quinta-feira, 29 de agosto de 2024
Proteus mirabilis
Proteus mirabilis
Fabrício Carvalho Amorim Leite (*)
O
isolamento e o autoabandono tornaram-se o palco de meus delírios. Como um pajé
hesitante diante de sua própria tribo, imerso em um estado dramático, sou
objeto de uma meditação aristotélica sobre a natureza humana e a sociedade —
tema que pretendo explorar.
O
velho benzedor, confinado em um refúgio onde a vida foi reduzida aos seus
aspectos mais primitivos, experimenta um isolamento que transcende o físico.
Mesmo
cercado por outros seres, ele se sente desconectado, esquecido pela falsa
conexão tecnológica e pela pressa da vida moderna, como se, em seu próprio
universo — e somente nele —, fosse uma criatura superior.
Essa
sensação de superioridade ecoa a ideia aristotélica de que alguém que vive fora
da sociedade pode sentir-se como um Deus, autossuficiente e além das
necessidades humanas.
Mas
será que o universo que o curandeiro criou, afastado do convívio humano
genuíno, pode realmente substituir a interação humana? Este é o fardo que ele
carrega.
No
entanto, uma companhia inesperada surge: uma bactéria... Proteus mirabilis. Essa
pequena criatura torna-se sua parceira nessa tragédia simbiótica, corroendo
suas entranhas e sua alma.
O
curandeiro, que antes se via como uma entidade superior, começa a perceber a
ironia dessa companhia. Ele se pergunta: “Será que, como besta ou como Deus,
possuo uma alma? ” Sua interação com outras formas de vida no autoexílio,
especialmente com Proteus,
o leva a confrontar o peso de uma existência fragmentada e as decisões que o
conduziram a esse lugar de abandono.
Agora,
ele não é apenas um curandeiro, mas também o portador da moléstia — companheira
inseparável e, ao mesmo tempo, ceifadora em potencial. Na tentativa de escapar
dos julgamentos e do desprezo que o cercam, o curandeiro se isola ainda mais.
Gradualmente,
a imagem/miragem do homem isolado se desintegra: ele descobre que não é nem
besta, nem Deus, mas um ser humano frágil, preso entre o leito de um hospital e
o papel de um velho curandeiro, enfrentando as complexidades e os absurdos da
vida enquanto busca, desesperadamente, a própria cura.
Humano,
demasiadamente humano.
(*) contista e cronista.
segunda-feira, 26 de agosto de 2024
ÁGUAS E PEDRAS: TRIBUTO A LUZ I(S)LÂNDIA
Fonte: Google |
ÁGUAS E PEDRAS: TRIBUTO A
LUZ I(S)LÂNDIA
Elmar Carvalho
Ao poeta e
amigo Ivanildo Di Deus
As águas que rolam
pelas lombadas do morro
(bem) vindas das cercanias
alvadias da igreja
lavam os resíduos da cidade
levam os rejeitos da saudade
e se afogam e se renovam
nas águas remansosas em
novelo
do cotovelo recurvo do
Parnaíba
bem ali onde as pedras
foram sufocadas
no manto cinzento do
cimento
que lhes decepou a beleza
bem ali onde outrora
as lavadeiras estendiam
suas brutas labutas e
canseiras
e tudo se fazia um
encantado multicor
como se as roupas fossem
belas velas arriadas
enxaguadas e secando
sobre o lombo duro das
pedras – agora
submersas na argamassa,
mas prenhes de lembranças
e saudades.
sexta-feira, 23 de agosto de 2024
ROLINHA FOGO-APAGOU
ROLINHA FOGO-APAGOU
Elmar Carvalho
Nos últimos dias, aqui em
Regeneração, ou lá em Teresina, ao amanhecer, ou ao crepúsculo, tenho ouvido o
cantar dolente de uma rolinha fogo-apagou. Muitos poetas têm cantado os
passarinhos. Muitos têm se comparado a uma ave canora. Manuel Bandeira, em mais
de um poema, falou nas andorinhas. O nosso H. Dobal fez versos às golondrinas e
também ao sabiá. Este último foi cantado por Gonçalves Dias, que o colocou no
alto de uma palmeira.
Alguns fazem crítica, alegando
que sabiá não pousa nessa árvore. Não sei se a crítica procede; o que sei é que
daria uma bela imagem: a plasticidade do sabiá agregada a uma linda palma de
coco da praia ou mesmo de coco babaçu, e melhor ainda se fosse um imponente
buritizeiro, pejado de brônzeos frutos. O cronista Rubem Braga também teve por
tema esse passarinho de tão belo e aflautado canto.
Voltemos à fogo-apagou. Seu nome
é a onomatopeia de sua cantiga. Pode ser entendido positivamente, como regozijo
por um incêndio que tenha terminado; ou negativamente, como o fogo vital que se
tenha transformado em cinzas e tristeza, como o facho emborcado do simbolismo
das catacumbas e cemitérios. Seu canto, quase cantochão monocórdio, de timbre
grave, sonoro, severo, solene, mesmo ao amanhecer, que é sempre alegre, traz
certa ponta de tristeza.
Quando ouço esse canto ao
pôr-do-sol, a melancolia me tomba na alma, me impregnando de suave tristeza,
que aceito sem nenhum problema, pois todos temos os nossos momentos sombrios.
Manuel Bandeira já advertia para que procurássemos amar a nossa tristeza, que
um dia aprenderíamos a amá-la.
O canto dessa rolinha me fez
recordar minha infância. Acostumado com o movimento e o burburinho da cidade,
nas poucas vezes em que fui passar uns poucos dias de férias em Ameixas, zona
rural de Barras, ao ouvir esse cantar tão dolente, tão melancólico, ficava
saudoso de minha casa, sobretudo do aconchego de meus pais. Ao entardecer
campestre de então, quando tudo parecia que se ia finando, esse canto tão
sentido, tão magoado, me caía na alma como punhais, que me feriam de uma
tristeza acachapante e de uma saudade avassaladora.
Mas esse canto, para mim tão
tristonho, tão desconsolado, tem uma beleza inefável, como a beleza que
persiste nas ruínas dos monumentos, nos escombros do que já foi belo, nas rugas
das deusas envelhecidas.
24 de agosto de 2024
domingo, 18 de agosto de 2024
3 POSTAIS DE PARNAÍBA
3 POSTAIS DE PARNAÍBA
Elmar Carvalho
POSTAL III
Hoje o Porto Salgado
sal’do
nominal
do
naufrágio
de uma barcaça de sal
é salamargo na lembrança
dos vareiros e
embarcadiços.
E a água do Igaraçu
é uma lágrima de saudade
(ou
sal’dade?)
do fastígio de outrora.
Os parcos barcos são
poemas de chegadas e
partidas
e símbolos da decadência.
sexta-feira, 16 de agosto de 2024
quinta-feira, 15 de agosto de 2024
A POESIA DE ELMAR CARVALHO
Carlos Evandro M. Eulálio
Minha
estrada
é a esteira
de luz
que o sol
traça no mar.
Elmar Carvalho
José Elmar de Melo Carvalho
nasceu em Campo Maior (9 de abril de 1956). Poeta, jornalista, cronista,
romancista, contista e crítico literário. Juiz de Direito, Bacharel em Direito
e Administração de Empresas. É autor modernista contemporâneo, egresso da geração
mimeógrafo de 1970. O seu livro Rosa dos Ventos Gerais recebeu o prêmio Ribeiro
Couto, conferido pela União Brasileira de Escritores (UBE) Rio de Janeiro. Nos
anos 1970, foi um dos fundadores do jornal mimeografado Abertura. Quando
residiu em Parnaíba – PI, em 1975, atuou em vários jornais alternativos. Como
poeta, fez parte das antologias: Poesia Teresinense Hoje, Postais da Cidade
Verde, Andarilhos da Palavra, Antologia dos Poetas Piauienses, Baião de Todos,
Nordestes (SESC- SP), entre outras.
Presidiu a União Brasileira de
Escritores Seção Piauí e o Conselho Editorial da Fundação Cultural Monsenhor
Chaves. Foi membro do Conselho Editorial da Universidade Federal do Piauí.
Desde janeiro de 2010 é titular do blog poetaelmar.blogspot.com.br. Membro
efetivo da Academia Piauiense de Letras (APL), cadeira nº 10.
Obras
1990. Cromos de Campo Maior
1994. Noturno de Oeiras
1996. Rosa dos Ventos Gerais
2000. Sete Cidades: Roteiro de um
passeio poético e sentimental
2006. Parnaíba no Coração
2006. Lira dos Cinquentanos
2009. Noturno de Oeiras e outras
invocações
2012. Bernardo de Carvalho: O
fundador de Bitorocara
2013. Amar Amarante
2013. Retrato de minha mãe
2014. Confissões de um juiz
2016. Retrato de meu pai
2017. Histórias de Évora
2020. História e vida literária:
atas da APL
2022. Oeiras na alma e no coração
2023. O poeta e seu labirinto.
Linguagem e estilo do autor
Embora deserdado de tradição poética, pela desagregação da série literária, traço peculiar dos anos 1970, Elmar Carvalho se impôs no contexto da literatura modernista contemporânea como notável poeta, mercê do próprio esforço e determinação. Pertence à chamada Geração Mimeógrafo, que atuou numa época pouco favorável à produção literária no Brasil, em virtude da ditatura militar. Assim conhecida, porque, era por meio do mimeógrafo (ferramenta hoje obsoleta, superada pelas máquinas xérox e impressoras acopladas aos computadores) que grupos de jovens, em geral estudantes universitários, encontravam uma saída para divulgar seus textos literários, sob a mira de fuzis e à margem do mercado editorial. Daí a designação Poesia ou Geração Mimeógrafo. Era uma literatura sincretista. Os poetas dessa geração empregavam em suas obras procedimentos, como a pluralidade estilística e a diversidade temática. É sobretudo uma poesia de resistência e de contestação que se identifica pela desvinculação do cânone literário brasileiro, sem qualquer tradição poética imediatamente anterior. Para que se tenha uma ideia da produção literária desse período, vejamos a seguir como o poeta a define: “Nós, filhos bastardos do AI-5, diante da agonia / euforia, entre a repressão e o ‘milagre’, confusamente buscávamos uma atualização possível e a revelação de uma realidade, prenhe de anseios e frustrações, mas com pitadas de lirismo, temperando o peso das metáforas. Até porque a antiestética Marginal, longe da ideia do sublime e exemplar da produção acadêmica, tendia, tendia para a adrenalina, o coloquial, o impulso tenso e controvertido. [...] A minha geração aflorou literariamente durante o regime militar[...], numa época em que não podia haver reuniões de estudantes nas universidades. Isso fez com que houvesse em nossos textos uma forte carga social de denúncia, mas também fez com que exercitássemos a criatividade para driblarmos a censura”.
Atualmente, Elmar Carvalho é um
dos melhores e mais representativos poetas de sua geração. É autor de uma obra
em construção, como ele próprio afirma, sintonizado com a modernidade poética,
sem descurar da tradição de onde retira sábias lições, por meio da leitura dos
clássicos brasileiros e estrangeiros. Por esse motivo, na poesia de Elmar há
que se ressaltar não uma atitude diluidora, nos termos de Ezra Pound, isto é,
de imitação sem progresso em relação ao modelo tradicional, mas uma atitude
inventiva e de descobertas inovadoras. Dessa forma, em Rosa dos ventos gerais,
o poeta tece os poemas com savoir-faire empregando recursos linguísticos,
plásticos e sonoros, nas mais diversas formas de expressão poética.
Rosa
dos Ventos Gerais, livro de poemas publicado em primeira edição no ano de 1996,
é a obra mais estudada pela crítica e também difundida entre os leitores.
Divide-se em quatro partes:
I - Cancioneiro do ar: poemas
líricos e amorosos;
II - Cancioneiro do Fogo: poesia social;
III - Cancioneiro da Terra e da
Água: poemas voltados para a natureza;
IV – Cancioneiro dos Ventos
Gerais: épicos modernos e outros temas.
M. Paulo Nunes considera a quarta
parte “aquela em que o autor reconstrói o universo conhecido para redefini-lo
poética e sensualmente, numa visão ecumênica, através da qual ganha
universalidade a sua rica poesia”.
Coletânea de textos comentados
No livro, o autor emprega as mais
diversas formas de expressão poemática, do clássico soneto aos poemas em
estrofes de diferentes tipos de arranjos estruturais, combinando versos maiores
com versos menores:
Escravo,
não sou escravo da submissão
e meu último adeus será uma
corrida
com os pés fora da corda-bamba.
Escreverei
um manifesto assinado
com o sangue de cada um,
com o suor de todos,
todos mocinhos
de um filme sem mocinhos.
Escarnecerei
os muros e os tetos das prisões
porque são exceções de um regime
de
exceção.
Escangalharei
as portas do céu
e os portões do inferno
e soltarei a liberdade.
(Moisés p.102)
Moisés é o poema-manifesto de Elmar Carvalho,
datado de 2 de abril de 1978. Exprime a atmosfera dos Negros verdes anos de
1970, expressão criada por Heloísa Buarque de Holanda, para caracterizar a
década mais repressora da ditadura militar de 1964, que se iniciou com a edição
do Ato Institucional n.º 5 (AI-5) de 13 de dezembro de 1968), revogado dez anos
mais tarde, vigorando somente a partir de janeiro de 1979.
O sujeito lírico de seus primeiros poemas
faz-se presente no texto não só quando enunciado em primeira pessoa, mas também
quando projetado com arranjos especiais, obtidos por meio do emprego da função
emotiva da linguagem, associada à função poética, como constatamos nos versos
anafóricos do poema Amad’amor:
Eu te amo
Eu te (ch)amo
Eu sou tua (ch)ama
Eu te des’gosto.
Eu te ado(u)ro
Eu te douro.
Eu sou teu (m)ouro /mourão
Eu sou teu tes’ouro.
És minha ama’da
És minha d’ama.
E neste jogo de (d)ama
o xeque-mate é um Pirro /
Pirrônico
em que o vencido é vencedor
e o escravo é senhor.
Somos um laço
Tu me (en)laças,
Eu te (en)laço.
Somos um cadafalso
Onde somos vítimas,
Carrasco e baraço.
A palavra-frase eu-te-amo
metamorfoseia-se interna e anaforicamente, expandindo-se em construções
sinonímicas que culminam com a erotização da mensagem na estrofe final do
poema, quando então se fundem as duas pessoas do discurso:
Somos um laço
Tu me (en)laças
Eu te (en) laço.
Somos um cadafalso
Onde somos vítimas,
Carrasco e baraço.
Roland Barthes, nos Fragmentos de
um discurso amoroso, assim esclarece acerca da expressão “eu te amo”:
Eu-te-amo não
tem empregos. Essa palavra, tanto quanto a de uma criança, não está submetida a
nenhuma imposição social; pode ser uma palavra sublime, solene, frívola, pode
ser uma palavra erótica, pornográfica (BARTHES, 1995).
Saliente-se que a vertente erótica
da lírica brasileira pela qual opta Elmar Carvalho está mais relacionada àquela
na acepção do Drummond de O amor natural, que supõe a exigência corpórea, que
dirige o homem em busca da mulher (ANDRADE, 1994):
A Ero Moça
A aeromoça
abre os braços
e mostra as saídas
de emergência...
E eu a sonhar
que ela abrisse
as pernas e mostrasse
as entradas de quintessências.
A função emotiva da linguagem, associada à poética, comparece quase em todos os poemas do Cancioneiro do Ar, primeira parte do livro, com temática que abrange o amor, a mulher, o poeta, o poema, o sexo, o tempo, a vida e a morte. A lírica não intimista, de conteúdo mais explicitamente social, constitui a tônica dos poemas cujo sujeito da enunciação identifica-se na e pela linguagem, isto é, pela dicção própria de cada texto. Neste caso, verifica-se um momento de tensão entre o individual e o coletivo, caracterizando a lírica moderna participante que, nos termos de Adorno, resulta da integração entre a emoção e o desejo de interpretar o mundo, como nesta estrofe do poema A fome:
a fome
que come
e consome
o “home”
mora
em sua víscera sonora
e o devora
como uma flora
cancerosa
rosa carnívora
que aflora e o deflora
de dentro para fora
O aspecto emocional desses versos
decorre do modo como o texto se organiza, pelo emprego paralelístico das rimas.
Os semas fome, come, consome, home, num processo mais lúdico do que lógico,
igualam-se e ao mesmo tempo se diferenciam poeticamente. A lírica faz com que a
linguagem estabeleça um elo entre sujeito e sociedade, deixando de
concentrar-se exclusivamente no poeta. A configuração do poema no espaço em
branco da página é um recurso recorrente na poesia pós-concretista. Curioso
neste texto é também a fluência das rimas (paralelas) constituídas de sons
nasais e orais. O poema A fome, portanto, compõe a série de textos que abordam
a temática social.
Neste poema, a metalinguagem comparece na
forma como o eu lírico reflete sobre o processo de construção da poesia no
interior do próprio texto.
As meadas e as palavras
são labirintos e teias.
Nelas os poetas se elevam;
nelas as moscas se enleiam
e se debatem em vão.
Os poetas são,
As moscas, não.
(Metapoema - p.90)
No poema a seguir, a lírica
funde-se ao épico e ao dramático para desvelar uma poesia de caráter mítico e
histórico, não porque narra eventos históricos, mas porque dialoga com os
homens de todas as épocas, por meio da intertextualidade. Assim é o diálogo com
a mitologia grega no poema Na Noite, pelo qual o eu lírico, isto é, a voz que
enuncia o poema, resgata um dos mitos gregos mais conhecidos: O labirinto de
Creta, edificado por Dédalo, para nele encarcerar o monstro Minotauro, meio
homem, meio touro, alimentado com jovens a ele oferecidas. E Teseu, guiado por
Ariadne, marca o caminho com um fio de novelo, a fim de destruir Minotauro:
Na noite
um sapo coaxa.
Uma puta triste
acha graça. Acha graça.
Um galo
às desoras desfere um canto
fora de hora. E chora.
Um cão ladra por nada:
nenhuma cadela no cio.
O silêncio
até a mais completa
grita como louco
absoluta exaustão.
na concha acústica
dos labirintos dos ouvidos
moucos
por onde um Teseu lasso caminha
em busca do Minotauro – perdido
sem o fio de Ariadne
conduzido por outro fio
que parte / se parte e
se reparte entre o ser
e o não ser.
E os gritos de Teseu
arrancam ecos
que já ecos de si mesmos
se repetem se repetem
(Na Noite, p.
71)
Neste fragmento do poema Eterno
Retorno, o eu lírico reconstitui pela linguagem cenários, flagrantes da
experiência existencial comuns a todos nós; imagens do passado que são ícones
de uma época que já vai longe de todos, que impregnam a mente com o vigor da
recordação liricamente recuperados.
[...] recordações de fantasmas
que já nos abandonaram
de amigos mortos
que nos acompanham
cada vez mais vivos
de sustos e gritos
de proscritos e malditos
de agouros e assombrações
de desdouros e sombras vãs,
malsãs,
oriundos dos porões escavados
nos subterrâneos dos sobrados
subterfúgios e refúgios
da memória.
(Eterno retorno – p.68)
Nestes dois poemas de época, o
sujeito lírico em terceira pessoa dirige o ponto de vista para o coletivo. O
narrador converte a expressão objetiva do discurso épico em manifestação
subjetiva de uma experiência individual, situação em que o poeta dá voz a um eu
e com ele se confunde:
À meia-noite
percorria a praça
A noite era silente e fria
e nenhuma estrela luzia...
O manto escuro tudo
envolvia e ninguém existia.
Apenas o olhar cego
do Conselheiro, ao longe,
indiferente, me via.
[...]
Na praça Saraiva
uma flor fez-se borboleta
e desferiu um voo rasante
sobre a cabeça do
Conselheiro
que permaneceu
impassivo e contemplativo
em sua dura
postura de escultura:
hierático e estático.
(Flagrantes de Teresina
– p.130)
Na Paissandu e adjacências bêbados passeiam
equilibrados sobre a corda-bamba
dos pés.
Velhas meretrizes sem freguesia
conversam e cospem na calçada.
Nas noites serenas de serenata
as luzes mortiças dos postes
espiam de pálpebras cansadas
os amores camuflados clandestinos
(in)decentes.
Os amores puros sem rotas e
rótulos.
A lua, velha safada, espreita a
intimidade
das alcovas dos casais.
(Postais
de Teresina I – p.131)
.
POEMITOS DE PARNAÍBA
Nesta série, o poeta resgata pela
memória flagrantes de Parnaíba, não a cidade cosmopolita de hoje, mas a cidade
provinciana como cenário das aventuras e fantasias da infância cujos segredos
são expostos com espontaneidade e humor:
Situava-se entre o feio e o
horrível
mas se dizia BG: bonito e gostoso
Metido a conquistador de mulheres
conseguia o inverso efeito:
as mulheres – lebres assustadas
de Alain Delon fugiam.
Se Alain Delon muito fosse
Alain Delonge seria.
(Alain
Delon, p.186)
Passava com seu passo leve
- quase voo de pássaro
com suave elegância
de uma cabra montês.
Rápida cortava as
avenidas e as praças
de uma cabra montês
até que a molecada gritava
- Maria das Cabras!...
Maria subia a saia:
- Taqui o chifre da cabra!...
Os moleques com as cabeças:
cheias de ideias e fantasias
em suas alcovas ou banheiros
se escondiam: Maria das Cabras
surgia como uma fada encantada
entre véus diáfanos que se
es gar
ça vam.
(Maria das Cabras, p.191)
Se bem pesado não dava
sequer meio-quilo. Pai de
Cotinha, mulher bonita e
namoradeira nos escuros
do velho Cine-Teatro Éden –
paraíso
de estrepolias estrambóticas e
eróticas.
O pequenino Meio-Quilo, de
lanterna em
punho, a roubar Cotinha dos
braços
do namorado, era um filme
à parte.
(Meio-Quilo, p.186)
Opinião da crítica
Elmar Carvalho [...] canta
uníssono a consciência da vida e dos compromissos humanos. Canta as
desigualdades sociais, numa forma (poética) muito mais contundente do que um
simples discurso de comício ou uma catilinária oca de deputado [...]. O lado
emblemático e realista da sua linguagem se unem para que a poesia, mais uma
vez, seja o corte profundo e quente e afiado da denúncia. (Assis Brasil,
escritor e crítico literário)
x.x.x.x.x.x
Uma análise da produção literária
de Elmar Carvalho deve enfocar o livro Rosa dos Ventos Gerais. Sua poesia
transpira criatividade, sonoridade, emoção e convencimento, características
peculiares aos grandes literatos, cujas obras transcendem o presente e
firmam-se na posteridade literária. Outra característica marcante do poeta é a
construção de imagens sólidas e belas, onde as palavras viram verdadeiras
fotografias gráficas. Ivanildo di Deus, poeta e professor da UESPI.
x.x.x.x.x.x
Uma das peculiaridades marcantes
da poesia de Elmar Carvalho são os recursos buscados na configuração do espaço
branco da página [...] que, desde cedo, dele fizeram um poeta atualizado, com o
pé na modernidade e outro na grande tradição poética. Na realidade, a tendência
de utilizar-se de figurações, desenhos e aproveitamento do espaço branco da
página para fins estéticos de comunicação do poético remonta à Antiguidade
greco-latina e me parece, sem dúvida, ter chegado para ficar. Elmar é um
exemplo inequívoco de uma voz poética atenta e lúcida da poesia brasileira
contemporânea. Cunha e Silva Filho, mestre e doutor em Literatura Brasileira.
Professor universitário no Rio de Janeiro.
x.x.x.x.x.x
O vate Elmar Carvalho pertence ao
Modernismo Piauiense, precisamente à Geração Mimeógrafo, ou seja, a geração dos
anos 70 à atualidade. O autor, com uma rosa dos ventos, nos conduz à leitura
prazerosa de uma temática bem diversificada que enfatiza a paixão avassaladora
pela mulher amada envolta de sensualidade e erotismo, a natureza, o telúrico,
problemas sociais e a angústia existencial do homem moderno. Rossana Carvalho e
Silva Aguiar, especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira –
professora da UESPI.
x.x.x.x.x.x
A densidade lírica de Rosa dos
Ventos Gerais é também, em grande medida, associada ao erotismo, o que explica
e justifica a igualmente forte presença feminina no livro. Em seu ato de criar
e recriar a mulher, o poeta a evidencia como um completo e complexo objeto
amoroso. Eis que emergem de seu livro olhos de lã e de lâminas, de céu e de
inferno, verdes musgosos ou azuis fuzilantes; cabelos de lenços e de loiras
algas; mãos que acariciam e esmurram; bocas sequiosas de beijos e bocas mudas;
curvas femininas que transcendem as ondulações da terra e do mar. Teresinha
Queiroz, professora e doutora em História Social. Pertence à APL, cadeira 23.
x.x.x.x.x.x
Rosa
dos Ventos Gerais, de Elmar Carvalho, condensa mistérios, prazer e
plurissignificância, haja vista a emoção latente nos jogos rítmicos e na
elaboração das imagens instaurarem o sabor pelo inusitado e o desejo de
plenitude, ambos manifestos a partir do título – leia-se rosa (o fascínio, a
beleza), vento (o que agita, transforma) gerais (em todos os espaços. Leia-se
metaforicamente, poesia. Ambos, o sabor pelo inusitado e o desejo de plenitude,
consolidam o convite para mergulhar em seus versos. Dilson Lages Monteiro,
professor de Português e Literatura. Membro da APL, dadeira 21.
x.x.x.x.x.x
A poesia de Elmar Carvalho é
marcada pelo ecletismo. Ele bebe no versejar de todas as escolas e movimentos
literários do ocidente, percorrendo vários gêneros mistos e formas de poetar,
como a lírica, a épica moderna ou o poema narrativo, a sátira, o soneto, a
elegia, a poesia concreta. (Élio Ferreira, doutor em Teoria Literária pela
UFPE).
CONCLUSÃO
Os poemas de Elmar Carvalho
transmitem ao leitor não apenas emoção, mas também sábios conhecimentos que
emanam de um vasto repertório de leitura sobre filosofia e arte poética. Nesse
sentido, constata-se em sua obra um aspecto da mais alta importância: o
propósito pedagógico de seus textos, nos termos daquele enunciado por Mário
Faustino em Diálogos de Oficina, ao mencionar as qualidades indispensáveis aos
poetas contemporâneos:
“Os grandes poetas sempre se
interessaram ativamente pela Filosofia, pelas ciências e pela política de sua
época, encontrando-se em cada um deles o retrato mais ou menos fiel e minucioso
do que se passava e do que se fazia na dinâmica social do tempo em que viveram.
[...] Toda poesia verdadeira é didática. E nenhum meio de comunicação ensina
tão profundamente e de modo tão inesquecível quanto a poesia” (FAUSTINO,
1977).
Elmar Carvalho não se rende
exclusivamente aos apelos da inspiração, porque concebe o poema como produto de
um trabalho elaborado e planejado. Suas poesias não brotam de um momento
circunstancial, como um Deus ex machina, isto é, como aparição do inesperado,
mas do trabalho de oficina, eivado de reflexão e sabedoria.
*Carlos Evandro Martins Eulálio é
membro da Academia Piauiense de Letras, ocupante da Cadeira 38. Crítico
literário, professor de Português, Latim e Literatura.
REFERÊNCIAS E BIBLIOGRÁFIA
CONSULTADA
ADORNO, Theodor. Lírica e
Sociedade in Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
ANDRADE, Carlos Drummond de. O
amor natural. Rio de Janeiro: Record, 1994.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da
poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1981.
BARTHES, Roland. Fragmentos de um
discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a
modernidade. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
BOSI, Alfredo. História concisa
da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
CAMPOS, Haroldo de. A arte no
horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977
----------------------------.
Hegel, Marx, Lamartine. In Ruptura dos gêneros na literatura Latino-Americana.
São Paulo: Perspectiva, coleção Elos, 1977.
CARVALHO, Elmar. Lira dos
cinquentanos. Teresina: FUNDAPI, 2006.
________________. Rosa dos ventos
gerais. Teresina: SEGRAJUS, 2002
________________. O poeta e seu
labirinto: poemas escolhidos. Teresina: APL, 2023.
ECO, Umberto. Obra aberta. São
Paulo: Perspectiva, 1976.
EULÁLIO, Carlos Evandro M. Poesia
contemporânea: possíveis causas de sua evolução. Teresina: Presença Ano VII, n.
14 janeiro / junho de 1985.
FAUSTINO, Mário. Diálogos de
Oficina. Poesia-Experiência, org. Benedito Nunes, São Paulo: Perspectiva, 1977.
PAZ, Otávio. Signos em rotação.
São Paulo: Perspectiva, 1976.
POUND, Ezra. A arte da poesia.
São Paulo: Cultrix, 1976.
SILVA, Anazildo Vasconcelos da.
Lírica modernista e percurso literário brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Rio,
1978.
SOARES, Angélica. Gêneros
literários. São Paulo: Ática, 1999.
quarta-feira, 14 de agosto de 2024
segunda-feira, 12 de agosto de 2024
Uma crônica ao documentário “Barras do Marataoã e da Saudade”
Francisco Almeida, Elmar e Francisco Carlos Araújo (Chico Acoram) |
Uma crônica ao documentário “Barras do Marataoã e da Saudade”
Barras do Marataoan ...
Dos cânticos de pássaros
e cântaros e címbalos de águas
em cantatas e cascatas
no rocio róseo-violáceo da manhã.
Barras das sete barras
– candelabro de sete braços de prata
líquida a escorregar macia
no dorso duro das pedras (...)”
Todo o auditório ficou de pé para, mais uma vez, aplaudir com entusiasmo o grande artista das letras, o poeta, o romancista Elmar Carvalho que, por sua vez, agradeceu a gentileza e o carinho dos barrenses.
domingo, 11 de agosto de 2024
3 POSTAIS DE PARNAÍBA - POSTAL II
Fonte: Google |
3 POSTAIS DE PARNAÍBA
Elmar Carvalho
POSTAL II
No cais da beira-rio
lavadeiras sem roupas
lavam as roupas dos ricos.
O vento brinca de pegar
parelha com o Igaraçu
e venta vadio no ventre
das velas dos veleiros e
verga suas vigas entre
vagidos e volatas.
À noite filhos-de-papais
tomam cerveja e Coca-Cola
encostados nos carrões,
enquanto as lavadeiras
passam as roupas lavadas.
A noite passa. Passa o
vento.
Passa o rio, o
riso/rosa
rápido passa.