sexta-feira, 30 de agosto de 2013

UMA VIAGEM AO AMAZONAS





30 de agosto   Diário Incontínuo

UMA VIAGEM AO AMAZONAS

Elmar Carvalho

Na semana passada, fomos – eu e a Fátima – a Manaus, para assistirmos à solenidade de conclusão do curso superior de formação de Oficiais da Polícia Militar do Estado do Amazonas. Nosso filho João Miguel passaria a integrar a briosa corporação, na qualidade de aspirante; em três meses, passará ao posto de 2º Tenente.

Da janela, percebi que o avião, durante algum tempo, seguia mais ou menos a rota do Parnaíba. Vi as curvas do Velho Monge. Por vezes, ele parecia retroceder em sua marcha em busca do mar. Era como se sentisse saudade de suas nascentes, de seu lindo berço natal, referto, ainda, de perenes olhos-d'água, incrustado nas encostas da Chapada das Mangabeiras. Vi o quanto ele se encontra assoreado e raso. Enxerguei os bancos de areia de seu leito e as coroas arenosas, que são ilhas encantadas, e também sintomas de que o Parnaíba está muito doente, necessitando com urgência de uma “UTI”, que o poder público lhe nega, em seu descaso e desídia.

No avião, logo notei uma novidade: a insípida e industrializada alimentação de bordo agora era vendida, por um preço consideravelmente elevado (conforme constatei no cardápio, devidamente colocado na bolsa, à frente de cada poltrona), já que não existia concorrência. Preferi fingir que dormia ou meditava, enquanto as aeromoças e os “aeromoços” ou comissários de bordo ofereciam as “iguarias” e passavam o troco, ou solicitavam cédulas de menor valor. Para evitar quaisquer interpretações malévolas, sequer pedi água, que era a única coisa gratuita. Preferi lanchar em terra firme, no aeroporto, apesar de que os preços ainda eram mais altos do que os lá de cima, os da aeronave em pleno voo.

Quando sobrevoávamos a capital amazonense, pude notar a imensidão de água doce e tive uma pálida ideia do que vem a ser a floresta amazônica. Pude ver palafitas e uma infinidade de embarcações, de diferentes tamanhos e calados, ancoradas ou navegando. Não pude deixar de me lembrar dos rios piauienses, quase todos temporários. Alguns ainda ficam com poças d'água durante todo o ano; outros, ficam com o leito exposto, completamente enxuto, mostrando os lajedos ou os bancos de areia.

Mesmo o valente e perene Parnaíba, comparado ao Negro ou ao amazônico rio, parece pequeno. Um ironista impiedoso não hesitaria em chamá-lo de igarapé, esquecido da importância que ele tem para o Piauí e para o Maranhão. Recordei um poeta municipal, que, referindo-se ao pequenino rio de sua aldeia, sentado em sua canoa de pescar, cantou em versos hiperbólicos: “Ó imenso mar-oceano”. Evidentemente o bardo jamais vira ou ouvira falar no oceânico Amazonas.

Tive oportunidade de passear pelo centro histórico de Manaus. Vi velhos casarões, sobrados e prédios antigos de vários andares. Não poderia deixar de visitar o secular teatro manauara. Belo, luxuoso como um palácio, ficou como um símbolo do fastígio econômico da época do auge da borracha. Nele se apresentaram importantes companhias e artistas, da ópera, da música erudita e do teatro. Algumas placas assinalam eventos e fatos importantes, que lhe tiveram como palco. Ali é ressaltado o nome do grande compositor Carlos Gomes, imortalizado sobretudo por sua ópera O Guarani. Consta que, no início, esse teatro teve um sistema de refrigeração, em que eram utilizados blocos de gelo.

Ao trafegar em várias avenidas da capital, contemplei nesgas esparsas da floresta amazônica. Algumas eram bem densas, fechadas, com grandes árvores frondosas. Tentei me imaginar perdido na floresta, à noite, com medo, com frio e sem conforto, sem ao menos a companhia longínqua das estrelas. Em alguns desses bosques, admirei a beleza de belas e exuberantes palmeiras, de elegantes e lustrosas plantas aquáticas, de grandes folhas, maiores do que leques e abanos.

Porém, facilmente se constata que essas reservas florestais vão, aos poucos, sendo devoradas pela construção civil, seja com a edificação de prédios de apartamentos ou condomínios de casas, ou mesmo empreendimentos comerciais. Cheguei até a ver, ao por-do-sol, da varanda do apartamento em que me hospedei, um bando de periquitos passar, fazendo festiva algazarra, em álacre revoada. Mas também ouvi, tarde da noite, provindo de um bosque próximo, o canto soturno de um bacurau ou de uma coruja. Lembrei-me do caburé do poeta Da Costa e Silva, “ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando”...

Ao leitor ávido por relatos de episódios insólitos, exóticos, devo dizer que não vi nenhum índio, muito menos armado de arco e flecha, ou portando alguma pesada borduna. Igualmente não vi as lendárias e valentes amazonas, mesmo com dois seios (e não apenas um), montadas em seus árdegos corcéis. Observei, sim, grandes barcos, e mesmo portentosos navios, de grande calado, ancorados no porto. Contudo, pela exiguidade do tempo, não pude, como desejava, fazer um passeio a bordo de um deles, navegando naquele oceano de água doce.

No retorno, do meu posto de observação, quase colado à janela da aeronave, no percurso entre Manaus e Brasília, vi a terra remexida, retalhada em imensos projetos agrícolas. Visto do alto, aquele manejo do solo transformava a terra numa imensa tela, pintada e desenhada por caprichoso pintor cubista. Conforme o tipo de plantação, a fase de crescimento da lavoura ou caso já tivesse havido a colheita, os lotes se apresentavam em diferentes cores, variando do verde-azulado ao marrom ou sépia. A forma das áreas agrícolas também era diversa; desenhavam quadrados, retângulos, polígonos e círculos perfeitos.

Conhecemos, na capital amazonense, alguns dos colegas e amigos do cadete João Miguel de Sousa Carvalho, entre os quais: Luz, seu companheiro de apartamento, piauiense de Picos; Sidnei Meneses, oriundo do Exército Brasileiro, do qual fora oficial temporário; Botelho, sorridente, sempre de bem com a vida, paraense; Fernando, natural da Paraíba; Rocha, exemplo de vida e de militar, experiente. Foi nomeado por mim e pela Fátima conselheiro e orientador de JM. Nascido no interior do Estado do Amazonas, já foi estudar um tanto tarde, mas esforçado e inteligente, formou-se em Direito, e conseguiu tornar-se aspirante em terceiro lugar, o que é um grande triunfo, que bem revela o seu espírito de homem focado e determinado em seus objetivos. Rocha, educado e prestativo, conseguiu-nos um ótimo lugar em um dos palanques com cobertura, de onde mais bem observaríamos a solenidade e os desfiles.

Quinta-feira, dia 22, à noite, fomos assistir à solenidade de formatura dos novos oficiais da Polícia Militar do Amazonas. Meu filho João Miguel estava garboso em sua farda de gala branca, ainda na condição de aluno-oficial. Juntamente com seus pares desfilou perante a assistência e o palanque oficial, no qual se encontravam várias autoridades, entre as quais o vice-governador, professor José Melo, representando o governador, que se encontrava viajando, o comandante-geral da Polícia Militar, coronel Almir Davi, o secretário da Segurança Pública, e várias outras altas autoridades.

Posteriormente, os formandos vestiram o uniforme de gala de oficial aspirante, de cor verde-escuro. O aspirante João Miguel, de boa estatura, bem-apessoado, na ótica feminina, estava elegante, emocionado e contente, com a presença de seus pais, de sua irmã Elmara Cristina, e da Maria, uma velha amiga da família, que ajudou a cuidar dele, em sua infância. Os jovens oficiais fizeram várias evoluções, em vários sentidos, com os pelotões mudando de posições e lugares, de forma sincronizada, sem erros e sem titubeios, em marcha acelerada.


No final da demonstração e da solenidade, entreguei ao João Miguel a sua espada de oficial. Em meu íntimo, desejei que meu filho e seus companheiros cumpram da melhor forma possível a missão que lhes cabe. Como apoteose, uma esplêndida chuva de fogos de artifício, um verdadeiro e fulgurante pálio, cobriu os jovens e esperançosos aspirantes.   

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Genocídio à vista: o caso do Egito


Cunha e Silva Filho

Não foram os  parentes e amigos das vítimas de soldados assassinos do regime  golpista instalado no Egito as únicas testemunhas  do massacre sem dó nem piedade contra seguidores  da Irmandade Muçulmana  à qual pertence o ex-presidente Mohammed Mursi, que, agora, se encontra  preso e incomunicável.   Testemunhas foram  todos os que, pelas diferentes mídias,  puderam, consternados,   ter notícias da  truculência e ferocidade das armas contra   civis, em geral,   desarmados. É fácil, é muito fácil   metralhar  quem não pode se defender  do fogo das armas genocidas.
Os partidários   da Irmandade, revoltados com  a queda  do  Presidente eleito  pelo  povo, reagiram  em  maciças  manifestações   de protestos contra  o  Exército e o novo governo  golpista   tendo como  presidente interino, Adly Mansur. O premiê interino, Hazem al-Blebawi,  já está  pedindo  a dissolução daquela irmandade que,  se for efetivada, passaria à clandestinidade. Tal  ação  só  tornará mais   acirrada  a hostilidade dos  partidários  da organização  islamita, que a obrigaria,  por força das circunstância,  até à prática do terrorismo e, quem, sabe,  a uma  nova  guerra civil  entre  os compatriotas   egípcios.
Não  se  pode  negar que  o  presidente Mursi andou  tomando  decisões  duras que não agradaram   o lado  laico   da população, inclusive  com  mudanças    que não constavam  nos seus  pronunciamentos de candidato  ao governo do país.
Bastou isso para que  se lhe fizessem   também  manifestações  de desagrado contra as medidas  por ele tomadas. Entretanto,  não se  pode igualmente  que um massacre das proporções  do que aconteceu agora em Cairo, com, no mínimo,  638 pessoas mortas, na quarta-feira passada, chamada de “Dia da Fúria")   pelo Exército, num ataque  covarde  de verdadeiro atentado  genocida,  seja   aceito sem   o repúdio   veemente  de todos os países e dos  organismos   responsáveis  por crimes  hediondos praticados   por ordem  de governos   de qualquer   regime.
Mursi ainda deu sinais de que  recuaria  implantar  algumas  medidas  impopulares, mas  o  caldo  já  estava entornado e os militares,  diante  do clima tenso  reinante no país,    resolveram  tomar posse pelo golpe.  Ora,  os dois  lados  andaram   errando e o resultado   foi que os muçulmanos decidiram   realizar   grandes  manifestações  contra os militares   exigindo   que devolvessem o poder  ao presidente eleito democraticamente.
Tenho  informações, através  da Folha de São Paulo,  de que os  líderes  mais influentes  da Irmandade  Muçulmana já se  refugiaram em algum  lugar ou mesmo  em  outro  país. Enquanto isso, mais  143   islamitas  foram assassinados   na sexta-feira passada,  O que  causa  espécie  é que  da parte do governo   golpista    a irmandade já está sendo chamada de  terrorista, o que  é um  contrassenso de inversão  de valores e de perspectivas. É esta sempre a versão   dos usurpadores do poder: classificar  os que se lhes opõem  como  terroristas  inimigos do povo.
Assim como  o   inferno em que se transformou a  Síria de Bashar Al-Assad, em nível menor, o Iraque,  o Paquistão,  o Egito    poderá ser mais um pais  árabe  a viver  o pavor da selvageria. Será que  esses países  não terão nunca  um   período  de  paz e seus habitantes estarão fadados  à insânia  das rivalidades  ideológicas e religiosas?  
Atualmente,  na   mesquita de  Fatah,  encontram-se acuados  alguns islamitas  “cercados  pela  Polícia e  pelas Forças Armadas” (Folha de São Paulo Mundo, 18/-08/2013).
Segundo  o articulista  internacional, Clóvis Rossi, da Folha de São Paulo, “.. não haverá  democracia nem no Egito nem nos demais países   de maioria muçulmana” caso os “setores laicos e os liberais,” responsáveis pela revolta que  derrubou a ditadura  de Hosni Mubarak não incluirem o islamismo como  componente da  política  no Egito. Neste argumento   é acompanhado  pela professora    Luz Gomez García,  que leciona   Estudos  Árabes na Universidade Autônoma de Madrid e  pela visão sobre  o assunto da revista  The Economist, na opinião de  Clóvis Rossi,  insuspeita, por sua linha  liberal e sua  ausência de  simpatia por movimentos como  a Irmandade  Muçulmana.
Se países, no passado e no presente,  ainda  praticam  ações  genocidas, ao arrepio das leis  internacional de proteção  e segurança  da vida humana,  já é hora de repensar  a funcionalidade   de organismos como a ONU com o seu  Conselho de Segurança. Se vivemos  num  mundo cada  vez mais  globalizado por vários canais   de comunicação  e de   relações culturais e  econômicas, seria a vez  de se  pensar  na formação  de organismos   isentos, autônomos, de nível internacional para cuidarem  de conflitos  que  atingem  as proporções  de crimes de guerra,  de massacres em massa cometidos  por  países  que não têm o mínimo  de respeito  aos direitos humanos,  ao direito, em fim, de viver em liberdade num contexto democrático sadio  e amante  da paz entre todos os povos.
Organismos  tutelados não servem mais nem  nunca serviram  inteiramente aos interesses pacíficos  da normalidade  da vida   em sociedade, agora,  uma sociedade   planetária nas suas  múltiplas  relações   internacionais. É factível isso? Creio que sim. Só depende  de negociações  sérias  e desinteressadas  entre  países, da vontade concreta  dos governos que estejam   prontos  à cooperação, sobretudo   a que visa á paz duradoura, se é  que   está acima de nós humanos  chamarmos de paz definitiva. “Nada é definitivo, nada é para sempre,” certa vez  me corrigiu  uma dentista  quando lhe  perguntei   pela  duração  ou certeza  de alguma coisa  relacionada à sua profissão.

Já   se está falando  por algum tempo  em  “princípio  da jurisdição  universal,”  não sei se só aplicado  a crimes  de militares. Mas, é um bom começo  e deveria ser aperfeiçoado e posto  logo em prática. Responsabilizar  líderes militares ou ditadores  civis ou militares, enfim,  qualquer  governante   de  índole autocrática   que possa ser  punido  em tribunais  internacionais sem apelos a brechas  da Justiça seria uma advertência  a futuros  violadores  dos diretos humanos  e a  genocidas  em  potencial. Governos discricionários, em qualquer parte do  globo,  pensariam duas vezes por seus atos  de carnificina  se  soubessem que   uma espécie de advocacia  efetiva, independente  e  respaldada por  Penalidades   Internacionais lhes custariam     a perda da liberdade, servindo  tal  procedimento  legal como  força  dissuasória  de ações  de crimes hediondos contra a Humanidade.   

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Em cada conta um lamento


Fonseca Neto

Ainda começando e já um agosto rico em lançamento de livros em Teresina. Já não mais só em junho, no Salipi, essas traquinagens literárias.
Em cada conta um lamento - incelências, benditos e rezas”, de autoria da professora Marluce Lima de Morais, foi lançado em sessão autógrafa muito concorrida, dia seis. Livro destinado a muita repercussão, tocando o tema comum da morte, no caso específico, o “morrer” no Piauí. Melhor dizendo: o “morrer” enquanto evento que mexe com todas as pessoas e que sempre impacta as relações do viver comunitário. Fato que retempera mitos e místicas.
Marluce é recém-egressa da Ufpi, onde fez graduação e mestrado em História, e o livro é justamente o texto de sua Dissertação sobre os ritos – ou liturgias populares – da morte, estudo que realizou em rica confluência interdisciplinar, especialmente lidando com chaves conceituais e interpretativas também frequentes entre antropólogos, etnólogos... E tudo muito bem costurado com estes, pois, instalada nas oficinas de Clio e de suas escrituras, aventurou-se no mundo da memória e na memória do mundo de seus sujeitos de pesquisa.
Tal a Malu, autora, somos quase todos nascidos nestes sertões de muitos saberes e fazeres no que diz respeito à religiosidade cristã-católica dita “popular”, forjada nas linhagens medievas transpostas para este lado do Atlântico por obra do intruso europeu. Com efeito, as experiências sensíveis que ela submete ao foco de sua investigação ao modo de ciência, encontram-se entranhadas no seu universo vivencial, familiar, de vizinhança, de localidade, enfim, de tradições. No caso, o município de Alto Longá, de onde seus pais, e os avoengos, são naturais e socialmente fabricantes dos modos de viver herdados por via das citadas linhagens, em que pese as solicitações de uma modernidade tardia e de baixo impacto por ali.  
Intitulou certo autor um livro – que virou referência – afirmando que “a morte é uma festa” (João José Reis). Estuda os ritos fúnebres do Brasil antigo, especialmente da Bahia soteropolitana. Pois Malu buscou esses rituais conforme são feitos nos costumes da velha região do antigo curato de Nossa Senhora dos Humildes do Alto Longá – a titular das “contas” – lugar de moradores dedicados à pequena criação e lavoura. Hoje um lucrativo ramo de negócios, os velórios, caixões, féretros e tumbas, mas nas zonas rurais ainda há os orantes da “boa morte” em sentinelas diante de corpos arquejando; há benditos, benzeções, a vela à mão na hora do suspiro final. E também as incelências, cantos lacrimosos para carpir em dor profunda. Para espíritos desprevenidos, assustadoras incelências cortando o silêncio das madrugadas em lâminas agudas. Sabe-se de carpideiras de contrato em meio às carpideiras parentais dos defuntos.
Pesquisou ela nos costumeiros arquivos e literaturas, mas suas fontes são preferencialmente a fala dos sujeitos e a observação participante. Lembrou a própria Malu, ao narrar, no lançamento, sobre o recorte temporal e a trajetória da pesquisa, os ritos funerais de sua própria avó, incrivelmente se fazendo fonte e laboratório de seu objeto, o qual tratou com pertinentes referenciações teóricas e metodológicas. E, claro, a partir de situações fáticas amplamente conhecidas, além de documentadas.
Em cada conta...” exprime o que essa nova historiadora amealhou ao chacoalhar as estruturas mentais piauienses quando atingidas pelo evento morte; os sentimentos em explosão eletrizando as células do corpo e cotidiano coletivos. Dir-se-á, um acontecimento cabal no destino humano, a finitude, afetando a micro história de cada um, em particular.
Malu foi orientada na elaboração desse trabalho de mestrado pela doutora Áurea da Paz Pinheiro, líder do nosso Grupo de Pesquisa “Memória, Ensino e Patrimônio Cultural” (CNPq), na Ufpi. É também Áurea que prefacia a edição, que sai pela Vox Mvsei – Arte e Patrimônio, dizendo que ela pode ser “apreciada por doutos e leigos”. Aliás, doutos e leigos de Portugal já se anteciparam na apreciação, uma vez que o livro foi lançado em Lisboa ainda em julho.
A autora é jovem docente do Ifpi, em Uruçuí, e que a partir deste mês servirá em Oeiras, a póvoa dagobertiana do Mocha.  

terça-feira, 27 de agosto de 2013

GRAN FINALE


GRAN FINALE

Elmar Carvalho

Desmanchei
com minhas mãos
que os criara
os deuses em que cria.
Desfiz
a imagem que fizera
da mulher amada.
Perdi a fé em tudo
como quem nada perde.
Depois
gritei, berrei,
chorei gargalhando
e resolvi ficar louco.
Depois de doido,
resolvi tentar a sorte
      sal –
               tan-
                       do de cabeça
do alto do arranha-céu.   

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

CARNE ARTIFICIAL


Edmar Oliveira

Quando minha filha mais velha era pequena tentei ensinar-lhe como as galinhas eram criadas no quintal e como nos serviam de alimentação no passado. Nem contei das galinhas de granja criadas pro abate. Foi traumático, a menina ficou sem comer frango por uns tempos e eu fiquei entendendo que ela achava, antes da minha história, que galinhas nasciam nas prateleiras do supermercados. Nem me atrevi falar do milho da pipoca, que ela podia ficar com dó da espiguinha verde, fazendo um paralelo com o Visconde de Sabugosa.

Lembrei da história quando as manchetes anunciaram que cientistas tinham feito um hambúrguer a partir de células tronco de músculo de boi. As células se desenvolveram em tubos de ensaio, cresceram sem gordura alguma e a palidez foi avermelhada com corantes para representar a morte do boi que não houve. A pompa do experimento convocou uma chef gourmet para provar a iguaria artificial que custou a bagatela de setecentos reais. Não foi o preço salgado que fez a cara da chef fazer caretas, acho que o gosto que ela provou era mesmo ruim. O cientista responsável pelo experimento disse que tinha feito carne moída das células tronco, por ser mais fácil, mas que em breve seria possível fazer um bife para um churrasco.

Fiquei assustado, mas ao mesmo tempo aliviado pela idade que já carrego. Eu não quero viver num mundo em que a comida é produzida em laboratório, só precisando de uma vaquinha reprodutora de células tronco para abastecer o açougue. Já tinha ficado escandalizado quando soube que o chester é criado num cercado, porque não pode andar. A mutação genética faz a carne do peito ser muito desenvolvida e as pernas não sustentam o peso. Fazer um fígado gorduroso para obter o “foie gras” do ganso já é crime hediondo desde a antiguidade. As sementes já estão na mão da “Monsanto” e sua reprodução é controlada geneticamente.

Agora, aquele hambúrguer de laboratório foi demais. Eles fornecem umas células tronco e os açougues do futuro vendem uma carne que veio de um boi antepassado que pode ter morrido um século antes.

Minha avó quando ganhou uma geladeira serviu para ser armário da cozinha. Nunca ligou a bicha. Ela gostava de ver as frutas amadurecerem na fruteira em cima da mesa. E carne, só se boi tivesse sido matado naquele dia, que de madrugada ela já estava no mercado do Cajueiro esperando seu bife do almoço. Ela dizia que a geladeira não deixava a natureza agir e o ser vivo ficava impedido de maturar normalmente. Mas carne de ontem ela não comia, de jeito nenhum, só se fosse seca e salgada ao sol. E eu queria ver era eles fazerem carne de sol no laboratório!  

domingo, 25 de agosto de 2013

Seleta Piauiense - Danilo Melo


Honra ao mérito

Danilo Melo (1965)

Você fez o que podre
retalhou a África
Você fez o que podre
viciou a China
Você fez o que podre
varreu as minas do peru
Você fez o que podre
jogou Napalm na Indochina
Você fez o que podre
tirou a pátria dos curdos
Você fez o que podre
matou as crianças do Chile
Você fez o que podre

Grande é o teu mérito
Civilização vencedora!
um bilhão de cadáveres te contemplam!  

sábado, 24 de agosto de 2013

“Melhor nem tivesse nascido!”


José Maria Vasconcelos

Agosto, desgosto, agouros, superstições. Teresina, habituada a violências no trânsito, assaltos e homicídios, pranteou mais que de costume. Perguntava por que sacerdote de notórias virtudes, jovem, popularidade em alta, automutilara-se.
A imprensa costuma comedir-se nas informações sobre esse tipo de fatalidade, para não estimular reações insanas na opinião pública. Bem que a mídia exercitasse, também, semelhante prudência ao abordar, exaustivamente, crimes contra a vida, a família, ao pudor, em novelas, filmes e jornalismo policialesco. 
Não me interessam fatos que envolveram a autoimolação do sacerdote. O que me angustia é a pergunta existencial, por quê? Por que um homem, experimentado na fé, desespera-se diante de Deus do impossível? Caim, atormentado pelo assassinato contra o irmão, Abel, fugiu à presença de Deus, que lhe jurou toda proteção, embora o crime praticado (Gênesis, 4). Apóstolo Pedro, falastrão, teimoso, covarde, envergonhado pelo gesto de traição, “chorou amargamente”, arrependido, evitou o suicídio, foi regenerado pelo batismo no Pentecostes, tornou-se líder da Igreja de Cristo. O companheiro Judas, tesoureiro desonesto (João, 12), ambicioso e traidor, desesperado, optou pela automutilação. Será que Jesus se compadeceu de Pedro e rejeitou Judas? Uma vez, o Mestre ameaçara a Pedro: “Retira-te de mim, satanás. Tu és um escândalo!”(Mateus, 16). Durante a Ceia, previu a fatalidade de Judas: “Um de vós há de me trair... Melhor nem tivesse nascido!” (Marcos, 14). Durante séculos, esta última frase de Cristo, perversamente mal interpretada, serviu de anátema aos que tentassem eliminar a própria vida. Negavam cerimônia fúnebre e sepultamento em cemitério cristão  aos suicidas.
A suprema misericórdia de Jesus nos ensina a não julgar qualquer pecado do próximo: “Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem!” (Lucas, 23). Não sabem por quê? Hoje, a ciência consegue decifrar mistérios da mente.
Questões culturais, psicológicas e religiosas levam milhões de pessoas a automutilarem, anualmente. Fanáticos membros da Igreja Peoples Temple, do pastor Jim Jones, cometeram suicídio coletivo (918), em 1978, na crença de um prêmio celestial. Suicídio é a décima causa de morte entre jovens no mundo. Em países onde se exige regime educacional extremamente competitivo, como no Japão, estudantes se isolam da família e de prazeres sadios, desolados, em consequência de estresse e perda de pontos na avaliação escolar e pela cobrança dos pais. Orientais, ao contrário dos ocidentais, exacerbam a valorização do espírito em detrimento do corpo, utilizando leis terríveis de mutilação e pena de morte, missões suicidas de kamikazes, autoimolação como fórmula de protesto ou prêmio celestial. A educação cristã medieval, baseada em perigosas interpretações bíblicas e autoritarismo herdado do império romano, causou muitos danos à sociedade, por utilizar princípios de santificação e perdão com pena de morte, tortura e penitências extremas. Até a higiene corporal era condenada, por servir de motivo ao pecado. A escravidão negra pagou caro, com açoites e suplícios, pela cor e origem pagã.
Drogas, esquizofrenia, alcoolismo, transtorno bipolar, em geral, são resultado de conflitos familiares, consciência perturbada por condutas criminosas, carência afetiva, reclusão social. Após glória passageira deste mundo, celebridades consumiram drogas, à exaustão, isoladas e desoladas. Em vez do prazeroso retiro com Deus e a família, da sublimação do silêncio, da caridade para com o próximo, certas celebridades recolhem-se no casulo da metamorfose doentia e mortal.
O exercício racional da fé e da sublimação da vida gera saúde mental e física. Pode vir agosto, mais desgosto. A casa está fechada e inviolável aos agouros e presságios.  

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Por que os terroristas odeiam os Estados Unidos?


Cunha e Silva Filho

Aos Estados Unidos por longos  anos faltam  grandes  estadistas. Não vemos mais um  George Washington,  um  Thomas Jefferson, um Abraham Lincoln, um Benjamin Franklin,  um Ralph Waldo Emmerson e, mais próximo de nós, um  Franklin Delano Roosevelt, um Martin Luther King, entre outros menos conhecidos.Todos fazem  parte de um país  que  se viu formando com   figuras de elevado  conceito moral, intelectual,  político.
For graças a esses homens  de grande estatura   moral  que a democracia  americana  se constituiu e se consolidou. Entretanto,  “no meio do caminho” segundo  o famoso   verso  drummondiana,  havia uma pedra. E essa pedra  se chamou  gigantismo  capitalista, país  dos  milionários  em  afronta direta aos necessitados  e aos miseráveis. Onde um país  se forma de homens  levados  pela  grande ambição de acumulação  de riqueza crescem as injustiças, as  desigualdades. E,  por conseguinte, a  indignação  de um povo.
Essa pedra no meio do caminho   também tem  outros nomes: a expansão  do capitalismo, ou melhor, a sua exportação  de formas  de  vida econômica  que se foi  espalhando  por outras nações. O capitalismo  tornou-se, assim,  uma pandemia, um  estilo de conduzir a vida  individual, sob a forma mais  egoísta possível,  e coletiva  dos povos que a ele aderiram. Essa pedra conheceu  outra  forma de se manifestar, ou seja,  através  do poderio  armamentistas recrudescido após  a Segunda Guerra  Mundial. País  de  riquezas  variadas,  de climas  diferentes,  de formações   étnicas diversas, “melting  pot”  soberano   do Planeta, não se contentou   em  ostentar só para si  o seu domínio  e a sua ganância. Quis  alargar-se pelo mundo afora. Tornou-se hegemônico, espécie  de “Império  Romano” dos tempos modernos, com as suas “legiões” de militares  e a sua força armada  descomunal de tal sorte que  veio a impor-se como  liderança  do mundo, sobretudo  econômica e armamentista,  tanto  no Ocidente quanto  no  Oriente. Nesta  última  região  territorial,  com  povos   de culturas   milenares     e visões  do mundo   completamente  diversas do “American way  of  life,” o intercâmbio  comercial norte-americano com seus   interesses mercantilistas e de natureza  geopolítica, pôs para o escanteio as boas intenções dos fundamentos dos “founding fathers” e enveredou  para  práticas colonialistas  e  de exploração  econômica  e territorial..
Daí para diante,  a política   externa  americana  descambou  para   o combate  sem trégua à ameaça  comunista tanto  internamente  quanto  sobretudo  nas práticas  diplomáticas. Podemos   dizer que todas  as guerras e conflitos por que  passaram  os governos americanos em relação   a outros países não-capitalistas, em todos  os  quadrantes da Terra,  tiveram como alvo  evitar  a implantação  de novos   governos  comunistas  no mundo.  Tal se deu com  a China,   com  o Vietnam e com o mundo  islâmico.
Contudo, ao  lutar contra a ameaça  comunista, os Estados Unidos  cometeram  muitas erros  em sua  política externa, quer  por  intervenções diretas  e  unilaterais  em  países  árabes ou na América  Latina, quer por interesses  econômicos de exploração capitalista. No  Brasil,  tivemos  essa experiência durante a eclosão  da Ditadura  Militar.
Se os EUA não tivessem  atuado, em todas essas regiões, para impor  ideias e mudanças  com  objetivos   de  expansão  capitalista  ou de dominação   de países  manu militari,  é bem provável que  o terrorismo  não tivesse crescido  tão  fortemente na contemporaneidade.
O ódio dos terroristas,  a bem vem da verdade,  não é contra  os americanos, É,sim, contra  maneiras  hegemônicas   de sua  política  externa, especialmente  se  tem  objetivos  de domínio  econômico.
Ninguém  pode negar  que a grande nação americana   não foi  útil à humanidade sob  tantos  aspectos:   na tecnologia,  na nas ciências, na indústria, nos  inventos,  na sua  democracia  amadurecida, na educação,  no desenvolvimento  de seus centros universitários  que recebem,  indistintamente   todos  aqueles que  desejam  se  aperfeiçoar  nos vários campos da inteligência. As universidades  mais   prestigiadas  na América   recebem  pessoas  do Ocidente e do oriente sem discriminação  nem   hostilidades. Basta isso para  reconhecermos  que   os EUA  não  é esse “demônio “ pintado  por terroristas.O erro da América se encontra  na sua política  externa, nas suas invasões  unilaterais  a países  árabes e no seu vezo  de  pensar  que  o mundo atual   está disposto  a  ações  colonialistas,   exploradoras e hegemônicas.
Faltam aos EUA  homens  de  sabedoria  e de espírito democrático, tal como   as ilustres  personalidades  da  heróica   fase da formação  da nação  norte-americana.A lição que  aquele homens  legaram à posterioridade universal não pode ser esquecida,  mas reeditada nos seus  princípios  democráticos  e de  convivência  humana  no país e entre as nações  do  mundo.  Que não sejam esquecidas as palavras  de Lincoln no seu Gettysburg Address, em 19 de novembro e 1863: “Há 87 anos que nossos pais estabeleceram neste continente uma nova nação concebida na liberdade e fundada  no princípio de  que todos os homens  nascem iguais.”  

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Revista Eça-Dagobertiana


Fonseca Neto

Oeiras do Piauí é um núcleo que inaugura a vida letrada no Piauí. Sede da burocracia colonial primeira é lugar difusão da cultura vocabular nesta parte velha América portuguesa. Não é à-toa que essa cidade é avoenga e berço de muitos escritores.   
Há pouco mais de dois anos foi ali criado mais um sodalício de letras, a Confraria Eça-Dagobertiana, grêmio que promove a cultura literária do povo local, nas sendas abertas pela obra do literato português Joaquim Maria Eça de Queiroz e do escritor nativo Dagoberto Carvalho Júnior.
Neste sábado, 17, a cidade de Oeiras prestigiou o lançamento da Revista da Confraria Eça-Dagobertiana, número 2, numa noite festiva que encheu de gente a sala maior do Cine-Teatro, à Praça da Vitória. Entre outras mais atividades ali vistas, uma breve e significativa apresentação do coral Vozes de Oeiras, regido pelo maestro oeirense Aurélio Melo, além de duas palestras a cargo de confreiras habilitadas examinando aspectos da obra de Eça e Dagoberto. 
Quais melhores palavras haveríamos de usar para em breves linhas apresentar essa obra e sua relevância? 
Não é fácil apresentar obra assim coletivamente elaborada; obra de diversa autoria, “cada cabeça, uma sentença”, com cada protagonista-autor insculpindo em sua arte escritural aquele detalhe singular, fio da própria alma. Para relativizar nossas dificuldades, seguramo-nos na colunata mais segura que constitui a matéria da Revista e que é sua referência e motivo maiores: a vida e obra dos co-patronos da Confraria –e também parte inseparável delas, os cenários de seus mundos, assim os reais, assim os imaginários. Com efeito, os escritos ora publicados, são criações intencionalmente inter e entretextuais, sobretextuais. 
A Revista da Confraria é uma façanha. E a exemplo do primeiro número, Eça e Dagoberto vêm tinindo em suas páginas, que fixam para Oeiras do Piauí e para todos os lugares da lusofonia, as vozes que se amplificam do primeiro e o tirocínio incansável do segundo, fazendo-lhes ressoar, onde existir ouvido de ouvir e olhos de ver, e ler. 
Dagoberto Carvalho Júnior já narrou ene vezes sobre as formas com as quais construiu as pontes entre sua alma oeirana e o mestre oitocentista da Póvoa de Varzim. E para nós essas pontes são uma tessitura cujos pilares invisíveis estão solidamente enfincados nas duas margens do Atlântico: nas lusas costadas e calhas portucalenses de lá, derramando-se ao mar, e nas sertanias de cá, no vale do Canindé do Piauí, e das Tranqueiras. 
Quando Eça viveu, o Portugal que subjugara este país pindorama era, já, apenas a memória dos feitos de uma espécie de aventura antepassada, levada a grandes efeitos por dinastias, de afonsinas a bragantinas, formações sociais particulares ora aceleradas (1380) e ora aguilhoadas pelas guerras peninsulares e pelas guerras de mundos (1600). Quando Dagoberto Jr. nasceu, a Oeiras do Mocha e do tempo de Eça haviam, já, passado, e nela, fustigando a mansidão e silêncio do tempo, a memória dos feitos de uma espécie de paroquialidade insistente. Essa memória de lá e a de cá, a rigor, são indissociáveis, um manancial de nervuras historicamente enleiadas. 
O ambiente do encontro entre o patrono Carvalho Jr. de cá e o Eça de lá, antes de ser uma expressão física/fisiográfica – a destempo, não importa – é o lugar da memória muito bem cultivado na estrutura das ideias e tradições entremeadas desse universo de mundos confluentes. O Portugal que vem para este ermo (na percepção de lá) é já uma nação unificada e unificada sob a égide de culturas herdadas as mais diversas – dos iberos, dos lusos, latinos, visigodos, árabes, entre as referências maiores de sua ancestralidade. Pois bem: a obra de Eça, elaborada no último quartel do século XIX, é um estuário em sede romancística, pelo qual correm os fluxos dessas culturas cruzadas e baldadas, sobre a face de uma gleba euro-atlântica, solar, voltada aos mar de ansiosas interrogações... 
Muito do que vem publicado na Revista foi dito em encontros lítero-gastronômicos em Oeiras. Come-se, bebe-se, proseia-se. Bom participar dos saraus dessa gente da póvoa do Mocha, vitoriana e rosária - e muito melhor porque o bispo da cor do burgo é confrade.  

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Um giro pela Teresina de antanho


José Maria Vasconcelos

É como se acabasse de ler um romance dos anos 60 e 70, fechasse os olhos, voasse, à deriva dos sonhos. O tempo passa, mais um gole de café para afagar o álbum da memória. Estampas aparecem como folhas secas caindo ao léu.
Palhoça, 1969, primeira boate com luz negra, tosca, circular, paredes de buriti, lembrava uma cabana indígena. Ficava na Vermelha, na Avenida Barão de Gurgueia, próxima à Igreja Nossa Senhora de Lurdes. Roberto Carlos nas paradas. Agarradinhos, sarros inocentes. Modesta, mas chique. A Palhoça derreteu-se em chamas, e mereceu uma reflexão de D. Avelar Brandão Vilela, na Rádio Pioneira, “oração por um dia feliz”, enorme audiência. Sem televisão, apenas três rádios AM, radialistas, popularizados, elegiam-se com facilidade, a mandato parlamentar, como Fernando Mendes, Carlos Augusto de Oliveira, Rodrigues Filho, Deoclécio Dantas e Pedro Mendes Ribeiro, ou conquistavam posições na administração pública.
Copa do Mundo, 1970. Faltavam três anos para inauguração da primeira televisão do Piauí, a TV Clube. Torres da Embratel, espalhadas por todo o Brasil, recebiam, através da torre de Itaboraí, no Rio, os sinais do satélite. Sem televisão, Teresina recebeu as transmissões da Copa por Fortaleza, um privilégio que atraiu curiosos do interior do Piauí e Maranhão. Uma faixa, na ponte metálica do Parnaíba, tripudiava: “Benvindos ao México”, sede da Copa. Depois de cada vitória da seleção brasileira, o corso ocupava a Avenida Frei Serafim.
A capital só oferecia quatro cursos superiores: Direito, Odontologia, Filosofia e Letras. Ao concluir o ensino médio, jovens aquinhoados partiam para outras metrópoles, em busca de cobiçados cursos. Regressando a Teresina, nas férias, garotas seduziam-se por esses rapazes de “futuro promissor”. No final da tarde, em julho, o calçadão do Colégio Sagrado Coração de Jesus concentrava centenas de estudantes para o bate-papo e encontro com esses estrangeiros. Virgindade, uma preciosidade.
As garotas preservavam-se para depois da formatura, fiéis aos namorados distantes.
Aos sábados e domingos, à noite, Praça Pedro, lotada e dividida: local reservado a coroas, circulação de adolescentes; na parte superior da praça, o coreto, os amassos. Às 9 em ponto, o toque de recolhimento da corneta militar, todos pra casa. Rapazes dirigiam-se à prostituta Paissandu, atrás das aconchegantes boates, algumas de luxo, belas mulheres e adolescências expurgadas da família porque perderam a virgindade com o namorado. Cine Royal, chique, refrigerado. Cine Rex, ventiladores, plebe rude, veados malinando machos no escuro, filmes de terceira categoria. Theatro 4 de Setembro, menos teatro e conforto, cinema de faroeste americano, discriminado. Depois das 9, tertúlia no Clube dos Diários, até às 12 em ponto. Só abraçados, rostinhos colados, também esfregaços embaixo, beijos na boca no esconderijo das mechas dissimuladas, provocantes, tecidos íntimos umedecidos. Tudo isso, só isso. Depois disso, só no casamento.
Iate Clube, recanto de endinheirados e madurões, um filtro social e caro. Jóquei Clube, o melhor carnaval da cidade e dos eventos sociais trepidantes, menos seletivo, balneário lotado aos domingos. Ríver começava a eclodir, inaugurando tertúlias às sextas.
Teresina, de segunda a quinta, recolhia-se sem badalações, livre de assaltos e violência. Raros consumidores de drogas, livres e mansos, dedos em V, utópica mensagem de Paz e Amor, dolce far niente hípie.
Último gole de café, hora de sair para o trabalho, enfrentar minha Teresina de 161 anos, desvirginizada, maliciosa, turbulenta, ainda agradável para se viver e pedir mais cafezinho. 

domingo, 18 de agosto de 2013

Seleta Piauiense - Elias Paz e Silva


cidadezinha

Elias Paz e Silva (1963)

vamos
assistir à televisão na praça,
enquanto o dia bobo não vem.
nem um lobo
pra quebrar a rotina,
nem um beijo
tolo da amada.

vamos
assistir à televisão da praça,
enquanto vamos inventar um lobo,
e uma amada também.
tá pronto?  

35 anos da Alval


A Alval (Academia de Letras do Vale do Longá), foi fundada em 23 de setembro de 1978.

Em 23 de setembro de 2013, estará completando 35 anos.

Programação:

Dia 21 de setembro de 2013
Local: Auditório do Hospital ITACOR
Horário: 16h
Entrega de Diplomas de Mérito Cultural A. Tito Filho, a diversas personalidades que fazem cultura no nosso Estado.
Apresentação de acadêmicos da Alval:
Humorista: Deusdeth Nunes (Garrincha).
Repentista: Pedro Costa.
Poetas: Altevir Alencar, William Soares, Elmar Carvalho, Lizete Napoleão, Dilson Lages, etc.
Recital de Violão: Francy Monte
Peça Teatral: Rio Longá (Aci Campêlo).
Coquetel de encerramento.

Dia 22 de setembro de 2013
Local: Sede da Alval (Barras)
Horário: 9h
Entrega de Diploma de Mérito Cultural A. Tito Filho a diversas personalidades que se preocupam com a cultura de Barras
Recital de Violão: Francy Monte
Coquetel de encerramento.  

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

NA COMARCA DE OEIRAS, ENTRE ANJOS E POETAS



16 de agosto   Diário Incontínuo

NA COMARCA DE OEIRAS, ENTRE ANJOS E POETAS

Elmar Carvalho

No sábado, dia 3, após ter sido promovido para o Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Oeiras, fui levar alguns de meus poucos pertences ao apartamento em que passarei a residir na velha capital. Reduzi ao mínimo possível esses objetos. Fomos em minha picape e em um pequeno caminhão-baú. Fui ajudado pelos meus irmãos César (Neném) e Antônio José, e mais pelo César Pinho, pela sua esposa Simone, sobrinha de Fátima, minha mulher, que também estava presente. Meu pai, Miguel Arcângelo, não obstante seus 87 anos de idade, igualmente ajudou com bravura, na medida do possível e do impossível.

Eu havia feito, dias antes, um desses desagradáveis exames invasivos, que podem ser considerados como uma pequena cirurgia. Dirigi a picape tanto na ida como na volta, o que totaliza mais de seiscentos quilômetros, além de ter feito esforço na remoção dos móveis. Como eu estava debilitado pelo referido exame, terminei ficando com muitas dores e mal-estar, de modo que fiquei como se estivesse doente, tanto no domingo, como na segunda-feira. Dessa forma, resolvi tomar posse na terça-feira, dia 6 de agosto, dentro do prazo de 30 dias, desde a promoção, a que tinha direito.

Fui acolhido pelo juiz da Vara Única da Comarca de Oeiras, Dr. Leandro Emídio, que teve a generosidade de me convidar para morar no apartamento em que ele reside. Tomei posse administrativo-burocrática na forma de praxe. Assinei o termo lavrado por Benedito Carneiro, diretor de secretaria do Juizado. Revi o promotor de Justiça Carlos Rubem, que também designo como promotor de cultura, que conheço faz mais de duas décadas, através das diversas ocasiões em que participei de eventos literários na velha capital. Anunciou-me ele o lançamento de um livro com poemas de seu tio, o saudoso poeta Gerson Campos, cuja solenidade acontecerá no dia dia 13 de setembro, sexta-feira, à noite.

Presentes os funcionários do Juizado Especial Cível e Criminal, após a assinatura do termo de posse, resolvi dizer umas breves palavras. Falei que éramos servidores públicos, e que dessa maneira éramos servos, e tínhamos o dever de bem servir aos jurisdicionados. Lembrei-lhes que, parafraseando Jesus, o maior dos servidores públicos era o que mais e melhor servisse.

Proclamei que me considerava um quase oeirense, pois era membro correspondente do Instituto Histórico de Oeiras, do qual, para elevada honra minha, recebera a Medalha do Mérito Visconde da Parnaíba, que me fora outorgada na gestão do presidente Dagoberto Carvalho Júnior, e me fora entregue no início da administração de seu sucessor, Antônio Reinaldo Soares Filho. Há longos anos sou amigo de ambos. Tive a satisfação de prefaciar a sexta edição do esmerado livro Passeio a Oeiras, da autoria de Dagoberto, sobre quem já havia escrito alguns textos de crítica literária.

Disse-lhes ainda que havia escrito vários textos sobre Oeiras e oeirenses. Primeiro, escrevi Noturno de Oeiras, que foi publicado em formato de álbum, com ilustrações de Francisco Leandro. Posteriormente, por simpática “cobrança” do advogado Talver Mendes de Carvalho, compus o Noturno do Cemitério Velho de Oeiras. Ao longo de minha já alongada ligação afetiva e sentimental à Terra Mater, escrevi vários textos em prosa, sobretudo crônicas, crítica literária e discursos, em que abordo assuntos e escritores oeirenses.

Lançamento do livro Noturno de Oeiras e outras evocações, em solenidade promovida pelo IBENS
Enfeixei esses trabalhos no livro Noturno de Oeiras e outras evocações. Lancei-o em memorável e engalanada noite velhacapiana, sob os auspícios do Instituto Barros de Ensino, em que houve a apresentação de magníficos números artísticos, com meus versos sendo cantados ou interpretados por alunos do educandário. Como se tudo isso não fosse o bastante, o Dr. Moisés Reis, com muito talento, engenho e arte, fez uma brilhante apresentação dessa obra.

Na minha primeira semana funcional na Velha Mocha, fui conhecer a Galeria do Divino. Esse espaço cultural é mantido graças à abnegação e esforço do poeta e escritor Olavo Braz Barbosa Nunes Filho, que adquiriu a casa e as dezenas de obras artísticas, que nela são expostas. Nota-se que o espaço é bem cuidado, e se mantém limpo e bem organizado. As obras são etiquetadas com fichas técnicas, que fornecem dados sobre a obra e seu autor. Entre outros objetos, são expostos talhas, esculturas e oratórios, alguns tendo como suporte velhas bilheiras. Não é supérfluo esclarecer que Olavo Braz Nunes fez tudo com o seu próprio dinheiro, sem a ajuda de órgãos públicos, que quase sempre nada fazem e nem ajudam os que fazem.

No espaço reservado aos “Poetas Anjos e Anjos Poetas”, vi placas de vidro com belos poemas sobre Oeiras ou escritos por oeirenses. Encontrei poemas de Expedito Rêgo, Dagoberto Carvalho Júnior, Gerson Campos, Nogueira Tapety, Ribamar Matos, O. G. Rêgo de Carvalho, Vidal de Freitas, Balduíno Barbosa de Deus, Rogério Newton, Gutemberg Soares, Cassi Neiva, Stefano Ferreira, Gutemberg Rocha, Júnior Mariano, Conceição Neiva, Vivaldo Simão, Teresa Mendes de Carvalho, Paula Nataniele Nunes, Cyntia Osório, Edilberto Vila Nova e Olavo Nunes.


Sobre muitos desses poetas já tive oportunidade de emitir comentários. Para gáudio meu, conforme Dagoberto já estampara em crônica, ali estava também o meu Noturno de Oeiras. E tudo isso, repito, graças ao esforço e aos metais do mecenas e divulgador cultural Olavo Braz Nunes.  

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O CÍRCULO SE FECHA


O CÍRCULO SE FECHA

Elmar Carvalho

O CÍRCULO SE FECHA

O infinitamente grande
tende ao tudo.
O infinitamente pequeno
tende ao nada.
Estes dois extremos se tocam.
Em Deus. 

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Política: paixão? patifaria?


Fonseca Neto

Tempos interessantes para revisitarmos estes versos duros e instrutivos do poeta alemão Bertold Brecht: 

O pior analfabeto é o analfabeto político. 
Ele não ouve, não fala, 
nem participa dos acontecimentos políticos. 
Ele não sabe que o custo de vida, 
o preço do feijão, do peixe, 
da farinha, do aluguel, 
do sapato e dos remédios, 
dependem das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro 
que se orgulha e estufa o peito 
dizendo que odeia política. 
Não sabe o imbecil que, 
da sua ignorância política, 
nasce a prostituta, o menor abandonado, 
e o pior de todos os bandidos, 
que é o político vigarista, 
pilantra,corrupto 
e lacaio dos exploradores do povo”.

Esse doce libelo de Brecht, vem junto com este outro pensamento famoso dele, em “Vida de Galileu”: "Aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso."
No rescaldo das manifestações de rua e ainda lendo através do embaçamento da própria fumaça que geram, já se pode dizer que elas traduzem um repúdio às práticas políticas medianamente em curso no Brasil. Com a novidade, muito significativa, de que a juventude não considera mais “políticos” somente os carreiristas “profissionais” conhecidos; outros atores já são também reconhecidos como “políticos” – e por que manifestantes estariam quebrando também microfones e emissoras?Tanto isso é verdadeiro, que esses “políticos”,ligeirões, defendendo-se, agiram e já faturam algumas vitórias no abafamento das vozes e intenções manifestas. 
Atente-se para o esforço de tais “políticos” tentando fazer com que o grande público acredite que não tem nada a ver com políticaas reivindicações sobre transportes nas cidades caóticas, serviços de educação e saúde praticados pela esfera estatal e a corrupção de cabo a rabo na sociedade, entre outras questões.
Ora, no conceito mais amplo, os humanos que se organizam para viver sobre a Terra fazem política o tempo todo. A atividade política é inerente à vida social e ainda não se descobriu um jeito de viver sem política. Até o papa, anteontem, no RJ, clamou pela reabilitação da Política.São, pois, de má fé,“criminosos”, os que sabem que política é essencial e tentam enganar (e enganam mesmo) a maioria do povo sobre o assunto. 
É o que está acontecendo neste momento: quando “políticos” perceberam que as manifestações radicalizavam-se contra eles, uniram-se (há exceções), para dar um jeito de retirar os manifestantes das ruas e simularam fazer o que nunca quiseram fazer antes. Isto é, agiram com relação à rua como se a ela tivessem ido os “idiotas” dos analfabetos políticos brechtanos – e, no contexto, não o seriam, não?
Veja-se a mediada das coisas: das ruas protestando aos “políticos” unindo-se para blefar contra os próprios manifestantes, fez–se o percurso que vai das paixões pela política à patifaria de “políticos”. 
Um grande exemplo das manipulações em curso está na chamada “reforma política” e começa pela ideia de que, nem manifestantes e nem a própria sociedade estariam interessados que ela venha a ocorrer, usando cinicamente o argumento de que “o povo quer é educação, saúde etc.” e não mudanças na forma de “fazer a política”. 
O maior flagelo da democracia – experiência Brasil – é esse déficit de compreensão sobre o processo político e muita gente idiotamente repudiando a política, a pretexto de não fazê-la. 
Por tudo isso, essas manifestações de rua, atos políticos com sinais de desejável radicalidade, o primeiro e eficaz efeito que produziram foi contra elas próprias, pois tiveram roubado o encanto radical no nascedouro. Como? Quandoforam prontamente enquadradas e controladas pela esperteza da patifaria “política”.
Desejável que a constatação dessa esperteza cínica, politize no sentido maior da expressão de Brecht, e evidenciea requalificação da atividade política como tarefa para as dignas paixões e não campo de danação dos patifes contumazes.  

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Afrânio Coutinho e as mudanças na crítica literária, na história literária e no ensino de literatura no Brasil


Cunha e Silva Filho

 Ao concluir a leitura de Correntes cruzadas (Rio de Janeiro:  Editora A Noite, 1953,  383 p.), fico a  pensar  em como a  ação dinâmica de um intelectual determinado tem  como  consequência  mudanças efetivas, se não imediatas,  mudanças  a  médio e longo  prazo.
Obra  polêmica,  às vezes  com  traços   de paixão  exagerada  pelo desfecho  de suas  aspirações e planos, não deixa   de  constituir um panorama, como  era do  feitio do crítico Afrânio Coutinho(1911-2000), do que o maior estudioso do Barroco entre nós   pôde escrever sobre o que  presenciara na vida  literária  brasileira,  sobretudo no domínio da crítica literária,  da historiografia  literária e no  ensino de literatura brasileira e de Literatura em geral.
Personalidade  polêmica, por vezes contraditória, mas sempre  corajosa,  meteu o  dedo na ferida  do que  via no Brasil  como  grandes mazelas e atrasos culturais que vigoravam  nos anos  1948 e 1953, que são os  intervalos de tempo  compreendidos  na  reunião  de  alguns  textos  recolhidos  de sua  coluna  dominical  "Correntes cruzadas" no Diário  de Notícias do Rio de Janeiro. Esclarece Coutinho, na sua  longa  introdução ao volume,  que   neste havia  incluído  outros textos  saídos  em diferentes  épocas e publicações.   Percebe-se nitidamente,  no textos  compilados e selecionados sem rigor    cronológico, que  o  estudioso  conhecido como  o introdutor do new criticism  no  país, ao ter saído  da Bahia,  estava decidido a abrir  caminhos   na vida  literária   carioca, sobretudo após a sua  permanência  nos Estados Unidos de 1942 a1947, período em que lá trabalhou como  redator-secretário do Reader’s Digest (Seleções) e, como  estava nos seus planos   de intelectual, aproveitou   para realizar  cursos  na Universidade de Colúmbia  e em outras instituições  universitárias americanas.Essa temporada nos Estados Unidos  foi-lhe  utilíssima  à formação   literária nas áreas da crítica, na teoria literária, na historiografia literária, na literatura comparada e bem assim  na atualização   das áreas do ensino de letras,  história e filosofia, tendo sido  naquele período  aluno de Jacques Maritain (do qual  traduziu duas obras) e de eminentes  professores universitários,  grandes scholars  tais como  René Wellek,  Austin Warrren,  Roman Iakobson entre outros   grandes estudiosos  de renome universal   da literatura   e da linguística.   
Foi com  essa  formação  sólida  e  renovada que, de volta ao  país,   deu continuidade aos seus  planos  e ambições  intelectuais. O então jovem   intelectual  baiano  não  sossegou  nas suas pretensões  de  galgar  posições  de  relevo  na história  da crítica literária  brasileira  e na  transformação radical   de novos hábitos  de estudos  da sua área, tendo como  meta tanto o ensino  médio quanto sobretudo  o  universitário, onde  firmou  seu  nome   e conseguiu  respeitabilidade  de seus  pares. Mas, tudo   conquistado a duras  penas,  arrostando   os obstáculos do meio  literário e cultural  do Rio de Janeiro,  já com as suas lideranças e grupos dominantes,  ou, conforme  Coutinho  gostava de  assinalar,  com as  suas ”igrejinhas, “, suas “futricas”,  seus parti-pris,  suas lideranças  no jornal,  no ensino, na produção editorial, na vida literária em geral.
Afeito ao  desenvolvimento   alcançado nos meios  culturais  americanos,  Coutinho estava  pronto  para  aqui desbravar  horizontes novos  nos campos da crítica literária através da divulgação e doutrinação  do new cirtricism, ou como ele, preferia  rotular,  “nova crítica”, que,  de resto,  não era   só estritamente  a corrente  de procedência anglo-americana, mas   na verdade  seria um movimento  de ruptura  de métodos  e approaches que,  em diversas partes do mundo   desenvolvido,   estava  se consolidando  em novos   princípios teóricos  lastreados  pelas  descobertas  dos estudos   da literatura  com fundamentos científicos   que  fariam a passagem   da corrente crítica   impressionista para  a crítica formalista,  ou  estilística, ou  poética,  valorizado  a obra  nos seus  componentes     estéticos, intrínsecos,  i.e., dando  valor  capital à autonomia   do aspecto literário, da análise  e interpretação da obra literária,  alterações  estas que vieram  colocar   o historicismo,  o determinismo,   de orientação  taineana, ou anatoleana, ou  saintbeuveana,  em segundo plano.  O que se desejava, com  a nova  visão  teórica da Literatura   era   distinguir na obra   as características   formais e   específicas  da  linguagem,  sua literariedade,    seus artifícios   e estratégias  de composição, sua retórica,     que a tornassem um produto  da técnica, um artefato,   e do talento   individual, de preparo  e estudos sérios, sua ausência de amadorismo e de aventureirismo  intelectual  no lidar com  as questões  de Literatura,  sem laivos  subjetivistas de fundo romântico,   sem mais a  ideia de “gênio criador”  tão  forte no século  19. 
Em segundo plano,   ficariam   os  elementos extrínsecos,   como a biografia do autor,  a sua  situação social, a sua época,  o seu  espaço de atuação. Quer dizer,  os estudos literários  deslocaram   o eixo de interesse  do autor  para a obra em si.  Esta é que  importava  para   o entendimento  do que   fosse  a obra  literária,  nos seus  diversos gêneros.  São esta  questões  de que  se ocupa Coutinho   em grande parte  de seus artigos  em Correntes cruzadas.
Evidente  que  um  crítico  ainda  desconhecido nos meios  intelectuais do Rio de Janeiro e surgindo com   um instrumental   de renovação   do establishment  literário  que encontrava  diante dele,  não  viu  facilidade  de nele  penetrar com as suas novidades  trazidas  dos centros americanos  de  Letras.
Encontraria  resistências,  desconfianças  nos hábitos  já enraizados  de  cultura  predominantemente francesa, que tinha no seu bojo  a prática dominante do impressionismo crítico com seus reflexos no ensino médio e superior, no jornal através da crítica de rodapé com  seus  nomes  estabelecidos, alguns dos quais desfrutando  de  real  reconhecimento como foi  o exemplo do  notável crítico   Álvaro Lins  acompanhando, nos rodapés do Correio da Manhã,   a segunda fase da produção  do Modernismo, tanto na  ficção, quanto na poesia e no teatro. Ao lado de Álvaro Lins,   se achavam outros   ilustres   críticos como Agripino Grieco,   Tristão de Athayde, Sérgio Buarque de Holanda, Temístccles  Linhares,  Olívio de Montenegro,  Wilson Martins e,  mais tarde,   Antonio Candido, entre outros. Cada um desses seguia  sua própria   orientação crítica,  ora de   cunho  impressionista  e humanístico,  ora  expressionista (Trsitão de Athayde),  ora  de abordagem   sociológica, mas  já  se  servindo  de princípios   renovadores  teóricos  visando a componentes   estéticos  no julgamento   do fenômeno literário.  Seria,  um pouco mais adiante,  o caso de Antonio Candido e outros. Ou seja,  havia  críticos e críticos.
Entretanto,  Coutinho vinha para  realizar   rupturas  radicais,  tanto  no domínio da crítica,    da teoria  literária,  da historiografia  literária quanto da pedagogia  da literatura,  que  deveriam    oxigenar-se   dos seus  sólidos  conhecimentos  assimilados nos Estados Unidos e implantados  no ensino médio (Colégio Pedro II) e na universidade. Primeiro, em 1950,  no Instituto  La Fayette da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade do Estado da Guanabara, hoje Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), na qual viu triunfante o seu  projeto de criação  da disciplina  Teoria Literária, depois,  a  cátedra de literatura brasileira  da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Correntes cruzadas, sua coluna mantida no Diário de Notícias,  segundo  já assinalei,   se torna, assim,  o seu  espaço de combate   sem trégua  contra   a crítica impressionista, não poupando  nem seus maiores e mais    acatados  cultores,  tendo à frente  o crítico Álvaro Lins com o qual   encetou  uma polêmica  declarada  com seus artigos  naquela  coluna.
Afrânio Coutinho, no volume que estou comentando,  tem páginas  em que  se pode ver  bem a quem se destinavam  os seus ataques,  que,  por terem  o sinete  da polêmica  desabrida,  extrapolam  em suas invectivas muitas vezes  de forma injusta 
O livro, porém,   dedica  a maior parte de seus   artigos  a difundir  suas ideias  teóricas sobre crítica, teoria literária,   valorização  dos estudos de  literatura comparada, parte do volume que  na  verdade  engrandece   o todo  dos  seus textos e onde  se nota   a sua grande  contribuição  para  a divulgação  de todas as questões fundamentais   atinentes  aos estudos literários.
A melhor  parte dessa obra de Coutinho é essa contribuição  que dá aos estudos literários   no país, estudos  em bases renovadas que, até hoje,  dão frutos mesmo  se considerando  todos os  avanços  por que  passaram  os  estudos  de Literatura entre nós, com   novas correntes do pensamento crítico, colocando as nossas universidade   em nível   de igualdade, por assim dizer,   quanto  a   orientações   teóricas  e sua produção  na crítica,  no  ensaio,  nas novas disciplinas  que  deram seus  primeiros   sinais   de vitalidade   na época  de  Coutinho, como a ciência da literatura,  a teoria  literária,  a literatura comparada, a Poética,  os  estudos   de literaturas modernas e  antigas. O fermento dado  por Coutinho   teve frutos, , amadureceu  e  cresceu .
Em Correntes cruzadas,   há passagens  notáveis em que o critico sai  do estritamente  literário e  envereda  pela crítica  de natureza social, e política,   quando   descreve,  com  grande sensibilidade,   a vida capitalista  americana, com seus  erros e acerto. .A obra traz artigos, comentários,  fragmentos  de citações de grandes  autores,  sobretudo   ingleses e americanos, o que demonstra   a sua   constante  preocupação  por   se mostrar  atualizado,  ao corrente  do que se produzia então  nos Estados Unidos, na Europa. Os fragmentos de textos  são  lições indiretas   de  sua  finalidade  precípua,   pondo  o nosso país  a par  do que  de melhor  se  produzia  nos países   adiantados do mundo,  nos dominios  da Literatura e do pensamento  crítico  universal.
Por vezes,  se nota alguma   redundância  na focalização   de temas  e ideias no campo  da crítica  e da história literária Mas, este defeito  é ofuscado  pelas  páginas   originais e sensíveis  que dedica  à Literatura, como aquelas páginas  que,  com descortino e argúcia,   fala  da importância da descentralização  da vida  literária  e cultural   brasileira, ou daquele  artigo em que  mostra  todo o seu   respeito  e admiração  pela literatura    produzida na Bahia,  ressaltando suas qualidades  e sua  força  lírica, seus  intelectuais, sua produção   de peso, suas grandes figuras de nível  nacional.
Em Correntes cruzadas,  o leitor  está sempre tomando  lições de Literatura,   ampliando  seus repertório e vendo  o quanto um crítico sério   consegue   imbuir-se  de invejável   capacidade  de leitura de autores, temas e obras sem fronteiras  de nacionalidades.
Não poderia   afirmar que Coutinho, em seus  artigos desta obra,  tenha  acertado sempre nos seus  juízos e julgamentos,   como  no excessivo   plano superior em que  coloca  Sílvio  Romero e, em menor  posição,  José Veríssimo, sobretudo tendo em vista  que  o último foi  sempre  tido  como  o crítico  que maior  relevância  deu  ao elemento   estético na  análise de obras, ao passo que  o primeiro,  inegavelmente um  primoroso  historiador literário e de grande capacidade  produtiva,  trabalhou a literatura    mais em bases  sociológicas do que  estéticas.
Contudo,  o ponto alto   de Correntes Cruzadas é a  sua  constante  afirmação   de que  a leitura   dos  princípios  aristotélicos  que  estão  consubstanciados  na Poética de Aristóteles é o maior contributo  do filósofo  grego  para  rastrear as raízes  primordiais   do  elemento  estético-literário nos estudos  da crítica literária  e da   teoria literária  de todos os tempos   como  foram  também determinantes   ao desenvolvimento da crítica  literária moderna  a obra Biographia Literaria (1717)  de Coleridge,  a  Mimesis de Auebach, os ensaios de T.S.Elliot.
Definindo-se como crítico,  Coutinho   rebatia  os que lhe negavam   essa condição,  pois para  ele, a crítica literária não somente  se apresentava  nos rodapés  da imprensa, ou mesmo na militância  de julgamentos  de obras, mas no  papel que  o teórico, o professor  universitário exercem na cátedra,  nos livros, nos congressos,  e  em  revistas.  Damesma sorte,  o historiador  literário  exerce o  ato crítico no seu próprio  papel  de   estudar  as obras,   os gêneros literários  e de lhes dar  interpretação  fundada em critérios   de avaliação  e valorização  das obras, dos períodos literários,   dos  temas  gerais  ou específicos de crítica e teoria literária, de apresentação  de grandes  panoramas enfocando  obras,  gêneros e autores.
Um último  aspecto  focalizado  no seu livro  diz respeito  à orientação   do ensino  de literatura  brasileira,  de sua pedagogia,  de seus critérios  modernos  e  de cunho  científico,  mobilizando    todos  os instrumentos  de trabalho de exegese como  a valorização  da bibliografia, a abordagem crítica  nos  trabalhos   de monografias e teses,  nas suas diferenças  e finalidade sem os exageros   de erudição e desnecessárias   minúcias  de notas de pé de página, em detrimento,  pois,   do desenvolvimento  e originalidade  do estudo   que se faz.
Correntes Cruzadas ainda  apresenta  uma  valiosa   bibliografia de obras  de vulto  nos campos da  crítica literária,  da teoria literária, da história literária,  de literatura comparada, obras   gerais,  antologias de textos críticos,  revistas, história da crítica, antologias e coleções de textos críticos cobrindo  literaturas das principais línguas modernas, do passado até a  produção   da década  de 50 do século  20..
Para o pesquisador  interessado nas questões  polêmicas  que  Coutinho  se  viu envolvido intensamente, o volume   acrescenta,  em forma de apêndice, “Doze perguntas a Afrânio Coutinho" a propósito  de sua Tese  Aspectos da literatura barroca e  do  concurso  para a cátedra  de Literatura do Colégio Pedro II. As perguntas fazem parte  de uma sequência   de depoimentos  que professores  deram ao Tribuna  das Letras (22-12 de dezembro de 1951), tendo sido  primeiro entrevistados  o crítico Álvaro  Lins e o filólogo Celso Cunha. As resposta  de Coutinho valem como  síntese enriquecedora    de suas preocupações de analista literário  e docente.
Finalmente,  o volume   insere  cinco páginas  extraída, em forma de entrevista,  do Jornal de Letras (fevereiro de  1951) concernentes  à repercussão que teve um artigo de Coutinho  acerca  da vida literária  brasileira publicado na seção   “Correntes Cruzadas,”    segundo  já referi, do  Suplemento  literário do Diário de Notícias do Rio de Janeiro.O artigo de Coutinho   causou “celeuma” e reações “veementes” da parte de  muitos escritores.
Coutinho  reafirmou  a sua posição  sustentada no artigo sobre  os males  de nossa vida literária  naquela  época, sobre  comportamentos éticos  de escritores e sobre  a situação da crítica e da teoria  literária para as quais   reivindicava  novos  formas  de abordagem  do fenômeno  literário, ou seja, substituir  o impressionismo  crítico e a orientação  teórica  em bases  estéticas, objetivas, científicas, visando a dar  ênfase  aos aspectos intrínsecos  da obra literária,  na valorização  desta  como  fundamento  para  a análise  e julgamento  crítico, na defesa  da autonomia  do fenômeno   estético, no tratamento  da linguagem literária,  na autotelicidade de base aristotélica do texto, refugando,  assim,   a continuidade  do  impressionismo  de viés   romântico,  que valorizava a personalidade do crítico e  o primado  do autor.
O depoimento  de Coutinho, embora  muitas vezes   contundente,  se afirma como um  comovente   gesto de  amor  aos estudos  literários,  de   exercer  a crítica, a teoria literária, a história literária como   um “destino,”  uma  forma  voluntária de opção e de  crença  nos valores   estéticos  que  a  Literatura   propicia  àqueles  que  por ela  se decidiram   a dedicar  sua vida  profissional  por vocação  e sem   nenhum  arrependimento ou possibilidade  por não a  ter  substituído  por  atividades mais  rendosas,  econômica  e socialmente. Para facilitar  o pesquisador,  o volume finaliza com um  índice onomástico.