sábado, 30 de novembro de 2013

SAINDO DO GABINETE


José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com

Durante longo tempo, o termo Gerente dominou o mundo corporativo e empresarial. Hoje, o Gestor é quem se destaca, em vez do Gerente. Qual a diferença?

Comprei um carro, precisei regularizá-lo no Detran da avenida João XXIII. Burocracia, aporrinhação, desculpas: “sistema fora do ar”, “venha mais tarde”, “fotocópias”, “aguarde uma das nossas atendentes chamá-lo”, comuns na administração pública. Aborrecido, eu circulava pelo salão de atendimento, para espantar o cochilo da espera. Topava com pessoas, algumas angustiadas, e o desabafo me vinha à pele. Senhor grisalho também circulava pelo salão, observava a reação dos clientes, ouvia as reclamações com bálsamo da cortesia: “Aborrecido por que, moço? Em que posso servir você?” Curioso, indaguei-lhe: “Quem é você?” Prontamente devolveu: “Meu nome é Raimundo Filho, coordeno este setor, dê-me a papelada, siga-me até a minha sala”. Surpreendeu-me tanta gentileza em setor público do Estado.

Raimundo Filho não esquenta poltrona de seu gabinete. Costuma circular, observar o desempenho dos funcionários ou alguma insatisfação de cliente. Em se tratando de órgão público, uma raridade gerencial.

No universo das organizações corporativas, gerente é o que administra e ordena, enquanto o gestor, conforme os objetivos da empresa, cria um ambiente com harmonia sinfônica. O administrador encastela-se em gabinete e só atende a seletas pessoas, quase sempre estressado, tentando delegar delicadas funções de confiança a terceiros. Ao contrário do gerente, o gestor desce do trono e serve. Nem gerente isolado nem gestor. Quando as funções se unificam, os chefes seduzem e dividem o pão das alegrias e responsabilidades.

A função do gestor evoca a atitude do Mestre, levantando-se da mesa, tomando a toalha e bacia com água, servindo os apóstolos. Ritinha, professora e diretora da antiga Escola Técnica Federal do Piauí, em visita à sala dos professores, durante o recreio, observou alguns papéis jogados ao chão. A diretora debruçou-se, recolheu-os, lançou-os na lixeira. Nenhum sermão; o gesto seduziu os sujões. Em cerimônia do cinquentenário do Conselho Estadual de Educação, Átila Lira, deputado federal e secretário de Educação, presidia a mesa, mas se levantava a todo instante, descia do palco, dirigia-se à plateia, distribuía apertos de mão, um estilo peculiar do secretário, mesmo fora de campanha eleitoral.

O gerente age, habitualmente, de forma centralizadora. O gestor, porém, fica no meio-termo, tangenciando: nem gabinete nem salão. No mundo corporativo, sempre deve funcionar o meio-termo entre o gerente e o gestor. O adágio popular vele nessas horas: “Quem engorda o gado é o olho do dono.” Uma esperta diretora da minha escola convencia-me a permanecer na diretoria e evitar contatos com estudantes e professores: “Não pega bem a um empresário como você.” E eu me apavonava, ingênuo. Quando lhe percebi tamanho zelo, já tinha me engabelado e me usurpado a chave do cofre. Papa Francisco encanta o mundo pela simplicidade franciscana, de descer do trono da autoridade para abraçar o pastor evangélico, criança, gente anônima. Nada de gentilezas hipócritas, interesses eleitoreiros.


Entre virtudes, defeitos e riscos, o papel do gestor cai melhor que o de gerente. Raimundo Filho tinha razão. 

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O. G. REGO DE CARVALHO: LETRA E MÚSICA


Francisco Miguel de Moura
Escritor, membro da Academia Piauiense de Letras

Orlando Geraldo Rego de Carvalho morreu na madrugada de 9 de novembro deste 2013. O escritor O. G. Rego de Carvalho, como assinava, vai demorar muito. Só não será eterno porque não há eternidade nesta vida. Como escreveu São Francisco de Assis, “é morrendo que se vive para a vida eterna”. O. G. Rego de Carvalho, sem ser poeta no sentido de versejador, deixou-nos a bela poesia de seus romances e contos, cada vez mais sofridos e tão musicais porque vindos do fundo da alma. Nasceu em Oeiras, aos 25 de janeiro de 1930, em família tradicional da antiga capital do Piauí, cuja cidade, nos antanhos, tinha o costume de construir cada casa com um quarto já reservado aos loucos. Porém continua e continuará sendo a cidade também dos músicos e letrados, cidade da inteligência e da tradição, a cuja tradição O. G. Rego pertence. E como não é da cidade que vamos tratar, voltemos esta homenagem a nossa amizade, nossa admiração. Conhecia-o de leitura, antes de aqui chegar. Era outubro de 1964. Ele viera do Rio de Janeiro, onde exercia relevante função na Direção Geral do Banco do Brasil. E eu aqui chegava, vindo da Bahia. Alguns dias ou semanas depois houve o nosso encontro, já então colegas, no Banco do Brasil. Restabelecida sua saúde, a qual tinha sido abalada pelo o esforço dispendido para terminar “Rio subterrâneo”“minha obra prima”, dizia, já pensava escrever o romance “A maçã partida”. A partir dali, já trabalhando no Banco do Brasil, na Agência de Teresina, onde permanecemos até a aposentadoria, convivemos estes anos todos, na melhor harmonia, não obstante o árduo trabalho daquela empresa. E eu bebia de sua experiência de vida e arte, enfim de sua sábia inteligência, a quem sou grato, muito grato. Tenho orgulho de chamá-lo de meu colega, amigo e mestre.
O. G. Rego de Carvalho nunca interferiu no trabalho que sabia eu estar fazendo na Faculdade Católica de Filosofia do Piauí – a famosa FAFI, ovo e estrela na Universidade que se formava. Depois de pronto o meu “Linguagem e comunicação em O. G. Rego de Carvalho” foi que o mostrei e ele demostrou alegria, satisfação e surpresa. Ambos nos comportamos, também como se previa, com a liberdade dos comunicadores, seja na imprensa, na literatura, na crítica, no romance, na poesia.
Coincidentemente fomos morar de frente um para o outro. Casas construídas sem combinação prévia, cujas habitações ficavam (e ficam, pois ainda estão de pé) à Rua 13 de Maio, zona Centro-Norte. Íamos para o trabalho caminhando... Era costume parar um pouco na Livraria DILERTEC, ou do Nobre, onde batíamos um papo gostoso e descontraído: chegando, entrando, comprando ou apenas lendo e discutindo. As nossas casas foram construídas ao mesmo tempo. E à tardinha ou nos dias santos e feriados nos freqüentávamos para um “papinho” sem compromisso ou para pedir uma sugestão – opinião que, em seu caso, nem sempre valia. Mais valia a de antes, recebida de sua mãezinha. Já no meu caso era diferente, um discípulo sempre é influenciado por seu mestre. O gosto da conversa era ótimo e consolidava nossa amizade fora do local de trabalho. A coisa lá era outra: quando ele ficava mais agitado, e não eram poucas as vezes, gostava de caminhar pelo ambiente e falar com os colegas de outras secções. Se um deles estava muito atarefado, sem tempo de dar-lhe atenção, O. G. quebrava o ritmo do serviço com esta observação:
- Colega, você está nervoso, acalme seus nervos!
- E o que posso fazer com tanto serviço e prazo para entregar “ontem”?
- Tome haloperidol! - recomendava.
Era um dos medicamentos de seu uso no momento, passado pelo médico, com quem ele discutia o problema psicoterápico com uma sapiência que o esculápio ficava abismado. É isto mesmo. O escritor O. G. Rego estudou profundamente a psicose chamada de esquizofrenia, tanto que apenas na primeira crise a família teve que o levar para o tratamento hospitalar especializado. Tão consciente ficou do seu problema que, na segunda crise, ele mesmo foi e, por conta própria, internou-se na casa de saúde para continuar o tratamento.
Lembro que ele me conscientizava dos meus males: ansiosidade, depressão... Em sua sabedoria e bondade, devia segredar a si mesmo: “é assim que posso melhor ajudar o próximo”. Religioso, mas não freqüente à igreja católica, salvo para levar a mãezinha já bastante avançada na idade. Acreditava em Deus e nos Evangelhos. Sobre estes, cito aqui não ipsis literis, pois não anotei, mas o conteúdo real do que me disse:
- “Faça um leitura completa dos quatro evangelhos, Chico, e não encontrará nenhuma contradição. É o suficiente para acreditarmos que são verdadeiros”.

Deixou mulher e filho, D. Divaneide Carvalho e Orlandinho, nos seus dois ou três anos idade (ainda tenho que me certificar). Ela, professora, tradutora e poeta. O amor entre eles começa pela literatura: Um trabalho para seus alunos, no colégio, sobre a pessoa e obra de O. G. Rego de Carvalho. Assim, teve que entrevistá-lo, e aí se apaixonou. Amor à primeira vista, que durou para sempre. É ela a guadiã de sua memória e de suas obras, o que não é pouco, tendo em vista o que deixou como extraordinário escritor de pequena produção (“Ulisses entre o amor e a morte”, “Somos todos inocentes”, “Rio subterrâneo, a novela “Amarga solidão” e mais diversos contos espalhados por jornais, revistas e antologias). Foram poucos os livros que publicou, mas todos de grande valia, pelo estilo musical (poesia e ritmo), sem se perder na abordagem da alma de seres perdidos pela dor, angústia e solidão. Sua marca como profissional exemplar, homem de caráter e sabedoria também não pode ser negada: será também contada numa biografia que pode estar começando agora. 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Artemisa Odila


Fonseca Neto

Pousou em Teresina por estes dias a bissauguineense Artemisa Odila Candé Monteiro. Veio participar de evento na Ufpi e lançar um livro: “África e Brasil, diálogos possíveis”. 
Quem é Odila? Uma universitária da África ocidental que morou em Teresina mais de quatro anos, estudando na Ufpi, num programa de cooperação internacional entre o governo de seu país – Guiné-Bissau – e o do Brasil. Graduou-se em Ciências Sociais, prosseguindo com estudos pós-graduados na Bahia, cidade de Salvador, onde conclui o doutorado. O livro que lançou é sua Dissertação de Mestrado, na Ufba, examinando com chaves etnográficas e de campos afins, as tessituras dialogais possíveis enformadas na “estetização e mitificação de África nas estratégias identitárias e inserção política do movimento negro”. 
Quando aqui chegou, nas primeiras leituras do cenário descortinado, logo percebeu ela a movimentação de grupos de negros com algum sentido de organização. Estranhou o modo como evocavam a mamma África, em particular o jeito de se vestir, enfeitar, dançar, trançar cabelos, isto é, ritualizar a ancestralidade africana. Odila, nativa e cidadã de lá, não reconheceu, de pronto, aqueles modos, tal o que seria o sentido genuíno do ser afro. E não deu outra: fez disso uma questão de pesquisa e, com as ferramentas do método, imergiu na experiência do Grupo Afrocultural Coisa de Nêgo, para destripá-lo, decifrar sua mítica iluminando as raízes piauienses e brasileiras da africanidade e entender as marcas gravadas na condição vivente da fração da humanidade que a diáspora do escravismo mercantil legou ao tempo presente.
O livro labora-narra a referida estetização do corpo, ou “africanização das aparências”, manifestada na ação do referido grupo e, além dele, verificável também na Bahia e muitos outros lugares. Manifestação que se inscreve como herança de tradições africanas trazidas à época do tráfico transoceânico e que sugerem a existência de uma só África projetada culturalmente para este lado do Atlântico. Odila desvenda a processualidade dessa transposição de culturas e seu caldeamento local em séculos de afro e lusas amerindizações, em geral doídas, explodindo em linguagens de resistência, tanto no cativeiro de ontem, quanto nas abjetas segregações de hoje. E o faz, entre os citados instrumentos/ferramentas, utilizando pertinentes fontes historiográficas e dos mananciais das Ciências Socias.
Entre outras referências, invoca Eric Hobsbawn (p. 131) e sua formulação sobre a “invenção das tradições”, para situar a recepção dos sentidos da ancestralidade no contexto presente: “as novas tradições podiam ser prontamente enxertadas nas velhas: outras podiam ser inventadas com empréstimos fornecidos pelos depósitos bem supridos do ritual, simbolismo e princípios morais oficiais”. Disso, observa a autora, decorre que essa África evocada no movimento examinado, “não surgiu do vazio, mas sim de uma experiência resultante do movimento escravocrata, que foi enxertada nos fragmentos culturais africanos e incorporada por outros valores e sentidos de outras influências diaspóricas”. Ela não conheceu apenas o Coisa de Nêgo. 
Odila viveu e realizou seus estudos no Piauí na época da ascensão do PT ao governo estadual e não perdeu tempo em examinar a articulação da nova realidade com o movimento negro, em especial os significados da nomeação de mulheres negras para relevantes funções estatais, muito realçada a figura e o protagonismo de Sônia Terra à frente do órgão máximo das políticas públicas para a Cultura. Capta e discute a violência das manifestações racistas contra Terra. 
O livro é dedicado à sua Avó-Mamma Djenabú Baldé, Fula, e vem prefaciado por Dione Morais, da Ufpi, e apresentado por Rosário Gonçalves, da Ufba. Lembra Valcirana Maia. Publicado pela Editora Appris, Curitiba, Coleção Africanidades. 

(Quero parabenizar Artemisa Odila – nome mui belo –, a qual conheci e acompanhei, como diretor do CCHL, a trajetória na Ufpi, integrada a mais de uma dezena de estudantes vindos da África, em vários cursos de graduação. Aliás, deles se fez uma espécie de líder, inclusive nas horas de exasperação da cruel interface racista com brasileiros em Teresina e na própria Ufpi. Marcante sua presença no Núcleo de Pesquisas Ifaradá. Não é pouco uma guineense ter vindo estudar e aqui checar as rebrotações do mundo feitas das Áfricas aspergidas. Vitória dela e nossa). 

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Minha irmã


Edmar Oliveira

Quem me ver assim mal acabado, meio torto, empenado, sempre fracote não faz conta que fui um dos treze filhos de mãe que vingaram. Eu e meus sete irmãos somos dos fortes. Pelo menos os mais velhos, pois os mais novos já tiveram a ajuda da medicina da capital. Teve eu de um primeiro parto no sertão, às beiras do Parnaíba. Depois de mim, um perdido. Meu irmão e minha irmã mais velha, mas separada de mim por quatro anos. Depois vieram outros quatro que vingaram, entremeados de uns tantos perdidos ou abortados antes de serem anjos.

Mas depois de mim e o Edivaldo, minha irmã Eliane eu lembro bem lá nos tempos de Codó, no Maranhão. Uma menina magrinha, branquela, mas com uns cabelos alourados e cacheados que a transformavam em cópia, para os meninos da rua,  de uma estrela do cine São Luiz. Eu e meu irmão tínhamos o dever de protegê-la e nos orgulhávamos da tarefa. Fomos crescendo feito uma escadinha em cujos degraus ali no Maranhão chegou meu irmão Maioba. Edinha, a única de nós genuinamente maranhense, voltou muito pequena para Teresina, onde Moisés e Ana chegaram bem separados de nós no tempo.

Mas de todos, eu e minha irmã éramos os mais magros, os dois que herdaram os ossos fracos da família, mas não éramos assim tão doentes. Tínhamos a convicção que éramos parte dos que vingaram. Minha irmã nunca se queixou de nada. Começou a trabalhar cedo, casou e foram morar uns tempos no litoral, na Parnaíba. Eu vim embora pro sul maravilha. O nosso contato ficou por conta das férias e de nossos filhos que têm a mesma idade e conformação. E passamos algumas férias juntos unidos pelos filhos. 

Soube que ela teve uma tuberculose vencida como os fortes são capazes de fazer para manter a vida no sertão.

Depois soube da aventura que a família de minha irmã empreendeu num fusquinha, cortando o Brasil no cumprido, vindo fixar residência numa cidade do Rio Grande do Sul.

As notícias escassearam, ficamos meio distantes, embora eu tenha ido uma vez lá e ela tenha vido aqui certa feita. Mas hoje eu choro por mais contato nesta vida que é muito curta, mesmo para os fortes. E me arrependo de não ter tido mais tempo perto da minha irmã. Quando ela ficou doente agora fui visitá-la, encontrei-a em coma num hospital com os melhores padrões da medicina brasileira. Sei que ela está bem cuidada, mas temi pela gravidade do quadro. Naquele instante, na beira do seu leito de hospital, só consegui dizer – meio com raiva – que ela estava furando a fila. Tinha dois irmãos que deveriam morrer antes dela pela lei de chegada na terra. A minha dor foi muito grande. Era como se tivéssemos nos desgarrando para sempre...    

domingo, 24 de novembro de 2013

Seleta Piauiense - Zito Batista


O Carnaval

Zito Batista (1887 - 1926)

Põe a máscara e vai para a folia,
Na afetação de uns gestos singulares,
Esquecido dos íntimos pesares
Que te atormentam todo santo dia ...

Homem doente, perdido nesses mares
Tenebrosos da dúvida sombria,
Vê que há lá fora um frêmito de orgia,
Mesmo através das coisas mais vulgares!

Põe-te a cantar, desabaladamente!
Vai para a rua aos trambolhões, às tontas,
Como se enlouquecesse de repente ...

Agarra-te à alegria passageira:
Olha que o que te espera, ao fim de contas,
É o triste Carnaval da vida inteira ...     

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

República da Casa Grande


Fonseca Neto

Res privata principis.

A república aniversariou. E daí? Há 124 anos ela foi imposta e seus valores historicamente proclamados na luta de vários povos não se tornaram valores reais na formação social brasileira. 
Não é pantomima: a república no Brasil – sonho e luta de muitos brasileiros dignos – foi imposta num golpe militar contra um Império e um imperador desafeiçoados por uma aristocracia “ferida” e ressentida, entre mais, porque a monarquia aboliu formalmente o trabalho escravo. O modelo de implantação do “novo” regime comprometeu-lhe o conteúdo, e até hoje, em muitos sentidos, a república não passou de uma arquitetura político-institucional manejada ao serviço das facções oligárquicas que a governam, a despeito dos interesses da maioria da população. Claro, oligarquias com imensa capacidade de reciclagem: das oligarquias agrárias da “velha” república às oligarquias midiáticas de hoje.
A exemplo da separação de Portugal em 1822 (contra a mobilização por uma Independência real) e do golpe “conciliado” da coroação do menino Pedro II em 1840 (contra as insurreições sociais republicanas do tempo), a república foi imposta num conchavão dos donos do poder, em cúpulas, contra a possibilidade de algum triunfo associado a mobilização popular –que, de fato, não passava mesmo de tertúlia de setores sociais medianos.  
Já no dia seguinte ao 15 de novembro, um a um – e aos magotes – os monarquistas fechavam com o chefe militar que encabeçou o golpe. Sim, conceda-se: houve alguma dança de cadeiras, mas concepções e práticas das novas chefias eram, em todos os sentidos, estruturalmente as de sempre. Isto é: mentalidade escravista; política é coisa de letrados; terra para meia dúzia; os tributos ao proveito das iniciativas empresariais. Com efeito, tal sob a colonização predadora, e o Império da escravidão insistente, a república que viça neste pedaço de trópico é controlada a ferro e fogo pelo tacão da Casa Grande e seu jeito de mandar e ferir com a mão de capatazes.
Mas a república não separou Igreja e Estado? Não transformou províncias em “Estados”? Não trouxe a “eleição” do Imperador, isto é, do presidente da república – e também de governadores?
São fatos; cascas reluzentes de “modernidade” de corpos antiquados. Todavia, essa laicização do Estado não teve significado algum na vida de ninguém; o nome Estado para as províncias é uma vergonhosa macaqueação da Norte América; as eleições – bem, as eleições são o que todos nós conhecemos até hoje: um jogo de cartas marcadas, controlado, milimetricamente, pelo poder das sobreditas oligarquias que, de fato, o detêm em suas mãos, as quais não hesitam em sujar de sangue para manter tal poder, inteiro, em seu regaço.
Porque uma república que nasceu para negar o povo, a república do Brasil é um simulacro, e assim, um mero arranjo político com esse nome que não se deixa regar com a energia vital da participação popular real. Não deixa vitalizar as suas estruturas para saltos de justa grandeza na concertação humana maior. Como não se vitaliza, apodrece; podre, os cupins fazem a festa. Daqui provém a corrupção, esse câncer em metástase como que intratável.
Na república dos cupins (claro caro caetano), os “podres poderes” parasitam da raiz seivosa da planta dos pés às pontas secas e estilhaçadas dos cabelos da cabeça. Na república da corrupção, a res é privada.  
Na res privata, prevaricando bagrões, e bagrinhos, as obras do interesse coletivo param e as corporações ferem de morte o interesse social geral, se a res publica arremedar um rapapé de entrar em ação.
A propósito, tem um novo livro do jornalista Laurentino Gomes, muito lido, mas nele pouca gente deu fé – acho até que por cálculo –, de um capítulo em que cita denúncia de corrupção num quartel de Teresina, em 1886, comprometendo chefias políticas do Partido Conservador. Afirma ele que esse episódio ajudou a temperar o golpe de 15 de novembro de três anos depois. Desalentado, eu? Não. Não há repúblicos desalentados. Dou-me é o direito de não infirmar essa loa de lei igual para todos. 
Ah! Ia esquecendo: golpeado e detratado pela res privata em 64, pelo Congresso e pelo STF, Jango, em ossos, honrado, semana passada, voltou a Brasília.    

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

ROMPIMENTO


ROMPIMENTO

Elmar Carvalho

Dedo em riste,
muito feroz e muito triste,
o homem, grosso e imundo, falou:
Lembra-te, tu já lambeste meu cu!
A mulher, com gestos abstratos
feitos do mais singelo recato,
elegante e delicada, retrucou:
Lambi, mas não lambo mais ...
O homem quedou-se transformado
em pesada estátua de pedra e dor.
A mulher se foi
            – leve e evanescente –
anjo que se libertou.       

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Como vai o espírito republicano?


José Maria Vasconcelos
josemaria001@hotmail.com

     Deleitar-se, neste feriado, à sombra das árvores da Praça da Liberdade, da República, do Largo do Amparo, da Praça Deodoro, o mesmo logrador onde Teresina nasceu, refletir sobre ideais republicanos. A Proclamação da República, há 124 anos, defendia propostas democráticas, e, como a praça de nossa capital, pouca coisa mudou. O espírito republicano ainda  tem de exercitar valores esquecidos.
     Os brasileiros desfrutam um feriado republicano insosso, desencantados com o estado de risco, até para atravessar o quarteirão da sua residência. O país registra média de 50 mil assassinatos ao ano, milhares de assaltos e sequestros ao mês, denúncias diárias de corrupção de autoridades. Milhares de crianças e jovens escravos das drogas e traficantes. O noticiário, mais atento aos traumas sociais, não sobra tempo para a esperança de melhores dias.  
   Em 1889, o Brasil adotou o regime republicano,  com o fim da realeza e da hereditariedade da chefia de Estado. Um conjunto de valores inspirava os republicanos, em especial: igualdade em relação a todos os cidadãos; ausência de privilégios e distinções;  laicização do Estado, com a abolição do caráter oficial religioso e instauração das liberdades de crença e de descrença; dedicação de todas as forças sociais ao serviço da comunidade; moralidade na política; fraternidade como critério das relações humanas; plenitude da liberdade de expressão.
    124 anos depois da Proclamação da República, todos os ideais democráticos propostos, na época, vigoram até hoje, mas carecem de outros, além dos já proclamados em 1889: eles incluiriam, certamente, as liberdades de costumes e de votar ou não; a inteira laicização do Estado, a moralização da vida política e a elevação da qualidade dos políticos e gestores públicos. Ainda falta ao cidadão se conscientizar de que direitos e deveres andam acasalados, porém só no que se fala é defender direitos.
     Enorme corrente de pensadores modernos prega a extinção completa da influência das passagens bíblicas, pregadas por igrejas, na formação do espírito republicano. Apontam, especialmente, a repressão à união homoafetiva, o controle da natalidade, divórcio. Para os pensadores, maioria agnóstica e marxista ateu, o veto ao casamento homossexual corresponde a uma interferência direta da religião de alguns na vida privada de outros e à manutenção de uma desigualdade injusta.
     A república deve completar-se com a moralização da vida pública, ou, mais exatamente, do comportamento dos políticos e dos agentes governamentais, pela presença do senso de dedicação à sociedade e do escrúpulo que leve à repugnância de servir-se o governante do Estado, por meio de salários e aposentadorias elevados, de foro especial, de benesses parlamentares, do peculato e do clientelismo, que constituem os políticos em uma casta privilegiada pelas suas prerrogativas legais, frequentemente corruptas, moral e materialmente. Talvez lhes falte o que eles se declaram contra: a formação ético-religiosa.
    O foco da formação e construção democráticas começa com a educação do espírito, que se faz necessária para a convivência em sociedade. Sem educação do espirito republicano e democrático, atrelado a valores espirituais, a sociedade sofre de conflitos que se veem hoje. À sombra das altaneiras árvores da Praça Deodoro, que tal aproveitar o feriado para uma sadia e realista reflexão?

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A função da epigrafe em Da Costa e Silva


Cunha e Silva Filho

         Não se pode ignorar que poetas  e mesmo   ficcionistas  não  utilizem os recursos das  epígrafes com  intenção  inócua  ou  gratuita. As epigrafes, a nosso ver, configuram verdadeiros  ícones,  indiciam preferências, gostos, definem adesões ou filiações a  períodos  literários, fases  de vanguardismos   em voga ou  mesmo  já superadas. Podem  estar,  portanto,   fazendo alusões ao presente,  ao passado próximo  ou  mesmo  antiquíssimo,  recorrendo a autores   gregos e latinos ou de outras  procedências  não ocidentais. .No período  romântico  da literatura brasileira,  foi  largamente   empregado e é bem provável que,  a partir do Romantismo,  as obras  de  nossos autores   tornaram  o  recurso da epígrafe uma prática  generalizada, segundo  podemos ver  em  Gonçalves Dias(1823-1864), Castro Alves(1847-1871),  Álvares  de Azevedo(1831-1852),  Casimiro de Abreu (1839-1860), entre  outros.
      O crítico e ensaísta  Fabio Lucas, em  estudo bastante  original,, sintetiza bem  o nosso  ponto  de vista: “O clima intelectual, não há dúvida, transpira  copiosamente   das epígrafes.”[1]
     Dessa forma,  elas  podem  funcionar como   um indicador literário ou ideológico. Seu emprego é vasto na literatura universal, Amplo também no campo do ensaísmo em todos os ramos  do saber.
     Na definição do poeta, crítico e ensaísta  Gilberto  Mendonça Telles, as  epigrafes, para ele  são   um tipo de discurso  paralelo, atuam em dois  sentidos, servem  de abertura para um texto novo e ao mesmo tempo sinalizam a sua  própria  procedência: “... funcionando como elemento de relação do texto com o contexto e sendo, portanto,  um dos  indicadores culturais da obra.”[2]
     Por  sua vez,  o  estudioso  Carlos  Reis ainda lembra um outro  tipo  de   relação   intertextual, de que a epígrafe é um dos  exemplos, chamado de  paratexto, no qual  se enquadram outros  textos tais como  o prefácio,  o posfácio, a dedicatória. Segundo  Reis,  a epígrafe “... invoca  uma palavra  autoritária, que é a de um autor ou  obra com reconhecido peso cultural.  e ainda acrescenta  que   essa palavra   pode-se desdobrar em  mais de uma   finalidade ou função: temática, ideológica, “veladamente”   com   inclinação  axiológica ou ainda  uma função “meramente  reverencial” pela qual um autor estabelece uma forma  de  “ascendência” reconhecida de um autor citado  pelo  autor  que cita. [3]
    A escolha  de uma  epígrafe é um fato deliberado, consciente, um índice, como já  referi, pelo qual  um autor pressupõe sugerir  uma identidade ou  afinidade de uma dada situação da sua  própria  obra com o fragmento  citado. Neste sentido,  vale também como  relação  dialógica entre textos de um autor com  outro ou outros.
     Por outro lado, a epígrafe, mostra a escolha de um   trecho  de extensão  pequena ou um pouco maior   de uma  obra que representa uma espécie de ápice da semiotização  entre um  texto – o do autor que cita –e do autor ou autores citados. Esse cruzamento de textos, exprimiria, em  geral,  a ideia de uma comunhão  de visões pessoais, a chancela  de uma autor consagrado,  ou poderia até ser  usado   como  mera peça decorativa para  impressionar  terceiros.
     Na obra de Da Costa e Silva (1855-1950)[4] comparecem  pouquíssimas  epígrafes, ou seja,  somam ao todo, cinco. Os autores  das epígrafes,  na ordem,  em que  aparecem  na obra  dacostiana são: Verhaeren (1855-1916) na obra  Zodíaco (1917) em que, abaixo da citação  de Verharen há um outor paratexto, uma   comovente dedicatória ao Piauí,  estado  natal de Da Costa e Silva[5]   Verhaeren, no poema  homônimo, editado em 1917, constituído de um  único  poema; Rubén Darío(1867-1916), na obra   Pandora(1919);.Shakespeare(1564-1616 )na obraVerônica(1927), que se inicia com um poema isolado,  de  título homônimo e seguido da  primeira parte  dessa  obra, “Imagens da vida e do sonho.”  Na segunda parte da mesma obra, “Imagens do amor e da morte”,   existe uma epigrafe feita  apenas de  uma frase, fragmento  de  uma carta de Heloísa, sobrinha  do cônego Fulbert, dirigida a Abelardo, teólogo e filósofo francês.
     Ainda na segunda parte de Verônica,  há uma  dedicatória para  Alice,  a  primeira  esposa  de Da Costa e Silva, o que também, sendo uma dedicatória,   constitui uma paratexto, da mesma  sorte que em Pandora,  abaixo  da epígrafe de Rubén Darío,   há uma outra  dedicatória  em latim  dirigida a um irmão de Da Costa e Silva, formando mais um paratexto.
      As epígrafes poéticas,  ademais,     dão manifesta  evidência de uma autor sintonizado com o fenômeno  poético entendido  na sua mais  elevada  significação. Neste  ponto,  pode-se  perceber  o quanto  ele foi um  poeta  atualizado.
    Os grandes  expoentes da poesia  francesa da nova poética  ocidental, servindo  para ilustrar  Verhaeren,  Verlaine1844-1896),  Mallarmé (1842-1898), Baudelaire (1821-1867), entre outros,  foram-lhe leituras   frequentes e por  certo  por ele  assimiladas  em  alguns  aspectos, quer temáticos, quer  formais.
   Vejamos, agora,  a primeira   epígrafe, extraída de um dos  poemas  da obra Les forces  tumultueses (1902): de Émile Verhaeren, poeta da admiração  de Da Costa e Silva:

Oh! Ma misère et ma gloire, cerveau
PA
lais de ma fierté, cave de ma torturre,
Contradictoire amas de  problêmes nouveaux
Qui s’acharnent sur la nature.[6]

[Oh! Minha miséria e minha  glória, cérebro
Palácio de meu  orgulho, refúgio de minha tortura,
Contraditória soma  de problemas novos
Que se enfervoram  na natureza.]  [7]
Não custa nada  perceber  a tensão dialógica entre os versos  acima e a substância temática deZodíaco: a natureza e tudo  aquilo que ela  problematiza na consciência do  bardo, A consciência aguda dos problemas  torna muito mais  sofrida  a existência de quem  sobre eles medita. É glóriaporque se transmuda em Arte; é miséria porque não concorda com a  acomodação e a indiferença. A Arte é uma resposta à insatisfação,  à injustiça ou  indignação.
         A segunda  epígrafe de Verhaeren, que é retirada da obra La multiple splendeur(1906) abre o conhecido  poema  dacostiano dedicado ao poeta  belga:

Et le lent defilé  des trains funébres
Commence, avec ses bruits de gonds
Et l’entrechoquement brutal des  wagons
Disparaissant -  tells des cercueils – vers les tenèbres.[8]

[E o lento desfile de trens fúnebres
Principia, com o barulho de gonzos
E o entrechocar brutal dos  vagões,
Sumindo – que nem féretros –
                               rumo às trevas.]

            Compare-se, para ilustração, com  os quatro últimos verso do poema “Verharen”:

                                        (...)

Na fogosa pressão da máquina, seguida,
Da longa procissão dos vagões de transporte,
Na indiferente  e célere corrida,
Ao ruidoso rumor dos seus carros  de morte” [9]

            Os versos acima, segundo  tive oportunidade de comentar linha atrás,  mantêm um dialogismo com o final do  poema dacostinao se  atentarmos  especialmente para a conclusão deste, i.e.,  uma velada alusão ao destino  do poeta belga.
           Ambas as estrofes verhaerianas  utilizadas como  epígrafes indicam ainda duas vertentes de Émile Verhaeren, o ambiente urbano tumultuado e o meio físico natural, aspectos  da sua temática,  de resto,  já  notadas  por  analistas de sua  poesia, e por outros  intérpretes   Tal contraste  de experiência  poética caracterizaria um  traço   de modernidade à  sua poesia.  Essa dupla vertente opositiva fora  apontada,  por sua vez,  pelo  arguto  crítico e ensaísta  maranhense Oswaldino Marques como  elementos presentes em Da Costa e Silva.[10]
           Para aquele ensaísta  o  “Poeta da  Saudade" fora da mesma forma  que o  belga “atraído  ao mesmo  passo, pela refulgência  dos grandes  centros culturais  europeus e  pelo   discreto sortilégio de sua  Amarante interiorana, dotada, não obstante,  do poder de nele  inflamar evocações ‘divinas’[11] Contudo,  em Da Costa e Silva só em parte  poeticamente   se realiza, ou seja,  em diversas  passagens  de Zodíaco o poeta  dá expansão em poemas versando  sobre a paisagem, o homem e a natureza  interioranas, como neste ponto o fora para  Verhaeren a sua  Flandres.    
         No plano da  experiência vivida, sabe-se que Da Cosa e Silva,  por  razões  profissionais,  morou em  muitas capitais brasileiras. Desta maneira,  no plano  da realização poética, a atração  também  pelas urbes, as grandes  capitais,  nada  produziu, apenas  ficou  nos limites da subjetividade,  admiração  e desejo.
         A epígrafe de Rubén Darío,  retirada da obra Cantos de vida y esperanza (1905), que dá entrada à obra Pandora sustenta também  um  diálogo intertextual com  o  poeta nicaraguense. Já nos reportamos antes ao ângulo em parte  confessional ou autobiográfico da  poética dacostiana. Não lhe  são anódinos à cosmovisão poemas como: “Ego..”(p. 203) e “...Sum” (, p.204),  nem tampouco “Paganismo” (, p. 209), “A sombra de ouro” (, p. 223), “Mater veneranda” I  e II (p.224-225). “Saudade” (p.75) e a série de sonetos “Sob outros céus” I, II,II,IV e V (p. 227-229. Neles Arte, vida, revelação e verdade se transfundem em poesia  estreme, consoante ressoam nos versos  rubendarianos: [12]

Vida, luz y verdad, tal triple lhama
Produce la interior lhama infinita;
El Arte puro como  Cristo exclama:[13]
Ego sum lux, et veritas et vita.

[Vida, luz e verdade, tal tripla chama
Produz a inteirior chama infinita;
A Arte pura como  Cristo exclama:
Eu sou a luz, a verdade e a vida.]

        Na epígrafe que antecede a obra Verônica, formado de um  pequeno  fragmento  retirado da  tragédia Macbeth,[14] de William  Shakespeare,[15] quero arriscar  duas  perguntas: 1) Por que Da Costa e Silva  acoplou, com leve modificação, uma parte da frase da rubrica  anunciando a presença de oito  reis, o último com  um espelho (glass, em inglês) na mão sendo seguido pelo fantasma de Banquo e com ela forma  a epígrafe  usada  como  introdução aos poemas  deVerônica? 2) Por que juntou duas  partes  antes  pertencentes a enunciados  formados  de orações  e com  isso  “criou”  uma  frase iniciada por um conector aditivo  “e”(and, em inglês) seguido de uma oração subordinada  adjetiva? [16]
      É curioso assinalar  que o fragmento da  rubrica se completa  harmoniosamente  com a fala de Macbeth, o assassino do rei Duncan da Escócia. Além disso, semanticamente, as duas partes, antes separadas espacialmente na página e  distantes, formam  um sentido  perfeito  e decisivo  ao contexto e à situação  física do ambiente da tragédia. Não seria  possível que Da Costa e Silva, de memória,  pudesse  engendrar  tal artifício  no qual  os fragmentos  fundidos  fazem   sentido  e   são  parte da ação dramática com a presença   das três feiticeiras?. Suponho que, na fusão dos  dois  fragmentos, haveria    antes um procedimento  gerado  pelo  poeta naqueles moldes que já o fizera  no que respeita ao  poema  “À margem de um pergaminho”,  da obra Pandora?[17] Por outro lado, atente-se, na referida  epígrafe  de Shakespeare, para o pronome “us”(“nos”, em português): “And in his hand a glass which shows us many more”.[“E nas mãos um espelho  que nos  revela muito mais”.] [18]
   No texto   do segundo fragmento, conforme  se vê acima,  aparece o pronome “us” (“nos”, em português), e não o pronome “me” (“me,” em português).  do  texto original de Macbeth. Não  implicaria  isso   num lapso de Da Costa e Silva? Pois esta troca, em princípio,   não combina com a realidade  dos poemas  de Verônica  em grande parte focando   a condição do sujeito lírico com status  autobiográfico.
    Ou, por outra,  não seria  deliberada a troca da citação com  a finalidade  de  agregar  a situação  pessoal do  poeta estendendo-a   a uma  plano  universal  da condição  humana? Paira o enigma ou senão o  erro  na citação da  fonte  original. Um crítico,   certa vez,  afirmou  ser um dos requisitos  básicos  dessa atividade suscitar  perguntas, visto ser o ato do intérprete uma sondagem da obra e, por  ser assim,  um perquirição de natureza  plural, multívoca,  aberta  a novos  ângulos   e percepções, sem dogmatismos  conclusivos e definitivos.
    Verônica não  trata da luta  pelo poder da riqueza  e do poder   político.  Em vez de uma  tragédia, é um canto elegíaco. A vida e a morte que nessa obra  se cruzam não são  produtos  da miséria dos homens contra os  homens,. Não se configura aqui a vingança contra a covardia. O “espelho,”  na  mão   do  derradeiro  rei visto através da  Macbeth, é apenas  a confirmação futura da  profecia  contada  pelas três  feiticeiras. Macbeth é a morte  anunciada na tragédia da avidez  e da cobiça do poder. Lady Macbeth, a sua mulher, é o instrumento  da persuasão ao  estado da malignidade  do marido. Na tragédia a culpa  do crime  é a certeza da morte do agressor. [19]
    Verônica, não,  é a vitória  do amor,   do sonho sobre a vida. O lirismo  vai permanecer entre o sonho e a realidade amarga  e desesperançada, entre  o desejo  da felicidade  térrea e  as dúvidas do além túmulo.O poeta vai  debater-se entre alternativas,     na dialética entre a carne e  o espírito,  da alegria e da  tristeza,  da certeza e da dúvida,  e desta a com o  imponderável,   ou com  os enigmas armados  pela  dor humana,  perda  do ente amoroso e,  contraditoriamente,  por certos  instantes  de  ludismo  irônico, em versos como “Mas seja tudo pelo amor de Deus.” Ou, em páginas anteriores,  aquele final de verso  em dísticos, que  diz “—Que reticências/ Nas existências!” O “espelho” dacostinao é de natureza diversa. Não traz  nenhuma  tragicidade,  apenas  recolhe  as alegrias,  tristezas e as dores do  homem. Faz-se transparente. A bela imagem do  aedo como  o “espelho do mundo,”[20] do poema  “Síntese”,  não traduz  o enigma  final mas recolhe todos os  estilhaços    da vida em sonhos,    perdas,  incertezas,  lamentos na travessia inexorável do tempo.
   A epígrafe  concernente  à mencionada  carta de Heloísa a Abelardo – “Faze de mim o que quiseres, menos  esquecer-me.” [21] - é,  de resto,  bastante  óbvia ao     associar-se  visceralmente  à perda  da bem amada, formando  um   sequência  dos  poemas  mais  liricamente amorosos  de toda a obra  do  poeta. É um longo e reiterado  desfiar  de lamento  pela  ausência da amada,  em poemas vibrantes   de saudade   e de  solidão, e não estou  falando  da  alta qualidade   das composições no  tom dolente  de ritmos e de musicalidade.
    O poeta aqui  se   revela   na sua condição  de simples  criatura  humana que, da matéria bruta da   dor   pela perda da amada,  passa a compor  poemas  de feição nitidamente  romântica, ainda que  só de longe possamos  encontrar ligeiros   traços  da imagética simbolista. Artista  habilidoso,   versátil e conhecedor  perfeito  e atilado   da arte  de  poetar, artesão  do poético,  Da Costa e Silva sabia se adequar  à forma  estética exigida pelo seus temas, afeito que era ao gosto  das  ousadias formais e experimentalistas, também  encontradas em outros  poeta  brasileiros, como,  por exemplo,  um Luís Delfino (1834-1910), um Manuel Bandeira(1886-1968), entre  outros vozes da  poesia brasileira.    
   O poeta nesse conjunto   de poemas de formatos  variados,  abre  o coração  e se entrega  de corpo e alma  a louvar  o bem  perdido. Nunca  foi  tão  autobiográfico  quanto  nesse  conjunto de versos  destinados  à sua  Alice Creio  que só no  último  poema  formado de um quarteto, o mencionado  “Síntese”, ele foge ao  tema  liricamente  amoroso   da segunda  parte  de  Verônica.





NOTAS:

[1] LUCAS, Fábio. O mundo das inscrições. In: _____.Fronteiras  imaginárias. – crítica. Rio de Janeiro: Edtiora Cátedra,  1971, p. 13-30.
[2]MENDONÇA TELES, Gilberto. Os limites da intertextualidade. In: _____.A retórica do silêncio. –  teoria e pratica do texto  literário. São Paulo: Cultrix/MEC,/INL, 1979, p. 21-37.
[3] Reis,  Carlos. O conhecimento da literatura – Introdução aos estudos  literários. 2 ed. Coimbra:  Livraria Almedina, 1999, p. 217.
Idem, ibidem.
[4] Neste ensaio,  todos  os textos citados da obra de Da Costa e Silva se referem à seguinte edição: Da Costa e Silva.. Poesias  Completas. 4 ed.  Nova edição  revista e ampliada e anotada por Alberto da Costa e Silva, com estudos sobre o  poeta por Oswaldino Marques e José Guilherme Merquior. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000.
[5] SILVA,  da Costa e. Op. cit., p. 105.A dedicatória é: "Ao meu longínquo Piauí - na divina evocação de sua natureza maravilhosa."  Logo abaixo, a sigla " DCS."
[6] SILVA,  Da Costa e.  Poesias completas, op. cit., p. 106.
[7] As traduções  entre colchetes são de minha  autoria.
[8] SILVA, Da Costa e. op. cit., p. 190.
[9] Idem, p. 189.
[10] MARQUES,  Oswaldino. .Espelho do mundo: Refrações.  In: SILVA, da Costa e. Poesias completas,  op. cit., p.20
[11] Ibidem.
[12] Aqui apenas esboço  alguns  dados  básicos para ulterior  aprofundamento   das  relações  intertextuais   relativas  aos versos  de Rubén Darío.
[13] SILVA, Da Costa e. Op. cit., p.198.
[14] Idem, p. 245.
[15] SHAKESPEARE,  William.  Macbeth. In: ____.The complete works  of William Shakespeare. The Cambridge Editon  Text as edited by William  Aldis Wright, including  The Temple notes. Illustrated by Rockwell Kent, with a  Preface by Christopher Morley . Philadelphia: The Blakston  Company, 1936..
[16] Ver, na nota  anterior, a edição  citada de William  Shakespeare , onde se acha  a passagem de Macbeth, Act. IV, i, 73-108, p. 1045.
[17]Cf. . minha análise do  poema “Àmargem do Pergaminho” in: SILVA FILHO, Cunha e. Da Costa e Silva: uma  leitura da saudade. Teresina: EDUFPI- Editora  da Unversidade Federal do Piauí/APL – Academia  Piauiense de Letras, 1996, p. 37-39.
[18] Cf. a remissão à nota 13 acima.
[19] Igualmente,  no que concerne a maiores  reflexões intertextuais  entre   a epígrafe de Macbeth e Verônica o autor deste estudo deixa para uma  outra  oportunidade um desenvolvimento complementar .
[20] SILVA, da Costa e. Op. cit., p. 305.
[21],  Idem,. op. cit.,  p. 257.   

domingo, 17 de novembro de 2013

Seleta Piauiense - Da Costa e Silva


Nel Mezzo del Camin...

Da Costa e Silva (1885 - 1950)

Passou de leve a Esperança
Pelo meu coração...
Encantou-me no azul do meu sonho de criança:
Ardeu como uma estrela... E era um pobre balão!

Passou de leve a Alegria
Pelo meu coração...
O Amor, dentro em meu ser, como um jardim, floria...
Como é triste, meu Deus, esta recordação!


Passou de leve a Ventura
Pelo meu coração...
Como foi que passou, se a busco com loucura,
Sentindo-me infeliz por desejá-la em vão?

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

ETERNO RETORNO


ETERNO RETORNO

Elmar Carvalho

memória:
lâmina de desassossego
cornucópia insana insaciável
a jorrar o passado
que não morre nunca
sempre ressuscitado
no eterno regresso
a nós mesmos.

ó emoções redivivas
e ampliadas
das sensações
de nervos expostos
nas carnes pulsantes
de um passado
sempre lembrado.

recordações
que dão e são vida
de becos escuros, sem saída
de amores
          hoje boleros
                 bolores em flores
de ilusões perdidas
que se fazem dores
na florida ferida da saudade.

evocações
de dribles esquecidos
de gols frustrados e acontecidos
de um jogo que nunca termina
de uma malsinada sina sinuosa
de lágrimas caudalosas
incontidas, vertidas
das vertentes profundas
do peito – porto
sem tino e sem destino
feito somente de desatino.

as mulheres amadas
na juventude fugaz
            não envelhecem
            não se corrompem
            não morrem jamais
preservadas intactas e belas
na câmara ardente
incandescente da memória.

recordações de fantasmas
que já nos abandonaram
de amigos mortos
que nos acompanham
cada vez mais vivos
de sustos e gritos
de proscritos e malditos
de agouros e assombrações
de desdouros e sombras vãs, malsãs,
oriundos dos porões escavados
nos subterrâneos dos sobrados
      subterfúgios e refúgios
da memória.

O passado poderoso e renitente
retorna e continua vívido e presente
se contorcendo se retorcendo
      e se reacontecendo.   

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

TANGOS À MÉDIA LUZ



TANGOS À MÉDIA LUZ

Antonio Gallas

Após um pequeno hiato em nossa participação neste periódico, retornamos, agora, nesta edição, para narrarmos fatos do segundo dia da programação da Semana da Imprensa 2013 que, apesar de ter caído numa sexta-feira 13, nada desagradável ocorreu, mas sim muita alegria que começou com o farto coquetel oferecido pela Associação Comercial e Industrial de Parnaíba em sua sede no Porto das Barcas.

Na oportunidade o atual presidente da entidade, o contabilista Luís Pessoa, reuniu os comunicadores num pequeno, mas confortável auditório, onde fez um breve relato das lutas e reivindicações que a Associação Comercial desenvolveu nestes seus 96 anos de existência, em prol do crescimento da cidade da Parnaíba. Falou também das lutas atuais, citando, inclusive, as reivindicações feitas com empresas de aviação comercial no sentido de priorizar voos regulares para Parnaíba tendo em vista a cidade contar com um aeroporto de categoria internacional com capacidade para pouso e decolagem de aeronaves de grande porte. O presidente Luís Pessoa, anunciou, dentre tantas notícias alvissareiras,uma dando conta de um decreto governamental que doou à Associação Comercial, em regime de comodato, o prédio do Complexo Porto das Barcas. Segundo o decreto, “o imóvel destina-se a utilização gratuita pela Associação Comercial de Parnaíba, que terá responsabilidade pela sua conservação e manutenção, além de ofertar atividades e projetos direcionados ao resgate cultural e histórico”. O local deverá ser utilizado na promoção de atividades artísticas, culturais e turísticas. A utilização do citado imóvel apara atividades diferentes das propostas pelo decreto, o prédio volta a pertencer ao Estado.

Encerrado o coquetel em que todos saíram satisfeitos, dada a variedade de salgadinhos e de bebidas oferecidos (pode ser também oferecidas, se você fizer a concordância verbal com bebidas), um pequeno grupo “esticou” até à tradicional Beira Rio, no afã de bebericar umas outras mais, não porque não se estivesse satisfeito com as bebidas oferecidas no coquetel (de cerveja a whisky de primeira qualidade), mas porque esse grupo composto por mim, pelos jornalistas Bernardo Silva e José Luiz de Carvalho, dr. Renato Bacelar (que demorou pouco), escritor Pádua Marques, historiador Cosmo Rocha e o sindicalista e político Sérgio Ricardo, gosta mesmo de dar uma “esticadinha” e aproveitar que “a noite é uma criança” (up the night) como se diz em inglês. Para felicidade nossa, boêmios por excelência, um peque grupo formado apenas por três músicos se apresentava nessa noite na Rua da Cultura, evento que acontece toda sexta à noite na Beira Rio. Os instrumentos musicais que eles utilizavam eram um violino, um acordeão (pode ser também acordeon ou sanfona) ) e um pandeiro, o suficiente para produzirem música de qualidade para o mais refinado gosto. Esse grupo, que não pude identificar o seu nome, conseguiu transformar o popular em erudito. No seu repertório eclético, além de MPB estavam também famosos tangos tais como “La Cumparsita”, “Uno”, “Corrientes”, “Mi Buenos Aires Querido” , e muitos outros. 

Ao escutarmos os tangos, eu e o Bernardo Silva comentamos sobre uma época na década de 70 quando residíamos na Rua Vera Cruz no Bairro São José e que todos os sábados, a partir da meia noite reuníamos na calçada da minha residência para escutarmos o programa Tangos à Média Luz levado ao ar pela Rádio Globo do Rio de Janeiro, AM 1220 KHZ. É claro, na companhia de uma “loura suada” ou de um tinto seco. Desse grupo seleto de apreciadores da boa musica portenha, legado deixado por Carlos Gardel, faziam parte além de mim e do Bernardo Silva, o poeta Elmar Carvalho, o “monstro” ou “enorme” Reginaldo Costa, algumas vezes o “potência” de Paula e alguns outros cujos nomes não me afloram à mente no momento.

A música nos transporta através dos tempos, nos enleva e nos traz recordações. E quando escuto um tango lembro-me de alguém que conheci em São Luís do Maranhão quando lá residi. Costumávamos escutar e tentávamos até dançar algumas vezes. Ela, apesar de morar em um prostíbulo, tinha um gosto refinado pela música e pela poesia. Muitas vezes quando ouvíamos o tango “la cumparsita” ao solo de um bandoneon ela costumava recitar o poema abaixo de autoria de Paulo César Pinheiro:

O tango é um coração nervoso de ansiedade,
Sangrando à meia luz de um cabaré esfumaçado.
O tango é melodia da dor e da saudade,
da mágoa e do abandono, do ciúme e do pecado.
O tango conta histórias de corações marcados,
de amores clandestinos e paixões desiludidas.
O tango é o desabafo dos desesperados, o alívio dos amantes, consolo das perdidas.
A alma das mulheres tristes vive presa ao lancinante som de um bandoneon sem calma.
O tango é um espelho a refletir tristeza.

E todos têm, no fundo, um tango dentro d’alma…”

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Esperantina: cem anos hoje do anjo cigano



Fonseca Neto

Antigos narradores e historiadores já afirmavam ser o Piauí uma terra de transição. E é: não somente de povos, mas o é igualmente sua natureza dadivosa entre as matas abertas amenas e a imensidão da selva amazônica. Até antes de ser Piauí a população deste vale movia-se pelo que hoje se chama de Ceará, Maranhão, Tocantins. 
Claro, não seria por uma terra assim que deixariam de transitar os ciganos, espécie de linhagem que há mais de quinze séculos, a partir da Índia, vive em permanente diáspora. Para este lado do Atlântico, vieram rente às primeiras levas de colonizadores e, em geral, na condição de “degredados”. E degredados, além de misteriosos, e sempre perseguidos, vivem pelo Brasil afora. Na minha Passagem Franca natal, décadas atrás, nos dias em que passavam “os ciganos”, crianças ficavam mais em casa que na rua para não ser “enganadas” por eles. Na França, a propósito, relembre-se, há um mês, ninguém menos que o presidente da República arbitrando conflito envolvendo uma família “cigana”.     
Em 1913, intensa foi a movimentação deles em terras piauienses, especialmente no norte, caracterizando certo mal-estar na população de povoados, vilas e cidades. Forte boataria espalhou-se desde a microrregião da velha Barras, de que por ali havia entrado uma horda de ciganos e por isso grande era a “correria” de todos. Telegramas alarmantes chegavam aqui em Teresina e governo e jornais se encarregavam de atemorizar ainda mais a população. No Peixe, hoje NS dos Remédios, houvera saque. Ameaçada estaria, inclusive, a antiga povoação do Retiro da Boa Esperança –naquele ano de 1913 completando duzentos de sua fundação, dada em 1713. 
Um enorme bando de ciganos, [...] errantes, malfazejos e exploradores, que não têm pouso fixo e vivem de terra em terra a explorar e iludir o nosso sertanejo na sua boa fé, [...] invadiu e saqueou a próspera povoação do Peixe, [...], a quatro léguas da margem do Parnaíba, roubando e cometendo desatinos inqualificáveis. Logo depois de terem praticado semelhantes atos de barbaria, retiraram-se da povoação [...] ameaçando de fazerem o mesmo na Cidade de Barras [...]” (notícia do jornal “Correio de Teresina”, de 10/11/1913). E imagine-se o pavor de famílias, com conversas do tipo as que a documentação policial registrava, acusando “... jovens ciganos [de] raptar donzelas, no intuito de integrá-las ao grupo. O cigano Gaspar tentara raptar Rosina; Mundico faz tentativas à moça Maria. Um dos casos mais curiosos foi o da jovem Maria da Cruz de Medeiros, assediada pelo cigano Aguiar, filho do Rodolfo. O jovem cigano oferecia presentes, dirigia-lhe gracejos e pedia-lhe insistentemente os cachos de seus cabelos. Como a moça não correspondia a suas expectativas, Aguiar prepara-se para raptá-la...”. E note o leitor a atualidade deste tema: em matéria publicada no jornal “Piauí” (29/11/1913), havia suspeita que “entre os ciganos andam também facínoras acusados pela polícia [...] que se aproveitam da companhia desses bandos nômades de vagabundos para praticar verdadeiras depredações”. “Suspeita também conferida no Inquérito pelo tenente da tropa policial que reprimiu o grupo cigano: ‘[...]. É certo, conforme verifiquei que nos bandos dos ciganos, existiam muitos cangaceiros conhecidos, vindo de estados limítrofes...’.”
Para aliviar os lugares Peixe, Marruás, Retiro, Campo Largo, além da própria Barras, sede municipal, o governo estadual montou um batalhão policial para expulsar os “bandoleiros”. Na área, com superioridade armada, a volante fuzilou vários ciganos e até não ciganos. O mais grave episódio ocorreu na povoação do Retiro – hoje cidade de Esperantina, na manhã de 11/11/1913 – quando vários deles foram mortos e ali mesmo enterrados a esmo.
Passados cem anos, a memória dessa tragédia sinaliza que teria ficado a sensação de mortes desnecessárias, num recorrente ato de covarde-tirania contra o “outro” que se revela enfraquecido. E sobretudo marca certa consciência local o sacrifício de um ciganinho inocente que tombou na estrada. Há uma mística católica em torno dele que parece crescer – e naquele tempo já se dizia que criança morta vira anjo. 

(Citações havidas da dissertação de mestrado de Maria Auxiliadora Carvalho, esperantinense, feita na Ufpi, fixando relevante contribuição para que essa tragédia de lesa-humanidade não caia no completo esquecimento dos pósteros e previna outras).