COROA: ZONA PORTUÁRIA E BOÊMIA
Ivanildo di Deus Souto
Professor, poeta e escritor
Este artigo é parte integrante do
ensaio “Luzilândia: cidade latino-americana produto do projeto colonizador do
Império Ultramarino Português”.
O ensaio é resultado de anos de
pesquisa, bibliográfica e principalmente de campo, quando o autor decidiu
escrever sobre o processo de construção do tecido histórico da sua cidade
natal, situada no norte do Piauí e na ribeira do Parnaíba. Um processo
imbricamente relacionado ao modu operandu colonizador das principais cidades
piauienses: depois do genocídio das nações indígenas, a concessão de sesmarias
e a instalação de fazendas-criatórios de gado bovino, principalmente.
Não se trata de uma apologia à
personalidades tidas, pela ótica historiográfica acrítica e conservadora, como
“vultos históricos”, mas, sim, apologético àqueles agentes populares que, no
cotidiano, no “Chão da História”, lapidaram e contribuíram materialmente, com
suas vidas, seus ofícios e suas labutas à feitura do tecido histórico local
propriamente dito.
No caso específico, este artigo
trata sociologicamente da construção do primeiro bairro da cidade, também nas
margens do rio Parnaíba: a COROA, da sua gente simples, do seu modu vivendu, de
fatos marcantes e de aspectos sócio-econômico-culturais.
É dedicado, “in memorian”, à dona
Babá (possuidora de um dos cabarés, à época); à sua filha, professora de
Matemática, Maria Madalena Pereira da
Silva (que foi professora e, anos mais adiante, colega de trabalho magisterial
do autor); à dona Luizinha Florindo, lavradora e tia do autor (ela criava um
urubu-rei apelidado de “Copinha”, encanto e atração da molecada à época; e a
José Henrique Braga , o Bragão (neto de Bobô Clareano e ativista cultural
luzilandense).
À leitura, então.
Luzilândia, 31 de dezembro de
2020
O autor
COROA: ZONA PORTUÁRIA E BOÊMIA
A partir da última década do
século XIX a navegação a vapor contribuiu substancialmente para que Porto
Alegre se tornasse num dos entrepostos ribeirinhos-comerciais mais importantes
do Piauí, como também propulsionou a formação do primeiro bairro e ao surgimento
da primeira zona de prostíbulos da vila: a Coroa.
As inúmeras embarcações a vapor
que transitavam pelo rio, ora a juzante da vila, rumo à Coroa de São Remígio, à
Barra do Longá e à Parnaíba; ora a montante, no sentido de Repartição (
Saco/Matias Olímpio e Brejo ), de Porto dos Marruás, de Miguel Alves, de União,
de Teresina, de Palmeirais, Amarante e
de Floriano, traziam pessoas que aportavam na povoação muitas vezes para ficar.
Esses novos moradores eram
atraídos pelas notícias de crescimento da recém emancipada vila, fato ocorrido
em março de 1890. Entre profissionais de diferentes áreas, aventureiros e
prostitutas que aportavam em Porto Alegre, muitos estavam imbuídos de espírito
empreendedor e montavam seus negócios e prostíbulos. E, como em inúmeras
cidades brasileiras a zona ribeirinha e portuária era o local propício ao
surgimento de cabarés, a Coroa firmou-se como a primeira zona de meretrício da
vila.
Algumas décadas mais tarde a
quitanda de Bobô Clareano (Clareano Braga), por ficar defronte ao porto onde as
maiores embarcações ancoravam (Rua do Porto), tornou-se no “point comercial” do
bairro. Bobô Clareano vendia gêneros alimentícios e produtos diversos. Também
servia refeições, lanches e bebidas, uma espécie de quitanda-restaurante. Para
não fugir à regra da zona de meretrício, mantinha um cabaré nos fundos do
comércio. Devido ao fluxo constante do vai-e-vem de embarcações, de passageiros
e de boêmios, a movimentação no espaço era intensa. (1)
Neste ínterim, a Coroa já
dispunha de vários prostíbulos, que eram construções pequenas e rústicas feitas
de paredes de taipa (talos da palmeira babaçu ou varas e barro), piso de chão
batido e cobertura de palha, principalmente palha de babaçu. Tornaram-se
famosos os cabarés da Nonatona, da Joanona, da Babá e da Maria Viúva; as
quitandas do Antonio Leitoa e do Alípio Moreira; os bares do " Véi da
Coroa" e do Raimundo Zeferino; a bodega do Chico Sales (pai) e do Babau
Sales (filho), que vendia pinga e panelada; a barbearia do Venceslau Barbeiro,
pai do Juvenal Barrigudo (“que era meio abilobado e tocava berimbau pra ganhar
algum trocado”); Augusto Severo (tirador de côco, embolador), Manoel
Egídio (vendedor de canoadas de areia); Luizinha Florindo (que criava um urubu
rei, apelidado de “Copinha”); João dos Santos (lavrador, pescador e feitor de
caixões para defuntos); Manoel Soares, o “Manel Goiaba” (lavrador e pescador) e
sua esposa Maria Nonata dos Santos, a
“Maria Goiaba” (doméstica); dentre outros,
eram moradores de destaque no bairro. (2)
0 bar do Raimundo Zeferino
situava-se no " portal de entrada" do bairro (antes, pertencia a
outro dono), bem no ponto da encruzilhada onde a rua do lado esquerdo (Travessa
Antônio Pires) dava acesso à quitanda do Bobô Clareano e ao porto; e a rua do
lado direito (Ruas Antônio Pires, Projetada e Geraldo Pinto), dava acesso à
outra parte do bairro e à estrada do antigo povoado Suruega. O formato da
confluência das ruas lembra o símbolo da raiz quadrada.
Nos arredores do bairro, na
antiga Rua do Padeiro (rua Antônio Carvalho) floresceram as quitandas do
Bilozinho (violeiro), Zé Agápito, João Clementino e João Santana e o Bar do
Chaga Dona; evidentemente, também, a padaria do Valdimiro Carvalho, que deu
nome à rua.
Entre o início dos anos de 1950
até meados dos anos de 1980, com o advento da radiola (vitrola) e a facilidade de
pagamento oferecida pelas lojas de eletrodomésticos que foram se instalando na
cidade, tanto os cabarés como os bares da Coroa que adquiriram o aparelho
tocavam, diuturnamente e em volume alto, músicas de cantores famosos nacionais,
como Odair José, Waldick Soriano, Paulo Sérgio, Zé Ribeiro, Carlos Gonzaga,
Fernando Mendes, José Roberto, Jerry Adriany, Diana, Roberto Carlos e tantos
outros.
A Coroa era considerada zona de baixo
meretrício “. Seus cabarés eram
rústicos, como já se foi dito; suas prostitutas (“as raparigas”, como eram
comumente conhecidas) e os seus clientes eram pessoas de baixa renda. Dadas às
suas paupérrimas condições sócio- econômicas e de trabalho, elas integravam um
grupo de alta vulnerabilidade e, portanto, susceptíveis a todos os percalços da
profissão, principalmente quando se utilizavam do seu principal instrumento de
trabalho: a relação sexual.
Geralmente desprovidas de
quaisquer recursos de proteção, mantinham relações naturalmente e contraíam
várias doenças sexualmente transmissíveis, como candidíase, gonorreia, sífilis
e outras. Também, sob esse prisma, contagiavam seus clientes. Assim é que, numa
tentativa de evitar tais doenças, ao término de toda relação mantida elas
lavavam o pênis do cliente com água e sabão ou sabonete, dispostos a bacia e o
sabão ou o sabonete numa pequena mesa ou cadeira e acompanhados de uma pequena
toalha para enxugar. Detalhe importante: o “ritual” era corriqueiro e as
prostitutas não o consideravam como humilhação, embora repugnável e anti-feminista.
Um outro aspecto advindo das suas
condições de vulnerabilidade refere-se ao comportamento delas. Era frequente a
briga entre elas, sobretudo quando estavam embriagadas e disputavam clientes;
cicatrizes no rosto, braços e pernas eram vistas comumente, provocadas pelos
cortes de pequenos instrumentos, como facas. canivetes e lâminas de barbear,
facilmente escondidos nas suas roupas. Também, brigavam com os clientes,
aqueles que lhes tratavam com grosserias ou que lhes negavam o pagamento pelo
coito.
Em Histórias de Évora (Carvalho,
2017), o protagonista do enredo, Marcos Azevedo, narra os riscos da
profissão: “... a prostituição tinha os
seus riscos e mazelas... gravidez indesejada, doenças venéreas, abusos de homens
grosseiros ou embriagados, logro na hora do pagamento dos honorários e brigas
com outras raparigas e homens por causa de ciúmes e outras rixas, que afloravam
durante as bebedeiras.” (3)
Destaque-se, ainda, um outro
aspecto da situação de vulnerabilidade e decorrente da posição geográfico- ribeirinha
da Coroa e que afetava diretamente a vida de todos os seus moradores: o
fenômeno das enchentes do rio Parnaíba. As enchentes alagavam todo o bairro e,
quando eram muito pujantes, as casas ficavam submersas ou apenas com o telhado
na superfície; em consequência, eram total ou parcialmente destruídas. Assim,
desabrigados, os coroenses eram forçados a se alojarem em escolas, armazéns e
outros espaços desprovidos de infra-estrutura mínima que lhes possibilitasse
condições dignas de hospedagem e, até mesmo, de sobrevivência.
O INCÊNDIO
No dia 29 de dezembro de 1969,
por volta das 16 horas (“Hora da Viração”, fenômeno típico da região que
acontecia às tardes, por volta das 15h30, quando os ventos começavam a soprar),
iniciou-se um incêndio num dos casebres de taipa e palha típicos do bairro,
consequência das péssimas condições sócio-econômicas dos seus moradores: a
grande maioria eram, além das prostitutas, lavradores, pescadores, estivadores,
lavadeiras e domésticas. (4).
Maria de Fátima Carvalho, filha de
Manel e Maria Goiaba, moradora do bairro à época e que vivenciou o fato, diz
que “o incêndio começou na casa de dona Capucha, já idosa, que, ao cozer sua
comida, esqueceu um pano de prato em cima da panela posta num fogareiro de
barro. O pano pegou fogo e logo alcançou o teto de palhas”. (5).
Como ventava muito, o incêndio
tomou proporções alarmantes e rapidamente consumiu cinquenta e dois casebres e
só foi contido por volta das 21h00 na antiga Rua do Cruzeiro (Travessa Barão do
Rio Branco), no alto do Morro do Zé Cambéba (artesão, feitor de selas para
cavalos e outros artefatos de couro). (6). Nesta rua foram queimadas as casas
de dona Selvina (viúva); de Teresinha Lisboa (lavandeira e já viúva de Zé
Cambéba); de Chico Biana (funileiro e trompetista da Banda Municipal) e da sua
esposa Maria Pequena (empregada doméstica); de Antônio Plácido (o Antônio Lino,
pedreiro) e da sua esposa, Francisca Copada (professora). (Essa casa queimou
parcialmente); e a padaria do Anísio Padeiro e da sua esposa Maria do Socorro
(que ficava do outro lado da rua e paralelamente ao Luzilândia Hotel, de Dulce
Nascimento e do seu esposo Raimundo Vitória). A casa de Albertino Florindo
(policial militar) e da sua esposa Santília Pereira Monteiro (doméstica) foi
derrubada para que o fogo não chegasse aos armazéns da empresa de Raimundo
Marques e Durvalino Castelo Branco, que ficavam ao seu lado esquerdo. Nos
armazéns haviam muitos produtos inflamáveis, como latas de querosene e de
gasolina, cera de carnaúba, algodão e amêndoas de coco babaçu. Desesperados, os
moradores da Rua do Cruzeiro levaram seus móveis e pertences para o patamar da
igreja de Santa Luzia. “Foi um alvoroço danado”. (7).
No incêndio, de dimensões
catastróficas, morreu o pai da prostituta Nonatona, “seu” Antonio Jonas, que
era paraplégico das pernas, estava sozinho em casa e não pode ser socorrido
pelos vizinhos devido à rapidez da propagação das chamas. No ano seguinte,
1970, a prefeitura municipal promoveu a reconstrução dos casebres dando-lhes
cobertura de telhas. O prefeito de então era o agropecuarista Mariano Fortes de
Sales. (8).
Em 1999, parte da área ligada ao
bairro, nas proximidades do igarapé do Bernardo Patinha (a àrea é paralela à
pista de acesso à ponte sobre o rio Parnaíba , que liga Luzilândia ao povoado
Porto Formoso, em São Bernardo, no Maranhão),
e que pertencia ao DNOCS -Departamento Nacional de Obras Contra as
Secas), foi ocupada por diversas famílias sem-teto e culminou com o surgimento
do bairro Cajueirão.
Nos dias atuais (2020) ainda
existem alguns cabarés na Coroa, a “zona do baixo meretrício luzilandense”,
como o Cabaré da Izalene Goiaba. Bobô Clareano, seu morador e quitandeiro mais
famoso, é nome da escola de ensino fundamental do bairro: a Unidade Escolar
Clareano Braga, da rede municipal de ensino.
Bobô Clareano só foi homenageado
por reivindicação dos moradores do bairro após a luta coordenada pelo líder
comunitário de então, Carlos Alberto Cuia, quando também as ruas do bairro
foram contempladas com os nomes dos seus moradores mais ilustres. Este evento
aconteceu em setembro de 2000, quando a escola foi reformada na administração
do prefeito Vicente Sabóia de Meneses Neto.
O educandário foi construído em 1995, na gestão do prefeito Francisco Marques
sobrinho (Chico Marques) e tinha o nome de “Valmércia Marques”, ex-primeira
dama do município. (9).
NOTAS:
1. Carta de Valdecírio Teles Veras ao autor, postada de
Santo andré (SP) e datada de junho de 1999 ; e entrevista com Bobô Teixeira, em
agosto de 2009;
2. Entrevista citada com Bobô Teixeira e com Maria de Fátima
Carvalho, em agosto de 2009;
3. CARVALHO, Elmar. Histórias de Évora. Teresina, Academia
Piauiense de Letras, 2017;
4. Entrevista citada com Maria de Fátima Carvalho;
5. Idem, ibidem;
6. Entrevista com Zé Pereira de Barros (Zé Pequeno), em
agosto de 2009;
7. Entrevista com Santília Pereira Monteiro, em Agosto de
2009;
8. Entrevista citada com Maria de Fátima Carvalho;
9. Informação obtida nas placas de inauguração e de reforma da escola.
SOBRE O AUTOR
Ivanildo di Deus Souto é professor da rede pública estadual de Ensino do Piauí, lotado no Centro Educacional de Tempo Integral Zacarias de Góes (Liceu Piauiense), em Teresina; pesquisador da História Latino-Americana Brasileira; escritor e autor de artigos publicados em jornais regionais e nacionais e militante politico da causa da soberania e da autodeterminação do povo latino-americano-brasileiro.
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