se notava,
pela arrumação e limpeza do lugar, que havia o zelo de uma mulher
dedicada e detalhista.
Conheci a imperial cidade de Pedro II mais de 32 anos
atrás, quando eu, além de jovem, ainda morava em Parnaíba. Nesse
tempo, a Fátima, então minha namorada, fora tirar as férias de uma
colega dos Correios. Após tomar alguns copos de cerveja com o amigo
Reginaldo Costa, no povoado Morros da Mariana, hoje cidade de Ilha
Grande, num impulso, já à boca da noite, convidei-o a irmos a Pedro
II. A juventude é, muitas vezes, afoita e atrevida, e o Reginaldo
imediatamente aceitou o convite temerário.
Seguimos para Parnaíba, com o objetivo de nos
prepararmos para a viagem. Fomos em nossas motocicletas, naquela
mesma noite. Dispenso-me de contar detalhes dessa longa e estafante
viagem, que não aconselho ninguém a fazer à noite, em veículo de
apenas duas rodas. Paramos em alguns pontos, para nos aliviarmos do
cansaço. Chegamos numa fria madrugada. Nessa época, Pedro II era
uma típica e ainda acanhada cidade interiorana, de poucos milhares
de habitantes. Não havia um único estabelecimento comercial aberto.
Apenas o hospital da cidade mantinha a porta de entrada
aberta, com o hall iluminado. Entramos. Não havia ninguém a quem
pudéssemos pedir alguma informação ou auxílio. Ali ficamos até
de manhã cedo, para fugirmos do frio, que nos fazia tiritar,
recostados contra a parede, na tentativa de tirarmos um breve
cochilo. Umas pessoas, acho que funcionários e enfermeiras, nos
abordaram ao amanhecer, com certo receio, pois certamente nos
classificaram como sendo “forasteiros”. Respondemos às perguntas
que nos fizeram, apresentando as nossas explicações e
justificativas, e nos identificando, de modo que tudo terminou a
contento. A seguir, localizamos a pousada onde a Fátima se
encontrava hospedada.
Retornando aos dias de hoje, devo dizer que as
circunstâncias e o panorama foram muito diferentes. De imediato,
notei que a urbe havia crescido bastante, com o surgimento de grandes
casas comerciais, inclusive supermercados, lojas, restaurantes,
postos de combustíveis, hotéis e outros estabelecimentos
empresariais. Foram erguidos vários prédios de andares, além da
construção de outras praças. A avenida formada pela BR é toda
asfaltada, da entrada até a saída da cidade.
Ao conversarmos com a senhora, que tinha a guarda da
chave da residência, em que ficamos bem acomodados, ela nos disse
que a visão noturna do Mirante do Gritador era bonita, com a vista
das luzes dos povoados ao longe. Como era época de lua cheia,
resolvi seguir para o mirante nessa mesma noite, após fazermos a
refeição e nos instalarmos. Contudo, o tempo se manteve nublado, e
o nosso satélite não deu o ar de sua graça, de forma que não pude
ver a paisagem noturna da serrania, dos vales e morros, exceto as
luzes elétricas das casas, ao pé do despenhadeiro.
Dizem que o socavão produz eco, donde o nome Gritador.
Entretanto, por mais que eu e meus acompanhantes gritássemos, não
obtivemos retorno. Cheguei a pedir para que o “Mister Eco” nos
respondesse, porém ele fez ouvido de mercador ao meu pedido. Acho
que, por falta do plenilúnio, ele fora dormir mais cedo. Mas essa
justificativa também não condiz com a realidade, pois no dia
seguinte ele também não ecoou. Talvez não tenhamos direcionado a
voz para o local adequado. Fiquei levemente frustado pela falta da
lua cheia e do eco, que não se fizeram presentes ao belo Mirante do
Gritador.
Na manhã seguinte, a ala feminina da comitiva foi fazer
compra de produtos do rico artesanato local, sobretudo peças de
tecelagem. Eu, meu pai, meu irmão, dois sobrinhos (Almeida Neto e Josélia) e minha filha Elmara
fomos conhecer o centro histórico de Pedro II, e tirar algumas
fotografias. Admiramos seus belos casarões e as suas duas bonitas
praças. Pude constatar que os moradores, descendentes de velhas
estirpes pedrossegundenses, cuidam bem dos velhos solares avoengos,
conscientes de que devem preservá-los independentemente de leis de
tombamento.
A imperial cidade, por ocasião do centenário do status
de vila, ergueu um monumento em homenagem ao imperador Dom Pedro II,
que além de ser considerado sábio, foi poeta e mecenas, além de
cultor da ciência. Dizia ele que, se não fosse monarca, gostaria de
ser professor, o que revela a sua personalidade de amante das artes e
da cultura. No pedestal do imponente busto, encontra-se breve
cronologia dos principais fatos da história do município.
Alguns dos casarões ostentam placas, nas quais são
nomeados os patriarcas das famílias que neles residem ou residiram.
Assim, uma delas indicava o nome do coronel Domingos Mourão Filho,
que residiu no Solar da Estrela Marrom, cuja biografia foi narrada
pelo jornalista e escritor José Eduardo Pereira em memorial álbum;
outra, referia o casarão haver pertencido à família Gomes Campelo,
da qual faz parte o desembargador Tomaz Gomes Campelo, que sempre
comparece aos importantes eventos culturais da cidade.
Encerramos o nosso périplo turístico no Mirante do
Gritador, de onde se tem uma deslumbrante visão do abismo e dos
morros adjacentes, além das casas e quintais, que se erguem no vale.
Embora, como dito, o eco estivesse de folga ou de greve, o mesmo não
aconteceu com o vento, que nos devolveu os objetos leves, que
lançamos ao precipício.
Acredito que o despenhadeiro do Gritador seja um
boqueirão dos ventos, que, ao baterem na fralda do morro, erguem-se
em busca de saída para sua desenfreada e incansável correria,
devolvendo esses objetos, como se eles fossem um bumerangue. Saquei
um potente binóculo e trouxe para mais perto de mim a beleza da
paisagem serrana, que se erguia ao longe, e a trouxe comigo, no
embornal de minha memória, e no cartão de memória da máquina
fotográfica.