sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

CLIDENOR DE FREITAS SANTOS



CLIDENOR DE FREITAS SANTOS

Reginaldo Miranda
Acadêmico e advogado

No ano passado a Academia Piauiense de Letras comemorou o centenário de nascimento do psiquiatra e acadêmico Clidenor de Freitas Santos. Naquela oportunidade, designamos o também psiquiatra e acadêmico Humberto Guimarães para organizar uma obra em homenagem ao ilustre homem público, obra esta que veio a lume em dezembro do mesmo ano, sendo lançada dia 15 último, com o título Dom Clidenor – o último Quixote(Teresina: APL, 2013).
Clidenor de Freitas Santos foi médico, professor, intelectual e político brasileiro. Nascido em 16 de fevereiro de 1913, na pacata cidade de Miguel Alves, era filho de Raimundo Rodrigues dos Santos e D. Maria de Freitas Santos.
Desde cedo, em busca de novos horizontes, mudou-se para a cidade de Teresina, Capital do Estado, onde encetou seus estudos. Formado em Medicina pela Faculdade de Medicina do Recife(1936), especializou-se em Psiquiatria, uma de suas grandes paixões.
De regresso a Teresina, montou consultório médico, assumiu o antigo Asilo de Alienados, fundou o Sanatório Meduna e o Hospital Psiquiátrico Areolino de Abreu. Ainda, lecionou no Liceu, trabalhou no Ministério da Saúde e integrou a Associação Piauiense de Medicina.
Homem de ciências, atualizado com as principais ideias de seu tempo, seguiu as lições do Dr. Philippe Pinel e quebrou as correntes em que até então eram presos os doentes mentais em Teresina e alhures. Inicialmente, foi tido, também, como louco. Quem era esse jovem doutor que ousava soltar os loucos agitados e tratá-los sem o uso da força, da intimidação?
Mas os tempos eram outros. Também o conhecimento científico. E o doutor Freitas Santos estava a par do que acontecia de novo pelo mundo. E tratou os seus doentes com terapia ocupacional: crochê, bordado, musicoterapia, pintura, etc. Em pouco tempo a sociedade viu os efeitos dos novos métodos. E como não poderia deixar de ser, o nome do doutor Clidenor foi às alturas. Jovem, elegante, inteligente, culto, passou a ser uma das pessoas mais notáveis da cidade.
Gozando, assim, de imensa popularidade foi inebriado pelo canto da sereia e empurrado para a política. Candidato a prefeito de Teresina, nas eleições de 1954, pelo PTB, obteve expressiva votação, embora não tenha conseguido vencer as forças dominantes do Estado, capitaneadas pelo Dr. Agenor Barbosa de Almeida, que venceu o pleito.
Todavia, esse revés não arrefeceu seu ânimo, ao contrário o incitando a novas pelejas. Homem de têmpera à espartana, nas eleições de 1958, lançou-se novamente na batalha eleitoral, desta feita para a Câmara Federal, pelas Oposições Coligadas(UDN-PTB). Eleito com grande votação foi brilhante em seu desempenho parlamentar: vice-lider de bancada, integrante de Frente Parlamentar Nacionalista e partícipe ativo do debate de ideias.
Infelizmente, desavindo-se com lideranças de seu partido, não conseguiu reeleger-se nas eleições de 1962.
Então Presidente do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado(IPASE), em 1964, foi vítima do Ato Institucional n.º 1, que cassou seus direitos políticos. Ainda tentaria retornar ao Parlamento nas eleições de 1986, sem sucesso, retirando-se, então, da seara política.
Escritor, intelectual irrequieto, admirador confesso e professo da obra de Miguel de Cervantes (Dom Quixote de La Mancha), Freitas Santos foi um importante militante cultural do Estado. Presidente de nosso Sodalício (1954 - 1959), realizou profícua gestão.

Portanto, nada mais justo do que esta homenagem que lhe prestou a Casa de Lucídio Freitas, por ocasião do centenário de seu nascimento. Depois de minuciosa pesquisa e organização do material, com ricos textos e raras fotografias, é lançada ao público a indicada obra, constituindo-se numa bela homenagem a um dos homens públicos mais valorosos do Piauí. Assim, cumpre a Academia um de seus objetivos, que é preservar a cultura e a memória de seus membros.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

SOLIDARIEDADE ANIMAL



27 de fevereiro   Diário Incontínuo

SOLIDARIEDADE ANIMAL

Elmar Carvalho

Outro dia, quando eu trafegava pela avenida Duque de Caxias, nas imediações da fábrica da Coca-Cola, vi um vira-lata a carregar nos dentes um saco plástico de lixo, cujo conteúdo certamente era de natureza alimentícia. Deduzi que ele conduzia o recipiente para se afastar do local onde o encontrara, com o objetivo de se livrar de possíveis agressões dos responsáveis pelo lixo ou então para partilhá-lo com outro cachorro de sua amizade.

Creio não seja fora de propósito a segunda hipótese. Não faz muito tempo, assisti a uma reportagem de TV, na qual era mostrado um cachorro, que, após alimentar-se em um monturo de certa cidade, levava nos dentes um saco com alimento para um outro local. Uma senhora, que morava perto, observou isso algumas vezes. Como tenha ficado muito curiosa sobre que destino o animal dava à “quentinha” que conduzia com muito empenho e cuidado, resolveu segui-lo.

Descobriu que o cão levava o alimento para um outro cachorro, que não podia fazer o longo percurso que ele fazia, seja porque estivesse doente, seja porque fosse de pequeno porte, já não recordo o motivo. Isso me comoveu sobremaneira, sobretudo numa época em que vemos o homem, considerado como sendo um animal racional e espiritual, matar ou prejudicar seu semelhante por motivos torpes, fúteis ou egoísticos.

É verdade que o ser humano também comete atos heroicos, altruísticos e às vezes sublimes. Mas estes, nos dias de hoje, são raros, podendo mesmo ser considerados quase como exceções, aos quais a mídia quase não dá a mínima importância, preferindo noticiar os fatos sangrentos e escabrosos, permeados de maldade e egoísmo, que lhes aumenta o número de leitores, ouvintes ou espectadores.

Como exemplo das exceções a que me referi, contarei um fato emblemático que me foi revelado pelo saudoso deputado Humberto Reis da Silveira, de quem tive a honra de ser amigo. Disse-me ele que, em sua juventude, ao fazer uma viagem a cavalo pela caatinga piauiense, salvo engano com destino a Oeiras, ao fazer uma parada para que os seus acompanhantes se alimentassem, viu perto do rio Canindé umas pessoas que identificou como sendo retirantes.

Ao se aproximar dos viajantes, notou que uma mulher, em gesto altruístico, sublime e heroico, furou o braço com um espinho de talo de carnaubeira, para dar o sangue a um filho pequenino. Naturalmente, já não tinha leite, em sua penúria e fome. Humberto Reis se comoveu com aquele episódio, quase diria dantesco, e resolveu, em conversa com seu irmão, que lhe acompanhava, dar o resto de seus mantimentos para aquela família, que vagava pelos sertões, em busca de melhores plagas. Nunca o notável político, em sua longa vida, se esqueceu dessa cena digna de tela cinematográfica ou de talentoso pintor.

Minha mulher me contou que, perto de nossa casa, sempre via dois cachorros. Um parecia não conseguir andar, como se estivesse muito doente. Notou que o sadio parecia fazer companhia ao outro, como se não quisesse abandoná-lo, em exemplar solidariedade canina. Dias depois, notou que apenas o são se encontrava no local. Procurou se informar sobre o que acontecera.

Uma pessoa lhe contou que um cão era filho do outro. Acrescentou que o sadio fez companhia ao doente até quando este morreu e foi recolhido. Ao que tudo indica, não desejava que o outro se sentisse solitário e abandonado. Parecia não querer que o seu semelhante morresse sozinho e desamparado. Cuidou dele e o vigiou até o fim.


Entre nós humanos (e não estou fazendo nenhum julgamento, seguindo a recomendação crística), vemos muitas vezes um filho deixar seu pai ou sua mãe em um abrigo, sob a promessa de lhe fazer frequentes visitas, e nunca cumpri-las, como se estivesse se livrando de um peso incômodo e indesejável. E descartável.  

Escritores e poetas de Amarante - Parte I


Tela do pintor Di Kuka (Abinabel Kunha), inspirada na capa do livro Amar Amarante, da autoria de Elmar Carvalho

Escritores e poetas de Amarante - Parte I

Luís Alberto Soares (Bebeto)

INESQUECÍVEL ILUSTRE AMARANTINO

Afrânio Messias Alves Nunes - amarantino nato, nascido em 15-02-1924, falecido em 03-08-2011, sócio majoritário da Rádio Cultura de Amarante, um dos maiores colaboradores de todos os tempos para o progresso de Amarante e para o bem-estar do povo amarantino. Professor Afrânio Nunes fez história na política partidária piauiense. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais; advogado militante; funcionário da Rede Ferroviária Nacional; 1º presidente da UDR; deputado estadual por três mandatos (PI); foi presidente da Comissão de Finanças, de Educação, e de Justiça; presidente da Assembleia Legislativa; diretor de grandes colégios de Teresina; Secretário de Educação e Cultura e Saúde. Fundou o River Atlético Clube (Teresina) – presidente durante 14 anos. Fundou ainda o Amarantino Clube e o Iate Clube Amarantino. Representou o Piauí em diversos congressos. Como presidente da Assembleia Legislativa assumiu o governo do Estado. Presidente da Assembleia Legislativa e secretário de Educação e Cultura do Piauí. Conselheiro do Tribunal de Contas do Piauí. Vale enfatizar que o notável professor Afrânio, foi o político que mais conseguiu importantes obras públicas estaduais para Amarante e emprego público estadual ao povo amarantino. O inesquecível Afrânio faleceu aos 87 anos de idade. Deixa viuva Carmélia Alencar Nunes e os talentosos filhos: José Neto, Adolfo, Sônia, Cassandra e Luciene.

AMADA AMANTE DE AMARANTE

Emília da Paixão Costa (Bizinha), nasceu em 22/05/1927, em Regeneração (PI) e há mais de 60 anos residindo em Amarante onde recebeu o título de Cidadã Amarantina, tetraneta materno de Jozé da Costa Veloso que foi detentor da Carta de Data e Sesmaria das terras da então Vila de São Gonçalo de Amarante e Freguesia do Porto. Escritora, poeta e historiadora de primeira categoria, portadora de um riquíssimo acervo cultural sobre Amarante, recentemente doado à Academia de Letras do Médio Parnaíba da qual é membro de muito prestígio. Bizinha é uma figura inteligente e gosta de estender a mão amiga. Solidária, generosa e sempre presente nos grandes acontecimentos que envolvem Amarante. Convidada especial para palestras, seminários e outros encontros cultuais e educacionais. Uma apaixonada pela história popular e intelectual do povo amarantino. Escritora renomada no Piauí e prestes a lançar seu novo livro. Foi vereadora e prefeita, bateu recorde em trabalho. Criou a Banda Nova Euterpe Amarantina, Os Geniais (Carlos Gomes) e Os Naturais; instituiu os símbolos municipais de Amarante e da Ordem do Mérito da Saudade; construiu o Jardim Velho Monge, o Largo da Saudade e vários ruas, avenidas e postos de Saúde.

MEMORÁVEL ILUSTRE AMARANTINO

Antonino Freire da Silva, amarantino nato, nasceu em 10-05-1876 e faleceu em 16-09-1934 - Teresina (PI). Filho de Francisco Rodrigues da Silva e de Carolina Freire da Silva. Engenheiro civil, político, jornalista e professor. Professor e diretor do Liceu Piauiense. Foi diretor de Obras Públicas, Terras e Colonização do Estado e Chefe de Polícia. Deputado federal por quarto mandato, senador da República, vice-governador e governador do Estado do Piauí. Em 1930, no seu segundo mandato de senador, teve a carreira política interrompida pela Revolução de 1930. Sócio fundador do Instituto Histórico e Geográfico Piauiense. Fundou o Jornal "A Pátria". É patrono de uma das Cadeiras da Academia Piauiense de Letras.

DESTACÁVEL POETA AMARANTINO

João Ribeiro de Carvalho Neto, mais reverenciado por Carvalho Neto, natural de Amarante, considerado um dos melhores poetas do Piauí e de destaque Nacional. Começou seus estudos escolares em sua terra natal. Estudou em Teresina, onde reside, São Luís (MA.) e Fortaleza, donde se formou em Odontologia pela Universidade Federal do Ceará. O vate amarantino em Fortaleza participou dos movimentos estudantis e culturais e da fundação de um jornal que abria grande espaço para a poesia. Carvalho Neto participou ainda das expressivas antologias: Baião de Todos – Editora Corisco (PI); Visão Histórica da Literatura Piauiense – Herculano Moraes; Nordestes – Fundação Joaquim Nabuco (Recife – PE); Antologia Poética – Projeto Mão Dupla (PI-CE); A Poesia Piauiense no Século XX – Assis Brasil. São inúmeras sua poesias entre elas, Variantes do Berro, Arquitetura do Ser, Da Oportuna Claridade, Alegoria. O amigo Carvalho tornou-se funcionário público municipal de Teresina (PI), prestando relevantes serviços como odontólogo no IAPEP, na Fundação Municipal de Saúde, no Hospital da Polícia Militar e no Programa Saúde da Família.

INTELIGÊNCIA E DEDICAÇÃO AOS LIVROS

Carlos Gramoza, mais conhecido por Baé (Baeco), natural de Amarante, filho do casal Antonio Gramoza Vilarinho (falecido) e Maria Soares da Costa Vilarinho (professora aposentada). Trata-se de um solteirão dotado de inteligência. Muito apegado à leitura, especialmente aos livros de grandes escritores brasileiros. Baeco publicou dois livros: “Tempos Perplexos” e “Passos Oblíquos”, com apresentação do escritor Virgílio Queiroz. Logo após o lançamento da obra, ingressou na Academia de Letras do Médio Parnaíba. Vale esclarecer que o acadêmico amarantino prestou serviços na Prefeitura Municipal de Amarante no 1º governo de Helcias Lira. Baeco encontra-se residindo com sua mãe em Teresina.

PROFESSOR POETA


Raimundo de Sousa Fonseca, mais conhecido por Biela, natural de São Francisco do Maranhão e desde os três anos de idade morando em Amarante. Formado em Licenciatura Plena em Português. Trata-se de um jovem inteligente e habilidoso. Funcionário público da rede estadual e municipal de ensino em Amarante, através de concurso. Biela ministra aulas em três turnos e é considerado pelos seus próprios colegas de profissão, como professor qualificado. Ele também se dedica à poesia, tornando-se um poeta consagrado em Amarante. Muitos de seus trabalhos literários são exibidos anualmente neste município em exposições de escritores de Amarante. Biela ainda é jovem, casou-se recentemente com Antoniana da Silva Rocha. Do matrimônio, duas crianças: Maria Fernanda e Raimundo Ítalo. Vale ressaltar que o professor poeta é filho do casal Antônio Alves Fonseca e Maria de Jesus Gomes de Sousa Fonseca.   

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

MISÉRIA MORAL E A CORRUPÇÃO


MISÉRIA MORAL E A CORRUPÇÃO

Jacob Fortes

Sob a perplexidade de uns e a indiferença de outros, o Brasil assiste a ascensão da miséria moral. Quando se fala em miséria a primeira coisa que acode a mente do leitor é a pobreza extrema, aquela impedida de transitar de modo indisfarçável por causa do seu uniforme personalizado. Nesse uniforme, matizado ao estilo de chita ramada, vê-se a figura da mendicância, da fome, da indigência, do desabrigo, da criança abandonada, da falta de escola, enfim, todas as paisagens representativas das lepras e chagas sociais; privilégio de quem habita o mundo da exclusão. Mas aqui, especificamente, não me refiro à miséria palpável: que pode ser detectada pela vista ou pelo tato, mas à impalpável: que conspira contra a reputação, contra a honra, contra a probidade no ato de agir.

A propósito, ninguém saberia dizer exatamente quando surgiu a miséria moral, que o populacho chama de desonra. O que se pode afirmar é que ela remonta aos primórdios da humanidade. Os anais da história, — refertos em episódios épicos, líricos, pungentes, repulsivos, — contabilizam condutas emblemáticas perpetradas sob o ânimo da desonra. Exemplificativamente é o caso de Jacó, meu xará (livro de Gênesis), que, mancomunado com Rebeca, sua mãe, engendrou toda aquela cavilação para fazer-se passar por Esaú, seu irmão, e, assim, extorquir-lhe a primogenitura. É dessa consciência não dotada de sentido moral que manuscrevo, melhor, que digito no Word.

Matusalênica ou contemporânea, o fato é que a desonra encontrou, no Brasil, o solo fecundo de que precisava para tornar-se viçosa, exuberante. A ocasião não parece apropriada para uma dissertação acerca das razões que tornam esse solo tão generoso para com a desonra. Porém, o escritural histórico/sociológico deste gigante chamado Brasil, cuja cultura, aliás, está impregnada de influências múltiplas, alicerça dizer que a desonra não foi fomentada pela cultura indígena (de fundo ecológico e forte apego à natureza; sem ambições de armazenamento), nem pela cultura negra (cujo povo teve sua dignidade solapada por mais de três séculos e, quando liberto, tornou-se marginalizado). Esse fomento deriva de outros fatores, sobremaneira da cultura do colonizador. Cultura, diga-se, pautada no aventureirismo magano dos que vieram não para construir uma nação, mas para enriquecer na possessão tupiniquim, (extinta “Serra Pelada”), e, em seguida, retornar ao berço ultramarino, circunstância que fez nascer o individualismo, o desamor pela coisa pública, o descompromisso com o bem comum.

Resguardada a retidão que teima em vigorar na maioria dos brasileiros, vejam-se essas manchas que prosperam no interno das famílias citadinas.

Onde é que eu errei? Perguntam-se os pais, perplexos, quando constatam que o filho aprendeu o caminho dos presídios. A perplexidade, no caso, apenas ilude as suas consciências, pois, no fundo, sabem que o aprendizado do filho teve início no seio da família. Primeiro uma condutazinha discrepante contra a qual não houve o menor ralho destinado a corrigir a criança. Depois o que era apenas discrepante foi-se avultando progressivamente até adquirir contornos de desregramento. E tudo por quê? Por que havia dentro de casa um espelho e um fautor, aliás, dois: o pai e a mãe. Eis o papel dos fautores: o pai avança a faixa de pedestre, o sinal vermelho, e a criança vê. A mãe, às ocultas, no interior do supermercado, desenfarda um tablete de diamante negro e a criança descobre o modo de comer chocolate sem pagar. No trânsito, invariavelmente, o pai viaja pelo acostamento e o filho vê. Também estaciona nas vagas privativas de portadores de deficiência e o filho vê. A mãe, numa manhã domingueira, se vangloria de ter recebido, da padaria, troco a maior e o adolescente escuta. O pai, na maior desfaçatez, esclarece à esposa, em tom de quem leva vantagem, que comprou algo e efetuou o pagamento com um cheque sem fundos, circunstância que chega aos ouvido do audiente rapazola. O rapazola introduz na casa um objeto de origem duvidosa e os pais dão de ombro. E com esses ingredientes (fartura de maus exemplos aliada à escassez de catecismo e religião) chega-se à receita que faz recender, no olfato do adolescente, o perfume que desperta para o cortejo às práticas ilícitas. E nessa toada, sob o ânimo de uma desonra que viceja e transita sem-cerimônia como se portasse o crachá da moralidade, vai-se propagando em todos os seguimentos da sociedade, espetacularmente no político, a degenerescência da conduta humana. Ressalte-se a circunstância pesarosa de o Brasil haver banido das escolas a disciplina moral e civismo e, também, o hasteamento do pavilhão nacional antes de começarem as aulas. Todo esse estado de coisa faz vigorar o pensamento dominante de que é preciso levar vantagem em tudo, principalmente durante um mandato eletivo. Nessa seara os corruptos, nadando de braçada, se esmeram por desfrutar dos benefícios provenientes das trapaças que engendram, embora recusem a pecha de desonestos. Escândalos intérminos brotam ao modo de ervas daninhas por entre o cereal de boa semente: o povo honrado. É verdade que aqui e acolá alguns escândalos são flagrados e apontados por um vedor, mas, recidivos, reaparecem; agora mais travestidos. Nada faz medrar a ética na política! Apesar da impunidade, que graça, eventualmente alguns corruptos são penitenciados por culpas verificadas em prova.

Enquanto a corrupção prospera o povo padece com serviços públicos de baixa qualidade, mais das vezes em ruínas. Os eleitos, encastelados em seus gabinetes, já não escutam a voz do povo; detentor de muitos haveres. O povo é o timoneiro que poreja no remo para manter o país na rota da prosperidade. Apesar de relegado ao esquecimento, esse povo — submetido ao calvário de viajar, por longas horas, em trens e ônibus sucateados, comprimidos aos moldes de vagões boiadeiros, — trabalha de forma incansável por uma vida melhor, para manter a pátria forte; aprovisioná-la, inclusive de impostos de alto preço. Aliás, não faz muito tempo esse povo, transbordando de indignação, emitiu, por meio de manifestações fragorosas que ecoaram no Brasil e no mundo, gritos de socorro, mas, pelo visto, inaudíveis aos ouvidos dos políticos. Será que isso é tudo quanto eles acham que merecemos? Pergunta-se o povo, abatido, por vezes sem o brilho das efusões cívicas. O que quer que esse povo faça, por mais que acene, por mais que rogue, por mais que chore, por mais que grite permanece inviso, ignorado, pelo menos enquanto não se avizinham as eleições. Mas é preciso continuar clamando para que a demora não se estenda para além do suportável; para que o intolerável de hoje não se faça natural amanhã.

Já que não se pode dedetizar a miséria moral, por tratar-se de ser abstrato, nem mesmo castrá-la para que não venha sobrepovoar o país com a sua filha, a miséria material, (cuja cara de mortalha causa repugnância aos olhos e punge corações), ao menos que iludamos os nossos ideais remetendo o nosso pensamento para o singular e incensurável procedimento finlandês.

Os brasileiros, que tem na carteira a balança que pesa o bom e o ruim, fiquem alerta: há um contingente de políticos que, por falta de decência e integridade, já não merece ser abonado. Avizinha-se o momento em que esses polutos, hábeis em promessas mentirosas, sairão à cata de votos levando ao crédulo eleitor a insinceridade acoitada por semblantes beatíficos e sorrisos ternos.     

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Mestre Copeiro



Fonseca Neto

As cidades velhas têm uma vantagem sobre as novas. Muitas, aliás. Uma delas é o aprendizado da monumentalização notável de suas filhas e filhos, rente às artes decantadas de pedra e cal de sua ancianidade.

Oeiras do Piauí tem especial devoção pelos que nascem de suas entranhas e vivem nas malhas de seu tecido social. Como não foi desfigurada totalmente pelas acelerações destrutivas de estúpido “progresso”, também não foi despojada das lendas e outros mistérios trazidos ao presente na insistência de suas gerações. Não soterrou em brumas escurecidas do passado as edificantes histórias causais de sua gente –ou mesmo as histórias causuais.

Nutre-se a primeva capital, avidamente, de antigas memórias, enquanto produz o tempo novo  de suas filhas e filhos, os quais, ainda que se distanciem do chão comum, seguem enleiados nos fios do teçume mater. O clima bem dosado do lugar parece alongar a vida de muita gente, dando chance, charme e graça à historiação orada, e até escrita, dos seus viventes e viveres.

Há em Oeiras, desse jeito, alguns premiados que, vivendo muito, habitam o imaginário social na condição intermédia de personagens como que em trânsito, da vida real à ficção. Até se tornam, aos olhos dos mais jovens, testemunhos de tempos e experiências aparentemente inexistentes. E é assim que são robustecidos e ganham o mundo as suas singularidades, ao ponto de instituir o modo que o cronista apanhou do seu falar comum –“em Oeiras é assim...”

Essas observações me foram sugeridos e as fiz para realçar o oportuno tributo que ora se faz em Oeiras ao maestro e homem público Joaquim da Silva Copeiro, músico respeitado e, com certeza, digno de toda reverência, numa cidade onde se diz que “de músico e...”. Cidade onde tudo se move tocado a música –de batizado a enterro, o sarau, o bordel. E os sinos dobram alegres ou tristes nos 26 tons ditados nas partituras dos preceitos de cada circunstância de seu cotidiano.

Homenagem que Copeiro recebeu de um escola oeirense, o Instituto Barros de Ensino (Ibens), que acaba de publicar um manancial de memórias do músico: um livro autoral, “Rememorando o Passado, história de uma vida”; uma revista, “Almanaque Biográfico – Joaquim da Silva Copeiro: memórias de uma vida, histórias de uma cidade”; e um jornal, “Revivendo o Cometa”, focando Copeiro e Vinicius de Moraes. Publicações que inventariam as ações da área de ensino de língua e literatura da escola, a qual desenvolve um projeto sugestivamente intitulado “De poeta, músico e louco, em Oeiras todos têm um pouco”, anualmente mergulhando na vida e obra de dois grandes artistas. Em 2013, Copeiro e Moraes.

Um dropes só da (re)memória copeiriana: “Ainda em dezembro de 1984 (dia 26), a Banda semiestruturada tocou no enterro do Sr. Walburg Ribeiro Gonçalves. Foi um pedido dele a mim e aos familiares, quando vivo. Com o consentimento da família tocamos as músicas do seu pedido, ao sair o caixão: ‘Bombardeio da Bahia’, acompanhando o enterro até o Condado, hoje, Armazém Paraíba.  De lá ao Cemitério ‘General Rabelo’, dobrados que quando vivo assobiava-os. Houve pequenos desentendimentos, entre os que não sabiam que era normal no passado” (p. 48). Há por aí uns tolos que acham que só tem sentido memória de chefe político e gente rica. Não é o caso, claro, do pessoal do Ibens, e de tantos oeirenses e incondicionais amantes da “Invicta”: Dagoberto, R. Newton, Bill, Socorro Brandão, Chico e E. S. Rêgo, Expedito, Joca, Gutemberg, Soarinho, Rita, Stefano, Etelvina Ribeiro Gonçalves – aliás, esta, dos Ribeiro que são o “partido” do mestre Copeiro, e que nos anos 1940, juntos, com as responsabilidades de viverem na terra de Possidônio,  criaram esse ícone oeirense: a banda Santa Cecília. Devem estar se deliciando com o livro. 

O “Almanaque e “O Cometa” são uma realização do coletivo de estudantes e professores das referidas áreas, feitos qual oficinas de invenção textual-literária; excepcional iniciativa.  
E foi imerso no turbilhão caminhante e roxo de uma Sexta de Passos, no intervalo do Sermão, que interpelei um trobonista da orquestra: de quem é essa “marcha” tão sóbria e lacrimosa, e altiva, “para seguir”...? Respondeu-me rápido: “não sei ao certo, mas só pode ser do Mestre Joaquim Copeiro” – al! Sim. Agora entendi tudo. Quis falar com ele.     

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

ANIVERSÁRIO DE UM INTELECTUAL AMARANTINO


Luís Alberto (Bebeto Soares)

Vinte e cinco de fevereiro é o dia do aniversário do professor e jornalista José Virgílio Madeira Martins Queiroz, um intelectual amarantino nato que nos orgulha, reconhecido por vários lugares do Brasil. Professor Virgílio como é mais reverenciado, marca história no Piauí e em outros Estados, notadamente por ser um membro forte da cultura piauiense. Prestou relevantes serviços no SENAC e na Fundação Cultural do Piauí. Foi o divulgador principal da comunidade Mimbó, brigando contra os preconceitos da época. Hoje a comunidade é conhecida por este mundo afora graças ao Virgílio Queiroz. 

Colaborou com artigos em vários jornais e revistas deste país. Marcou presença em importantes seminários, palestras e encontros em vários Estados do Brasil. Foi ainda candidato a vice-prefeito de Teresina e a deputado estadual. Editor do jornal “O Papagaio”, foi locutor em serviço de alto-falante e rádio em Amarante e ajudou fundar o Teatro Nasi Castro. Trabalhou oito anos como Secretário Municipal de Cultura de nossa terra (governo de Dr. Miranda). O ilustre Virgílio é um membro forte de nossa história, presente nos grandes acontecimentos de nossa terra e sempre representa Amarante por aí afora em encontros culturais e educacionais. Considerado a mola forte para a implantação da Universidade Estadual em Amarante (UESPI), na qual foi coordenador por um bom tempo. 

Possui um vasto currículo com muitos cursos, entre eles, vários de ensino superior. Vale ressaltar que Virgílio Queiroz é professor de ensino médio e superior, jornalista, ator, compositor, radialista, escritor, teatrólogo, historiador, poeta. Possui os cursos de nível superior: Técnicas Pecuárias em Bovinocultura (UFPI); Licenciatura Plena em História (UFPI); Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo (UFPI); Especialização em Metodologia do Ensino (FATEPI) e Bacharel em Direito (AESPI). Cursando Espanhol. Presidente da Academia de Letras do Médio Parnaíba e membro da Academia de Letras de Alto Longá e membro da União Brasileira de Escritores-Secção do Piauí. O amigo Virgílio Queiroz diz que pretende acrescentar seu vasto currículo com dez cursos superiores.

Comenta-se que o intelectual amarantino há longos anos vem causando espanto com suas ações tenebrosas. Dizem que ele é um forte médium dotado de mistérios e que recebe muitas manifestações do além. Entre os arcanos: entrar em cemitério e sair de costas; andar em encruzilhadas à meia noite no seu transporte motorizado; entrar numa urna funerária para ler livros de São Cipriano (Capa preta e Capa de Aço), especialmente quando o Flamengo, time de sua paixão, disputa jogos importantes; colher pedras de vários tamanhos com formato de membro humano, animal e de pequenos objetos. Dizem ainda que o misterioso professor cria galinhas, entre elas, uma totalmente de cor preta e, que ele encomendou um urubu recém-nascido. Um inesquecível espírita local afirmava que o professor assustador só trabalha com a “linha branca”.

Ao amigo Virgílio Queiroz, portador de muita força e forte voz, feliz aniversário, que esta data se repita por longos anos de sua expressiva vida ao lado de seus parentes, amigos e de sua conceituada família, esposa, professora Maria de Fátima (aposentada) e de seus queridos inteligentes filhos, Iristela (Enfermagem), Irisceli (Jornalismo), Ítalo (Direito), Secretário Municipal de Saúde (Amarante) e Iris Maria (Nutrição).       

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Seleta Piauiense - Adail Coelho Maia


Interrogação

Adail Coelho Maia (1909 - 1962)

Ris, por que ris de mim? julgas por certo
Que eu seja indigno de qualquer carinho?
— Ave perdida procurando ninho
Na solidão profunda do deserto?...

Vivo longe de ti, e a passo incerto
Sigo em silêncio o teu feliz caminho,
Porque sem ti me sentirei sozinho,
Trazendo o peito em mágoas encoberto.

Não sou capaz de profanar-te o nome,
Sofrendo embora esse martírio ardente,
Na fogueira do amor que me consome!...

Não rias, pois, da dor que me rodeia!
Olha que Deus proíbe e não consente,
Que a gente ria da desgraça alheia!...   

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Desgraças de um governante opulento



José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com

          Quando passei em frente ao Palácio do Karnak, de olho no templo de São Benedito, parecia ver o governante, em carro de luxo, acompanhado de batedores... ah, como ele adorava o poder e a ostentação!

          Governador do Estado, belo, sábio nas decisões, sedutor. Selecionadas garotas atendiam-lhe o instinto insaciável. Um cronista afirma que foram centenas, sempre recebidas com privilégios palacianos. Uma bela psicóloga estrangeira, conceituada em seu país, acompanhada de comitiva, veio visitá-lo para uma entrevista. Trouxe-lhe presentes. Recebeu-a com honras de Estado, além de festivo banquete. O cronista relata, ainda, que a visitante “ficou estupefata” com os finos  manjares, licores, vinhos e galanteios do governante. Pode-se concluir o resultado do encontro em alcova.

          Governante era fascinado com a opulência: frota de carros, joias raras, barcos, imóveis de luxo e, claro, “mulheres de alta sociedade.” De toda parte.

          No início do governo, cultivava espírito puro e sábio como o pai, mas a riqueza e fúria sexual lhe entorpeceram o espírito. Antes, não se envergonhava de participar das cerimônias no templo, jurava fidelidade ao Senhor. Até produzia lindos versos, como estes: “O que ganhamos com nosso orgulho/E o que nos traz a riqueza unida à arrogância?” Veja só o paradoxo dos princípios pregados com a fortuna acumulada e loucas aventuras amorosas.

          De coração puro, espirituoso e sábio, o governante que falava de Deus resvalou-se para bebedeiras e banquetes, sempre acompanhado de mulheres fogosas. Estes versos de sua autoria bem o retratam: “Gozemos das criaturas durante nossa juventude/E não deixemos passar a flor da primavera/ Nenhum de nós falte à nossa orgia!” E chega à canalhice: “Não tenhamos consideração com os cabelos brancos do ancião”.

          O espirituoso e sábio governante escolheu companhias de outros rituais, com oferendas a espíritos repugnantes e condenáveis. Presenteou líderes da magia, construindo-lhes casas de feitiços. Às mulheres de sua paixão, luxuosas residências.

          Certo homem de Deus, profundamente angustiado, encontrou-se com um secretário do governante e mandou-lhe um recado assustador: “Ele vai perder 90% de seu poder!” Dito e feito. A desgraça bateu o trono do rei Salomão, filho e herdeiro do rei Davi, dez séculos antes de Cristo. Amou centenas de mulheres, inclusive pagãs, como a filha de Faraó. Por suas práticas abomináveis aos costumes de Israel, viu seu reinado arruinar-se. Não perdeu o trono, mas das doze tribos de Israel, somente uma, a tribo de Judá, continuou fiel ao filho herdeiro de Salomão. As onze outras formaram o reino da Samaria, que se perdeu no tempo. Daí, porque, até hoje, a raça de Israel é considerada só de Judeus, de cuja descendência de Davi nasceu Jesus. Toda a crônica inspirou-se no Primeiro Livro dos Reis e no Livro da Sabedoria. Assim, consegui amarrar você até o fim, e concluir quanto os governantes precisam tirar lições das desgraças e virtudes de seus antepassados. Porque pecados e virtudes mudam de aparência, mas a essência é sempre a mesma.   

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

MARCAS DA VIDA



20 de fevereiro   Diário Incontínuo

MARCAS DA VIDA

Elmar Carvalho

Um operário de nome José Silva, que fazia um serviço em minha casa, contou-me que seu colega Francisco Sousa gostava de tirar brincadeiras pesadas, delas tendo como objeto os defeitos físicos de sua vítima. Fazia o que hoje todos chamam de bullying, como se isso fosse novidade, por causa do uso da palavra inglesa, quando na verdade a prática existe desde tempos que diria imemoriais.

Tinha Zé Silva uma perna mais curta do que a outra, de modo que coxeava um pouco ao andar. Seu colega, ao observar esse pequeno defeito, quase imperceptível, perguntou se ele tinha um salto do sapato mais alto que o outro, e começou a rir acintosamente, de forma debochada. Zé Silva tinha certa vergonha de seu defeito, e não gostou da forma galhofeira como o outro o tratara. Constrangido, guardou um ressentido silêncio, e afastou-se do local, não sem antes advertir o colega de que não gostava daquele tipo de chacota.

Um primo do Francisco Sousa solidarizou-se com Zé Silva, e “tomou as suas dores”, como se costuma dizer. Chamou o ofendido à parte, e perguntou se ele gostaria de revidar. Ante a resposta afirmativa, disse:
Você já notou que o meu primo nunca usa bermuda nem calção, mas apenas e sempre calça comprida? É que ele tem as pernas muito finas e é um pouco cambota. Se você falar nesse defeito, ele vai se chatear, e não vai mais tirar brincadeira de mau-gosto com você.

Na primeira oportunidade, Zé Silva apalpou a fina canela de Francisco Sousa, e pediu para que ele mostrasse as pernas. Francisco fechou a cara e disse não gostar desse tipo de brincadeira. A partir dessa data, não mais fez qualquer chacota com o defeito físico de quem quer que fosse. Parece ser certo o rifão que diz que o macaco não olha para o próprio rabo. Arrematando sua história, Zé Silva afirmou que todo mundo tem seu ponto fraco.

Desde a minha infância, meus pais nos ensinaram, a mim e aos meus irmãos, a jamais mangarmos de quem quer que fosse. Tenho seguido esse ensinamento por toda a minha vida, e com isso tenho evitado arestas e antipatias, até porque ninguém tem culpa em ter alguma deficiência física.

Por outro lado, soube que havia uma matrona que se comprazia em zombar dos defeitos corporais de seus conterrâneos. Essa mulher veio a ter duas filhas, que, além de feiosas, nasceram com grave deficiência, que sequer lhes permitia andar. Uma outra senhora, tida como orgulhosa e antipática, não permitia que seu filho tivesse contato com o chão, de modo que essa criança ficava sempre deitada no berço ou nos braços da babá.

Por não fazer esforço para engatinhar e para aprender a andar, o menino somente veio a caminhar muito tardiamente, e apresentava uma compleição franzina e um tanto desengonçada. Não direi, em hipótese nenhuma, que houve castigo de Deus nos dois casos, mas acredito que foram aplicadas leis criadas pelo Todo Poderoso. Na Bíblia está dito que Deus retribuirá a cada um segundo a sua obra (Salmos, 62:12). Quem pratica o bem recebe o bem; quem faz o mal terá como recompensa o mal.

O célebre poeta britânico Lord Byron era considerado um belo tipo de homem, embora tivesse um defeito num dos pés, que lhe obrigava a caminhar mancando. Não obstante isso, foi considerado um herói das lutas da Grécia em prol de sua independência, teve várias amantes, e ainda de quebra teria tido uma relação incestuosa com sua meia-irmã.

É possível que ele tenha tido os traumas, os tormentos, as indecisões e atitudes contraditórias de Philip Carey, protagonista do romance Servidão Humana, que tinha um pé boto, e por isso manqueava. Essa personagem era uma espécie de alter ego do autor, Somerset Maugham, uma vez que essa obra-prima possui passagens consideradas autobiográficas, e foi vítima de bullying em sua vida estudantil.

Diz-se que o pavão, apesar de sua enorme beleza, tem os pés feios. Contudo, seria arrematada tolice ou mesmo simples perda de tempo uma pessoa ficar olhando os pés dessa deslumbrante ave, que é considerada símbolo da vaidade humana, tendo a sua magnífica plumagem para contemplar. Apesar de nossas falhas e feiúras, todos temos a nossa beleza e as nossas qualidades. O mais importante é que busquemos o nosso autoaperfeiçoamento, de modo que as virtudes possam suplantar as qualidades negativas.

Através das lições que meus pais me transmitiram e do que tenho observado e lido ao longo de minha vida, sempre entendi que primeiro devemos observar os nossos próprios senões, sejam eles físicos ou morais. E devemos nos esforçar para nos corrigir. Procuro, assim, seguir a advertência de Cristo: “Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão” (Mateus, 7:5).      

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Santiago Andrade, o cinegrafista morto: apenas uma ponta do iceberg...


               
 Cunha e Silva Filho


             Ninguém  estaria a favor do  irresponsável  que  covardemente  ceifou a vida de um  competente e respeitado  cinegrafista da  Rede Bandeirante, o ainda moço  jornalista Santiago  Andrade, que,  como tantos outros  jornalistas brasileiros ou estrangeiros, estão cumprindo  com o seu dever de informar o público com as  imagens  que acompanham  o  trabalho das reportagens. Vi o depoimento  entrecortado  de dor da esposa do cinegrafista  diante das câmeras  da TV. É mais um  crime entre milhares que  estão ocorrendo de um certo tempo  para cá na vida  social  brasileira.
          Quem provocou a tragédia  seguramente não é o  único   culpado. Há culpados,  inclusive  o tipo de  política de segurança que  temos  no país e, de forma  mais  violenta, no eixo Rio-São Paulo.
        Este  crime  já há tempo era previsível.   Poderia  acontecer em manifestações a qualquer momento e  tendo  como  culpado ou um arruaceiro matando  um policial ou  um  policial  matando um arruaceiro. Era de se esperar  esta tragédia  anunciada  que  poderia ser evitada se nossas autoridades  dos governos  estadual e municipal  nos seus setores de segurança, da polícia  militar, polícia civil  tivessem tido  competência e respeito   público  diante da  população carioca clamando  por seus direitos.  Por isso,  o assassino  não é o  único  culpado. Culpados  somos todos  nós que elegemos   políticos  que, nos seus mandatos,  deixam muito a desejar. São, por isso,   autoritários e péssimos   gestores  em suas funções.  Veja-se no  estado do Rio de Janeiro. Temos um  governador  que, em geral, é repudiado  pelos cariocas. O prefeito, da mesma forma,  não é bem visto  pelo  eleitorado.
     Quando um  secretário de segurança quer submeter ao Congresso Nacional  um projeto  de lei  com  dispositivos  legais   que   enquadrem  arruaceiros e  grupos  mascarados  conhecidos  como  black blocs em crimes  hediondos ou ações  de natureza  terrorista,  faltou ao secretário estender  esta tipificação de crimes  aos assassinos  e monstros da sociedade  que há muito tempo  acabaram com a paz do Rio de Janeiro, tanto quanto a de  São Paulo e resto   do país.
    Numa terra de ninguém, como é a situação  de violência brasileira, uma das mais  altas do mundo, ele, ao contrário,  poderia  encaminhar  um  projeto de lei  bem  mais  eficiente, o de  prisão  perpétua  para  crimes  hediondos e prisão real, não  esta contrafação e este  arremedo  de punição protegidos  pelas  brechas  da lei e pela diminuição  de penas  por  bom comportamento,  uma hipocrisia  forjada  pela nossa  estrutura  jurídico-prisional.
    A mídia estrangeira dos países  adiantados e com  liberdade de imprensa,  a quem  sabe ler  nas entrelinhas, se solidarizou com   a imprensa  brasileira indignada com a morte  cruel  de Santiago  Andrade, mas  deu  um recado certo para  o governo  brasileiro atual: o de que  o governo petista  tem-se omitido  na proteção   devida aos  jornalistas   do país  que são  vítimas  também  da truculência  policial e de restrição à liberdade de imprensa.
   Temos vários casos  de  assassínios  e agressões  partidas  dos órgãos  de segurança contra jornalistas e repórteres. Urge que  as associações  ligadas  à imprensa  exijam  mais  proteção aos  jornalistas, fazendo com que  usem  indumentária  e equipamento  adequados   semelhantes àqueles  usados  em  tempo de guerra.   
    Isto seria um  grande passo  em defesa da  incolumidade  física  dos que  mourejam  na imprensa que vai para as ruas  fazer a cobertura de situações de violência,  crimes, protestos, manifestações  sociais  contra  governos  que são  hostis à sociedade, ou  corruptos com  o dinheiro  público, ou  não  estão  cumprindo  as promessas de soluções  de deficiências gritantes  da  população em áreas específicas e vitais, tais como  transporte  público,  saúde, educação,  lazer, cultura.
   É evidente que  a imprensa  esteja unida  em defesa de um  colega  morto, que todos  lamentamos  profundamente. Contudo,  há outras implicações  na morte  do jornalista das quais não se tem  ainda  a verdade mais funda.
  A resposta da  polícia do Rio  foi  direta e eficiente ao  revelar  os culpados. Mas isso,  não é o bastante. Só se tem a parte de um todo e é nesse todo  que talvez fôssemos  localizar  os verdadeiros  culpados. A morte de  Santiago  nos lembra a morte de Amarildo e de tantos  outros   despossuídos que  sumiram  da vista da sociedade e a  polícia,  e o secretário de segurança, e o ministério  público, e o  governador e a Presidente  Dilma  Roussef, os deputados, os senadores,  os ministros, por que não  foram todos eles  rigorosos  na apuração  dos culpados  por tantas   matanças  de cidadãos brasileiros impunes até hoje? Por que  não foram eficientes   e prontos  a dar  satisfação à sociedade.
   Os assassínios  bárbaros devem ser medidos  com  peso  igual.  Enfim,  onde estão a presteza e a resposta  imediata da  polícia civil e do poder  público  em geral  que não mobilizaram  avião e o escambau a fim de  caçar  assassinos que ainda  aí estão  livres, lépidos e fagueiros?
   Os culpados estão por aí,   sem  acusação nem  julgamento, nem  processos  que  levem  à  identificação  de criminosos de inocentes. Por que as forças  policiais do estado do Rio de Janeiro  não  debelaram  grupos   de criminosos e matadores que ainda  campeiam  mandando e desmandando  nas comunidades  carentes  cariocas?

  Lamentamos, repetimos, a morte de um jornalista  operoso  e  estimado  por  seus colegas; todavia,  lamentamos  também  e por igual  as mortes  de outros inocentes que não tiveram,  por serem  humildes e abandonados,  o mesmo tratamento  do  pranteado  cinegrafista  Santiago nem  o poderio da mídia  escrita e falada   de aglomerados   das comunicações.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Buriti, rei das palmas



Fonseca Neto

Vivemos num país que já foi conhecido como Pindorama ou Piratininga – a Terra das Palmeiras. E a do buriti é considerada em todos os tempos como a mais bela no extenso viveiro de espécies das palmáceas deste trópico.

Agora imagine nascer numa cidade emoldurada por um buritizal vigoroso em que buritizeiros de todas as idades terçam suas palmas num festival encantador. Imaginou?

Pois assim é a cidade em que eu nasci. Seus belos buritizais formam densa paisagem dessa palma circular, parecida com as pinturas dum resplendor e de raios verdes plissados e pontas suavemente quebradas.

Quando eu me entendi” foi ouvindo minha avó Chiquinha de Moura dizer que onde nasce buritizeiro, pode-se olhar de perto, que tem olho d’água no pé: “ele só gosta de água minando”. Até nasce, mas nunca cresce perto de água ou aguada qualquer: rio que vem de longe, lagoa de água parada, açude; não adianta. Tem que ter chão minando água límpida natural ali por perto. É exigente.

Assim é na minha Freguesia, onde fizeram ontem taba os Aranhim: ao nascente, uma serrota coberta de arvoredo virgem, detrás da qual nasce o sol depois que já nasceu para todo o sertão. Nos outros três pontos cardeais, reinam as ditas palmas-rainhas... Para as bandas da Sant’Ângela e do sítio São Joaquim, já se mesclam às do babaçu, da macaúba, do pati... Até dos coquitos.

Assim como a vó sabia o xodó de vida ou morte do buritizeiro com água virgem, o povo da minha terra sabe tudo do buriti. Eu mesmo já comi, feito em muitos lugares, o doce preparado com sua polpa quase-encarnada. Mas igual ao que se faz na Passagem Franca – vou apostando –, ninguém faz. É arte antiga e já hoje rareiam os que a praticam. Precisa paciência em busca do “ponto” perfeito, algo incompatível com as pressas da vida presente.

O buriti é uma dádiva divina. O que hoje a pesquisa aplicada ao seu estudo “cientificiza”, apenas confirma o que a sabedoria das gentes primeiras de há muito descobrira. Além do fruto, carne e óleo, do talo, tala e palha, disto tudo se faz muita coisa que a vida precisa, em sua gratuidade, para ser bela e prática.

Há registros de que o buriti é originário do arquipélago de Trinidad e Tobago. Aliás, de sua baga-semente ou bago nunca ouvi dizer o que, dele, fazem os homens. Nesta região atualmente chamada Meio Norte, o seu nome foi ouvido dos tupinambás pelo frei Cristóvão de Lisboa que assim anotou –“ mburi’ti” – e daí que na língua do invasor luso passou-se a chamá-lo de "Buriti", "miriti", "muriti", "muritim" e "muruti". "Carandá", noutros lugares. Reina nos brejos de quase todo o Brasil. Mas é típico do bioma dos grandes vales do cerrado. No Jalapão o buriti é um semideus e, claro, sem ele, essa nesga do coração do Brasil não teria os dons de paraíso que tem. Diga-se que ameaçado, porque as águas, virgens, que um dia lhes nasceriam aos pés e alimentariam, estão sendo roubadas de cima das serras sob a forma de grãos sojeiros e toras eucaliptas para o jogo vil do capital que pouco interessa à vida.

Li notícias de que a deputada Nise Rego, da região de Barras, das Cabeceiras e da Boa Hora, propôs à Assembleia do Piauí medida legislativa com vistas à proteção dessa palmeira e pensando o seu aproveitamento sustentável no Estado. Cumprimento-a pela iniciativa.

E até penso que o povo da Baixa Grande do Ribeiro também deveria fazê-lo. É que, a exemplo da Passagem da minha nascença e pertença, essa cidade gurgueiana do sul do Piauí tem a mirar a sua grande e majestosa praça central um resplendoroso buritizal.

Num site vi que “existem buritis machos e fêmeas”. Machos produzem cachos que apenas desabrocham em flores; fêmeas, as flores se transformam em frutos. E “é preciso aguardar um ano para que os frutos estejam maduros e aptos para a colheita entre os meses de dezembro e fevereiro”.

Colheita? Na Passagem não se o colhe, coleta. Enquanto mansamente descem em escamas boiando no sutil e pantanoso riacho Inhumas.    

sábado, 15 de fevereiro de 2014

ENIGMA


ENIGMA

Elmar Carvalho

entre o som
        o sono
        o sonho
        a sombra e a sobra
eu me decomponho
    em escombros
em farpas e agulhas
    escarpas e fagulhas
                              desfeito enfim
                              em fogos de artifício
                              feito estrelas de mim
esfinge autoantropofágica que
não se decifrou e que a si
mesma se devorou       

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

EXORCIZANDO AS DOENÇAS


EXORCIZANDO AS DOENÇAS

Jacob Fortes

A sabedoria popular sustenta, de modo veemente, que os recém-nascidos, bípedes ou quadrúpedes, trazem em seus corpos uma espécie de antígeno pelo qual o organismo mantém-se protegido de doenças por duradouros anos. Seria digamos algo semelhante ao colostro, líquido amarelo secretado pelas glândulas mamárias antes e, principalmente, depois do parto, rico em anticorpos. O colostro tem a função de imunizar o recente, exemplificativamente os bezerros.

Mas o antígeno, talqualmente os repelentes, têm prazo de validade; afugenta enquanto perdura sua ação. A medicina não confirma, mas também não refuta essa crença acerca do antígeno. Verdade ou mentira o fato é que o populacho, esteado na superstição, tradição, ocultismo ou coisa que o valha, acredita piamente nas propriedades que tem o antígeno de enxotar agentes patogênicos; invasores. Nesse aspecto o sistema imunológico é, misericordiosissimamente, o lado inventivo e benfeitor da natureza. O problema é que não se sabe quando termina o prazo de validade do antígeno. Porém uma coisa é certa: experiencialmente sabe-se que o seu combustível é bastante rentável, suficiente para percorrer todo o calendário da primavera e, de brinde, atingir a fronteira do verão. Por causa dos efeitos longevos do antígeno há casos em que o cristão consegue atravessar, ileso, sem avarias, todo o território do verão. Coincidência ou não, quando a criatura, agora do meio-dia para a tarde, põe os pés em solo outonal aí começa o desmantelo, a bagunça, o flagelo. Em bandos ou em manadas, marmotas surgem de todas as paragens, inclusive do estrangeiro, com o firme propósito de se instalar na cacunda do cristão, justamente quando este, despojado da intrepidez da mocidade, (e do orgulho), já não tem munição grossa para reagir. Invariavelmente o lombo está ornado de mataduras causadas pelo albardão dos anos. Esses seres espectrais chegam à socapa, como quem não quer nada, e, ao menor descuido da vigilância, vão-se alojando, cada um a seu tempo, nos organismos humanos deixando-os lesionados, achacados, escarificados, fazendo lembrar os vergões de chicotada que zebravam o dorso dos cativos quando estes participavam das delicadas aulas de correção regidas pela bondosa escravatura. A técnica das marmotas, aliás, muito se assemelha ao movimento dos sem-teto.

Ainda que nenhum organismo esteja imune a enfermidades, verdade é que existem aqueles que têm tendências inatas para atrair essas marmotas; recendem um cheiro agradabilíssimo ao olfato das assombrações. Por causa desse cheiro gustativo certos organismos estão sempre lotados, não há vaga para mais ninguém. Nesse “santuário” de doença em cuja romaria há peregrinos nacionais e importados, o que se vê são doenças do lado de fora, à espera de vaga. Quando o hospedeiro, com o corpo apinhado de doença, já não suporta o peso da carga ele, que mal se levanta, se alui e, afadigado, sai em busca de um médico (alguns preferem os mandingueiros) que lhe possa prescrever um antídoto, um uma surra de pinhão roxo, um alvará de despejo com que possa exorcizar os inquilinos malfazejos. Mas é preciso alertar que a solução nem sempre ocorre de forma imediata, pois há invasores portadores de estabilidade assegurada pela usucapião. Em tais ocorrências há que se recorrer ao tribunal imagiológico cujo itinerário hierárquico é pródigo em instâncias de grande valimento dentre elas a ressonância magnética, o eletrocardiograma, o ultrassom e outras que vão além das catorze estações da via-sacra.

Apesar dos achaques que as marmotas vão causando mundo afora, — além, é claro, de o encherem com o seu assombro —, durante o outono é possível ao padecente conseguir uma boa reforma junto a um bom médico. O mesmo já não se pode dizer em relação aos que pisam em áreas jurisdicionadas ao inverno, a última quadra da vida. Nessa fase, em que a primavera é algo que ficou num passado distante e os que dominavam agora são dominados, reformas já não são eficientes; apenas paliam.

Seja como for, o importante é dulcificar a vida, afugentar do corpo a acidez para não atrair cupins. Se não sabe o nobre leitor, o cupim só habita solos extremamente ácidos. Quem, viajando de automóvel, já avistou, à margem da via, um talhão de solo abarrotado de arranha-céus edificados pelos cupins? Então, eles só habitam essas terras porque são extremamente ácidas. Os solos corrigidos por meio de calcário não lhes servem de estalagem; em vez de palatáveis lhes são repulsivos.

No cardápio destinado a dulcificar a vida há preceitos inumeráveis com que se podem espaventar as marmotas: um deles refere-se à higiene mental derivada de viagens e tudo mais de efeito anticorrosivo às rotinas de ferrolho, incluso espairecer na orla, no bosque, nos palhaços de circo que dão fidelidade do riso.

Ainda que esta prédica esconjuratória possa ressoar aos ouvidos de todos, maior favor prestará aos que — atravessando frajolamente a quadra da mocidade — estão longe de ficar perto de quem está perto do fim. Desavisados, jamais imaginam que um dia lhes baterá à porta uma fatura cobrando-lhes o frescor da mocidade. Pelo SIM, pelo NÃO, convém não olvidar: a natureza que concede é a mesma que toma; forma e deforma, põe e dispõe.

Xô, marmotas. Salvante as doenças grudadas ao meu cangote por força de estabilizada, na minha cacunda não tem mais vaga. Que Deus se apiede dos infelizes hospedeiros.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

O TRABALHO, O ÓCIO E A PREGUIÇA




12 de fevereiro   Diário Incontínuo

O TRABALHO, O ÓCIO E A PREGUIÇA

Elmar Carvalho

Muitos consideram que os nossos índios eram preguiçosos. Entretanto, outros tantos (ou mais) entendem que não se tratava de indolência, mas que eles trabalhavam apenas o suficiente para a sua sobrevivência e da família, mesmo porque não tinham a preocupação de acumular riquezas em celeiros ou paióis. Jesus (Mateus, 6:19) nos advertiu para que não tenhamos apego aos bens materiais, ao dizer: “Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam”.

Alguns defendem a tese de que a preguiça não deve ser confundida com o ócio. Enquanto a primeira seria a pura e total indolência, em que a pessoa se compraz em nada fazer, nem mesmo pensar ou ler, o segundo seria o estado de inércia ideal para alguém pensar, refletir, criar e elaborar uma obra de arte ou um trabalho intelectual. Através do ócio produtivo e criativo, o artista poderia conceber mentalmente uma pintura, uma estátua, um poema ou qualquer outro artefato artístico, que depois executaria no suporte adequado. Também alguma invenção e teoria poderiam ser concebidas através de um tempo destinado exclusivamente à reflexão.

Atualmente, a fábula da formiga e da cigarra teria sido modificada, de forma que a sua lição ou moral já não é a mesma. A formiga era apresentada como exemplo de dedicação ilimitada ao trabalho e de previdência, sempre com os celeiros refertos de alimentos, sem nunca passar fome, mesmo na época das intempéries. A cigarra, ao contrário, era vista como preguiçosa e imprevidente, precisando, para sobreviver, da misericórdia alheia, e portanto tinha a mácula de pedinte ou mendiga.

Na versão contemporânea da alegoria, entende-se que a cigarra não é e nem nunca foi indolente; que seu ofício ou profissão é cantar. Nasceu para ser cantora, sendo esta a sua vocação incontrastável. Conta-se que, por meio de sua arte e de seus shows, leva uma vida nababesca, não mais necessitando da caridade de ninguém, ao passo que a formiga leva uma vida de sacrifício, de muito trabalho e pouca recompensa.

Por falar em trabalho e indolência, contou-me um amigo que uma pessoa de sua amizade lhe expusera um fato acontecido com seu pai. Este, quando ainda jovem, foi trabalhar para uma proprietária rural, em serviço de farinhada. Seu trabalho consistia em “puxar” uma roda de um aviamento, que era o nome que se dava a uma casa de beneficiar mandioca, para a produção de farinha, puba, goma, beiju etc.

A roda que o pai do amigo de meu amigo deveria girar (ele de um lado e outro trabalhador no lado oposto), mediante uma manivela, era ligada por uma correia de couro ao “caititu”, que era o nome dado a um cilindro dentado, em que o tubérculo da mandioca era transformado numa pasta, que depois passaria por outros procedimentos até chegar ao produto final. Um trabalhador, geralmente uma mulher, encostava a mandioca nas serras metálicas do “caititu”, com muita atenção e perícia, pois poderia sofrer sério acidente e ficar sem parte dos dedos, caso se descuidasse ou exagerasse na força empregada.

Após o almoço, o trabalhador tentou tirar um cochilo, recostado a uma parede. Foi repreendido pela matrona rural, que advertiu não haver intervalo para descanso, e que ele deveria retornar imediatamente ao manejo da roda do aviamento. O homem resmungou algumas palavras ininteligíveis, mas que demonstravam o seu protesto e insatisfação. A proprietária da casa de farinhada não teve complacência, e o repreendeu com estes versos: “Se você não gosta de trabalhar, / trabalhe mais ainda; / trabalhe até ter, / e depois que tiver / trabalhe lá se quiser”.


Esse trabalhador incutiu na cabeça do filho, desde que ele ainda era bem novo, para que se esforçasse para obter o seu próprio imóvel, para não ter a vida sofrida, a vida severa severina que ele tivera. O rebento seguiu-lhe o conselho, e conseguiu adquirir a sua propriedade rural, para não ser vítima das agruras que seu genitor padecera.