sábado, 9 de janeiro de 2021

COROA: ZONA PORTUÁRIA E BOÊMIA

Foto meramente ilustrativa   Fonte: Google



COROA: ZONA PORTUÁRIA E BOÊMIA


Ivanildo di Deus Souto

Professor, poeta e escritor

 

Este artigo é parte integrante do ensaio “Luzilândia: cidade latino-americana produto do projeto colonizador do Império Ultramarino Português”.

O ensaio é resultado de anos de pesquisa, bibliográfica e principalmente de campo, quando o autor decidiu escrever sobre o processo de construção do tecido histórico da sua cidade natal, situada no norte do Piauí e na ribeira do Parnaíba. Um processo imbricamente relacionado ao modu operandu colonizador das principais cidades piauienses: depois do genocídio das nações indígenas, a concessão de sesmarias e a instalação de fazendas-criatórios de gado bovino, principalmente.

Não se trata de uma apologia à personalidades tidas, pela ótica historiográfica acrítica e conservadora, como “vultos históricos”, mas, sim, apologético àqueles agentes populares que, no cotidiano, no “Chão da História”, lapidaram e contribuíram materialmente, com suas vidas, seus ofícios e suas labutas à feitura do tecido histórico local propriamente dito.

No caso específico, este artigo trata sociologicamente da construção do primeiro bairro da cidade, também nas margens do rio Parnaíba: a COROA, da sua gente simples, do seu modu vivendu, de fatos marcantes e de aspectos sócio-econômico-culturais.

É dedicado, “in memorian”, à dona Babá (possuidora de um dos cabarés, à época); à sua filha, professora de Matemática,  Maria Madalena Pereira da Silva (que foi professora e, anos mais adiante, colega de trabalho magisterial do autor); à dona Luizinha Florindo, lavradora e tia do autor (ela criava um urubu-rei apelidado de “Copinha”, encanto e atração da molecada à época; e a José Henrique Braga , o Bragão (neto de Bobô Clareano e ativista cultural luzilandense).

À leitura, então.

Luzilândia, 31 de dezembro de 2020

O autor

 

COROA: ZONA PORTUÁRIA E BOÊMIA


A partir da última década do século XIX a navegação a vapor contribuiu substancialmente para que Porto Alegre se tornasse num dos entrepostos ribeirinhos-comerciais mais importantes do Piauí, como também propulsionou a formação do primeiro bairro e ao surgimento da primeira zona de prostíbulos da vila: a Coroa.

As inúmeras embarcações a vapor que transitavam pelo rio, ora a juzante da vila, rumo à Coroa de São Remígio, à Barra do Longá e à Parnaíba; ora a montante, no sentido de Repartição ( Saco/Matias Olímpio e Brejo ), de Porto dos Marruás, de Miguel Alves, de União, de Teresina, de Palmeirais,  Amarante e de Floriano, traziam pessoas que aportavam na povoação muitas vezes para ficar.

Esses novos moradores eram atraídos pelas notícias de crescimento da recém emancipada vila, fato ocorrido em março de 1890. Entre profissionais de diferentes áreas, aventureiros e prostitutas que aportavam em Porto Alegre, muitos estavam imbuídos de espírito empreendedor e montavam seus negócios e prostíbulos. E, como em inúmeras cidades brasileiras a zona ribeirinha e portuária era o local propício ao surgimento de cabarés, a Coroa firmou-se como a primeira zona de meretrício da vila.

Algumas décadas mais tarde a quitanda de Bobô Clareano (Clareano Braga), por ficar defronte ao porto onde as maiores embarcações ancoravam (Rua do Porto), tornou-se no “point comercial” do bairro. Bobô Clareano vendia gêneros alimentícios e produtos diversos. Também servia refeições, lanches e bebidas, uma espécie de quitanda-restaurante. Para não fugir à regra da zona de meretrício, mantinha um cabaré nos fundos do comércio. Devido ao fluxo constante do vai-e-vem de embarcações, de passageiros e de boêmios, a movimentação no espaço era intensa. (1)

Neste ínterim, a Coroa já dispunha de vários prostíbulos, que eram construções pequenas e rústicas feitas de paredes de taipa (talos da palmeira babaçu ou varas e barro), piso de chão batido e cobertura de palha, principalmente palha de babaçu. Tornaram-se famosos os cabarés da Nonatona, da Joanona, da Babá e da Maria Viúva; as quitandas do Antonio Leitoa e do Alípio Moreira; os bares do " Véi da Coroa" e do Raimundo Zeferino; a bodega do Chico Sales (pai) e do Babau Sales (filho), que vendia pinga e panelada; a barbearia do Venceslau Barbeiro, pai do Juvenal Barrigudo (“que era meio abilobado e tocava berimbau pra ganhar algum   trocado”); Augusto   Severo (tirador de côco, embolador), Manoel Egídio (vendedor de canoadas de areia); Luizinha Florindo (que criava um urubu rei, apelidado de “Copinha”); João dos Santos (lavrador, pescador e feitor de caixões para defuntos); Manoel Soares, o “Manel Goiaba” (lavrador e pescador) e sua esposa Maria  Nonata dos Santos, a “Maria Goiaba” (doméstica); dentre outros,  eram moradores de destaque no bairro. (2)

0 bar do Raimundo Zeferino situava-se no " portal de entrada" do bairro (antes, pertencia a outro dono), bem no ponto da encruzilhada onde a rua do lado esquerdo (Travessa Antônio Pires) dava acesso à quitanda do Bobô Clareano e ao porto; e a rua do lado direito (Ruas Antônio Pires, Projetada e Geraldo Pinto), dava acesso à outra parte do bairro e à estrada do antigo povoado Suruega. O formato da confluência das ruas lembra o símbolo da raiz quadrada.

Nos arredores do bairro, na antiga Rua do Padeiro (rua Antônio Carvalho) floresceram as quitandas do Bilozinho (violeiro), Zé Agápito, João Clementino e João Santana e o Bar do Chaga Dona; evidentemente, também, a padaria do Valdimiro Carvalho, que deu nome à rua.

Entre o início dos anos de 1950 até meados dos anos de 1980, com o advento da radiola (vitrola) e a facilidade de pagamento oferecida pelas lojas de eletrodomésticos que foram se instalando na cidade, tanto os cabarés como os bares da Coroa que adquiriram o aparelho tocavam, diuturnamente e em volume alto, músicas de cantores famosos nacionais, como Odair José, Waldick Soriano, Paulo Sérgio, Zé Ribeiro, Carlos Gonzaga, Fernando Mendes, José Roberto, Jerry Adriany, Diana, Roberto Carlos e tantos outros.

 A Coroa era considerada zona de baixo meretrício “.  Seus cabarés eram rústicos, como já se foi dito; suas prostitutas (“as raparigas”, como eram comumente conhecidas) e os seus clientes eram pessoas de baixa renda. Dadas às suas paupérrimas condições sócio- econômicas e de trabalho, elas integravam um grupo de alta vulnerabilidade e, portanto, susceptíveis a todos os percalços da profissão, principalmente quando se utilizavam do seu principal instrumento de trabalho: a relação sexual.

Geralmente desprovidas de quaisquer recursos de proteção, mantinham relações naturalmente e contraíam várias doenças sexualmente transmissíveis, como candidíase, gonorreia, sífilis e outras. Também, sob esse prisma, contagiavam seus clientes. Assim é que, numa tentativa de evitar tais doenças, ao término de toda relação mantida elas lavavam o pênis do cliente com água e sabão ou sabonete, dispostos a bacia e o sabão ou o sabonete numa pequena mesa ou cadeira e acompanhados de uma pequena toalha para enxugar. Detalhe importante: o “ritual” era corriqueiro e as prostitutas não o consideravam como humilhação, embora  repugnável e anti-feminista.

Um outro aspecto advindo das suas condições de vulnerabilidade refere-se ao comportamento delas. Era frequente a briga entre elas, sobretudo quando estavam embriagadas e disputavam clientes; cicatrizes no rosto, braços e pernas eram vistas comumente, provocadas pelos cortes de pequenos instrumentos, como facas. canivetes e lâminas de barbear, facilmente escondidos nas suas roupas. Também, brigavam com os clientes, aqueles que lhes tratavam com grosserias ou que lhes negavam o pagamento pelo coito.

Em Histórias de Évora (Carvalho, 2017), o protagonista do enredo, Marcos Azevedo, narra os riscos da profissão:  “... a prostituição tinha os seus riscos e mazelas... gravidez indesejada, doenças venéreas, abusos de homens grosseiros ou embriagados, logro na hora do pagamento dos honorários e brigas com outras raparigas e homens por causa de ciúmes e outras rixas, que afloravam durante as bebedeiras.” (3)

Destaque-se, ainda, um outro aspecto da situação de vulnerabilidade e decorrente da posição geográfico- ribeirinha da Coroa e que afetava diretamente a vida de todos os seus moradores: o fenômeno das enchentes do rio Parnaíba. As enchentes alagavam todo o bairro e, quando eram muito pujantes, as casas ficavam submersas ou apenas com o telhado na superfície; em consequência, eram total ou parcialmente destruídas. Assim, desabrigados, os coroenses eram forçados a se alojarem em escolas, armazéns e outros espaços desprovidos de infra-estrutura mínima que lhes possibilitasse condições dignas de hospedagem e, até mesmo, de sobrevivência.

 

O INCÊNDIO

 

No dia 29 de dezembro de 1969, por volta das 16 horas (“Hora da Viração”, fenômeno típico da região que acontecia às tardes, por volta das 15h30, quando os ventos começavam a soprar), iniciou-se um incêndio num dos casebres de taipa e palha típicos do bairro, consequência das péssimas condições sócio-econômicas dos seus moradores: a grande maioria eram, além das prostitutas, lavradores, pescadores, estivadores, lavadeiras e domésticas. (4).

 

Maria de Fátima Carvalho, filha de Manel e Maria Goiaba, moradora do bairro à época e que vivenciou o fato, diz que “o incêndio começou na casa de dona Capucha, já idosa, que, ao cozer sua comida, esqueceu um pano de prato em cima da panela posta num fogareiro de barro. O pano pegou fogo e logo alcançou o teto de palhas”. (5).

 

Como ventava muito, o incêndio tomou proporções alarmantes e rapidamente consumiu cinquenta e dois casebres e só foi contido por volta das 21h00 na antiga Rua do Cruzeiro (Travessa Barão do Rio Branco), no alto do Morro do Zé Cambéba (artesão, feitor de selas para cavalos e outros artefatos de couro). (6). Nesta rua foram queimadas as casas de dona Selvina (viúva); de Teresinha Lisboa (lavandeira e já viúva de Zé Cambéba); de Chico Biana (funileiro e trompetista da Banda Municipal) e da sua esposa Maria Pequena (empregada doméstica); de Antônio Plácido (o Antônio Lino, pedreiro) e da sua esposa, Francisca Copada (professora). (Essa casa queimou parcialmente); e a padaria do Anísio Padeiro e da sua esposa Maria do Socorro (que ficava do outro lado da rua e paralelamente ao Luzilândia Hotel, de Dulce Nascimento e do seu esposo Raimundo Vitória). A casa de Albertino Florindo (policial militar) e da sua esposa Santília Pereira Monteiro (doméstica) foi derrubada para que o fogo não chegasse aos armazéns da empresa de Raimundo Marques e Durvalino Castelo Branco, que ficavam ao seu lado esquerdo. Nos armazéns haviam muitos produtos inflamáveis, como latas de querosene e de gasolina, cera de carnaúba, algodão e amêndoas de coco babaçu. Desesperados, os moradores da Rua do Cruzeiro levaram seus móveis e pertences para o patamar da igreja de Santa Luzia. “Foi um alvoroço danado”. (7).

 

No incêndio, de dimensões catastróficas, morreu o pai da prostituta Nonatona, “seu” Antonio Jonas, que era paraplégico das pernas, estava sozinho em casa e não pode ser socorrido pelos vizinhos devido à rapidez da propagação das chamas. No ano seguinte, 1970, a prefeitura municipal promoveu a reconstrução dos casebres dando-lhes cobertura de telhas. O prefeito de então era o agropecuarista Mariano Fortes de Sales. (8).

 

Em 1999, parte da área ligada ao bairro, nas proximidades do igarapé do Bernardo Patinha (a àrea é paralela à pista de acesso à ponte sobre o rio Parnaíba , que liga Luzilândia ao povoado Porto Formoso, em São Bernardo, no Maranhão),  e que pertencia ao DNOCS -Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), foi ocupada por diversas famílias sem-teto e culminou com o surgimento do bairro Cajueirão.

 

Nos dias atuais (2020) ainda existem alguns cabarés na Coroa, a “zona do baixo meretrício luzilandense”, como o Cabaré da Izalene Goiaba. Bobô Clareano, seu morador e quitandeiro mais famoso, é nome da escola de ensino fundamental do bairro: a Unidade Escolar Clareano Braga, da rede municipal de ensino.

 

Bobô Clareano só foi homenageado por reivindicação dos moradores do bairro após a luta coordenada pelo líder comunitário de então, Carlos Alberto Cuia, quando também as ruas do bairro foram contempladas com os nomes dos seus moradores mais ilustres. Este evento aconteceu em setembro de 2000, quando a escola foi reformada na administração do prefeito Vicente Sabóia de Meneses Neto.  O educandário foi construído em 1995, na gestão do prefeito Francisco Marques sobrinho (Chico Marques) e tinha o nome de “Valmércia Marques”, ex-primeira dama do município. (9).

 

NOTAS:

1.            Carta de Valdecírio Teles Veras ao autor, postada de Santo andré (SP) e datada de junho de 1999 ; e entrevista com Bobô Teixeira, em agosto de 2009;

2.            Entrevista citada com Bobô Teixeira e com Maria de Fátima Carvalho, em agosto de 2009;

3.            CARVALHO, Elmar. Histórias de Évora. Teresina, Academia Piauiense de Letras, 2017;

4.            Entrevista citada com Maria de Fátima Carvalho;

5.            Idem, ibidem;

6.            Entrevista com Zé Pereira de Barros (Zé Pequeno), em agosto de 2009;

7.            Entrevista com Santília Pereira Monteiro, em Agosto de 2009;

8.            Entrevista citada com Maria de Fátima Carvalho;

9.            Informação obtida nas placas de inauguração e de reforma da escola.

 

SOBRE O AUTOR 

Ivanildo di Deus Souto é professor da rede pública estadual de Ensino do Piauí, lotado no Centro Educacional de Tempo Integral Zacarias de Góes (Liceu Piauiense), em Teresina; pesquisador da História Latino-Americana Brasileira; escritor e autor de artigos publicados em jornais regionais e nacionais e militante politico da causa da soberania e da autodeterminação do povo latino-americano-brasileiro.   

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