Ivanovick Pinheiro
A dupla homenagem recebida fortalece o
meu desejo de continuar participando do processo de ensino e
aprendizagem. Estivemos juntos em momentos muito enriquecedores sob
diversos aspectos. Sempre me empenhei em tornar estes momentos
construtivos e mais uma vez quero contribuir para formar um
sentimento constante de reflexão e crítica no pensamento de cada um
de vocês que formam a turma Ivanovick Feitosa Dias Pinheiro.
E para isso, quero relembrar que
recentemente – neste mesmo auditório – tive a oportunidade de
debater acerca do problema central da sociedade contemporânea e qual
o papel do profissional do Direito no adequado equacionamento do
problema.
Estudiosos da metodologia e filosofia
jurídica apontam que esse problema essencial é a consagração da
Justiça.
Descrevi as limitações da ciência em
solucionar o problema da justiça e de como a sua consagração deve
sempre ser o norte na atuação daqueles que atuam não apenas na
seara jurídica, mas de uma maneira geral na sociedade atual.
Mas não vou repetir as minhas palavras
daquele dia. Resgatei o tema tratado naquele discurso para refletir
com vocês sobre a existência de barreiras
mais ou menos complexas para o atingimento da justiça.
E uma em especial tem se mostrado digna
de atenção no contexto atual da sociedade brasileira: a corrupção
e as constantes violações ao princípio da moralidade.
O descumprimento dos deveres básicos de
probidade e de moralidade são barreiras para a consagração da
própria justiça.
O profissional – notadamente aquele
formado no contexto atual da sociedade brasileira – não pode se
furtar do dever de contribuir para a moralização das instituições
e o combate a corrupção. Com vocês não é diferente.
Uma pesquisa descompromissada na história
recente da república brasileira mostra um grande número de casos
envolvendo desvio de comportamento de agentes estatais que
institucionalmente deveriam proteger os interesses da coletividade.
Esquemas de corrupção nas diversas
instâncias de Poder, tais como as Casas Legislativas, os Tribunais
de Contas, ou mesmo envolvendo advogados, Membros da Administração
Pública direta e indireta, membros do Poder Judiciário e do
Ministério Público.
Alguns apontam que o motivo de tamanha
agressão aos valores consagrados na Constituição Federal advém do
próprio direito. Em outras palavras, a complexidade do sistema
normativo acaba permitindo aos ímprobos a utilização do próprio
regime jurídico para impedir uma eventual responsabilização.
O tempo também se apresenta como um
aliado dos corruptos. O Min. Fux questiona da exposição de motivos
do novo Código de Processo Civil: Como vencer o volume de ações e
recursos gerado por uma litigiosidade desenfreada, máxime num país
cujo ideário da nação abre as portas do judiciário para a
cidadania ao dispor-se a analisar toda lesão ou ameaça a direito?
Entretanto, antes de abordar diretamente
a questão da moralidade, revela-se digno de destaque as
conseqüências de uma compreensão principiológica do direito e de
que maneira essa compreensão pode influenciar na vida de vocês.
E o faço porque entendo que não é
apenas por cumprir a lei que vocês contribuirão para construir um
ambiente segundo o princípio da moralidade.
PRIMEIRA PARTE
O Direito não pode se constituir numa
barreira para o descumprimento dos deveres de probidade e de
satisfação dos interesses da coletividade.
Um sistema jurídico que não proporcione
à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos não se
harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático
de Direito.
De nada adianta construir um ordenamento
coerente e harmônico interna
corporis, com uma estética
perfeita, se a aplicação desse modelo não é funcional. O
distanciamento entre o discurso normativo e a aplicação da norma –
notadamente por aqueles que atuam na seara jurídica – facilita a
atuação do agente ímprobo.
O modelo dogmático de compreensão do
direito já não satisfaz os desejos da coletividade.
Em algumas oportunidades estivemos juntos
discutindo as influências do neoconstitucionalismo e do
pós-positivismo na compreensão atual do direito.
Não seria oportuno relembrar todas essas
influências. Mas certamente é oportuno destacar que a construção
de um sistema jurídico sustentável e harmônico reclama a presença
de princípios fundamentais.
Os dogmas não se legitimam apenas por
estarem presentes nos Códigos. Não se desconhece, por exemplo, que
o genocídio dos nazistas contra os judeus na Europa e sua brutal
repressão aos opositores políticos – a catástrofe do século
passado – foi justificada legalmente. Mas inúmeros outros exemplos
poderiam ser citados: a escravidão e a segregação racial são
emblemáticos para a compreensão do que se pretende deduzir aqui.
Existiam leis permitindo o trabalho escravo.
Assim, inúmeras violações à dignidade
da pessoa humana possuíam inclusive previsão normativa.
Até a Segunda Guerra Mundial, os
direitos humanos eram assunto interno dos Estados soberanos. Não
havia um marco internacional mínimo de proteção. Os Estados
abusavam de sua atribuição legislativa, impondo uma posição de
supremacia tal que impedia a consagração da liberdade e da
igualdade.
Os direitos dos indivíduos eram
internacionalmente relevantes somente quando um país desejava
proteger seu cidadão em outro país ou quando queria enviar um
diplomata a outro país.
No século XIX, desenvolveram-se muitas
disposições para a proteção do indivíduo, iniciadas com o Código
Lieber norte-americano, de 1863, que se referia à proteção de
pessoas que não participaram da guerra, civis e feridos, ou
prisioneiros de guerra.
Os esforços da Inglaterra para a
abolição do tráfico de escravos e da escravidão, motivados
principalmente por questões econômicas, merecem destaque.
Sob as égides da Liga das Nações, a
Convenção sobre a Escravatura, um dos primeiros tratados de
direitos humanos universais, foi aprovada em 1926, e a escravidão,
sem exceção, proibida.
Após a Primeira Guerra Mundial, outra
grande área de regulação foi a proteção internacional das
minorias. Como o surgimento de novos Estados a partir do colapso dos
Impérios multiétnicos Austro-Húngaro, Otomano e Russo, a proteção
às minorias foi usada para permitir a coexistência dessa mistura
colorida de povos.
Assim, em geral, até a Segunda Guerra
Mundial não havia uma proteção sistemática dos direitos humanos.
A Carta das Nações Unidas, em seu
preâmbulo, dispôs que os Estados-Membros comprometem-se com os
direitos humanos. Com isso, o fundamento para o desenvolvimento dos
direitos humanos foi dado, sem, contudo, uma concreta definição a
ser cumprida ou direitos humanos designados.
Certamente, é a partir de uma dimensão
principiológica que o sistema jurídico pode se converter num
instrumento de consagração dos direitos humanos.
Diante desse contexto, uma primeira
conclusão pode ser obtida:
A Lei elaborada pelo Legislativo e
sancionada pelo Executivo, não se legitima apenas pela sua
obediência ao processo legislativo descrito na Constituição. A
história recente da humanidade demonstra que alguns direitos
fundamentais devem figurar como legitimadores da atuação
legislativa estatal.
Em palavras bem simples: Não é
porque está na Lei que uma regra é legitima. São os princípios –
consagrados na Constituição e nos tratados internacionais – que
se impõe no ordenamento estatal e que obrigam todos aqueles que
atuam como agentes públicos.
Portanto, a construção de um Estado
Democrático não decorre tão somente da aplicação da Lei, vista
está sob o aspecto restritivo. São os princípios que devem figurar
como vetores para atuação de vocês no dia-a-dia de suas
atribuições.
SEGUNDA PARTE
Diante dessa primeira conclusão,
impõe-se a compreensão do que são esses princípios fundamentais e
como eles podem na prática influenciar na atuação dos bacharéis
em direito.
Na lição do professor Celso Antonio
Bandeira de Mello, inúmeras vezes repetida pelos estudiosos do
direito, o princípio deve figurar como mandamento nuclear de um
sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se
irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo
de critério para compreensão e inteligência delas, exatamente
porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo,
conferindo-lhes a tônica que lhe dá sentido harmônico.
São muitos os princípios que figuram
como alicerces do Estado Democrático de direito no Brasil. E são
eles – nas palavras do professor Newton de Lucca – que informam
e enformam
o
sistema jurídico. Informam comunicando o núcleo essencial de um
sistema, dando-lhe significado. Enformam porque dão forma.
Um sistema político somente se legitima
democraticamente se estiver assentado nos postulados da liberdade e
da igualdade de todos e voltado a assegurar que o governo seja fruto
de deliberação tomada pelo conjunto dos membros. Impõe-se através
do respeito e da aplicação da Constituição, bem como na idéia de
que o Poder Público se legitima pela consagração dos direitos
fundamentais.
Todos os formandos hoje presentes não
desconhecem que a atuação do Poder Público no exercício de suas
funções é marcada pela presença de dois supraprincípios: a) a
supremacia do interesse público sobre o privado e; b) a
indisponibilidade do interesse público.
Os dois supraprincípios marcam o
constante conflito que acontece no exercício da função
administrativa: a consagração da supremacia da coletividade e o
respeito aos direitos dos administrados.
A supremacia e a indisponibilidade do
interesse público revelam-se através de inúmeros outros
princípios: a legalidade, a isonomia, a moralidade, a publicidade, a
responsabilidade e a eficiência. Além desses, o devido processo
legal, o contraditório e a ampla defesa.
Todos eles compõem a essência da ordem
jurídica e nos dizeres de Celso Antonio compõem o espírito das
leis, servindo de critério para compreensão e inteligência delas
Mas como indiquei no início, o momento
atual do Estado brasileiro, potencia econômica mundial, que
conseguiu como poucos Estados enfrentar as duas crises mundiais,
reclama uma atenção especial ao PRINCÍPIO DA MORALIDADE.
O art. 37 caput da CRFB prevê
explicitamente o princípio da moralidade como de observância
obrigatória para a Administração Pública.
Além
dele, a Constituição autoriza no art. 5º, LXXIII, que qualquer
cidadão pode propor ação popular que vise anular ato lesivo ao
patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à
moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio
histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovado má-fé,
isento de custas processuais e do ônus da sucumbência.
Inúmeros
estudiosos defendem que não é producente separar em compartimentos
o direito e a moral. Melhor é integrá-los. Na verdade, o
administrador deve atentar que em tema de direitos e garantias
individuais a interpretação deve ser a mais ampla. Conferindo maior
efetividade.
A
moralidade administrativa possui conteúdo específico, que não
coincide, necessariamente, com a moral comum da sociedade. Insere-se
no conteúdo da moral exigida de vocês formandos: a ética, a
probidade, a lealdade, o decoro, a boa-fé e a honestidade.
Egon
Bockmann ensina que o Estado Democrático de Direito cria um laço
incindível entre democracia e moralidade. A sociedade – ao
participar do processo democrático – ‘insere’ conteúdo moral
nas decisões administrativas.
A
jurisprudência dos Tribunais Superiores tem sido pródiga na
aplicação do princípio da moralidade em suas decisões.
O
princípio da moralidade encontra previsão não apenas na
Constituição Federal. A Lei que rege o processo administrativo no
âmbito federal afirma que a Administração Pública obedecerá,
dentre outros, aos princípios da moralidade. A mesma lei exige uma
atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé.
Por
seu turno, a norma que regulamenta o combate à Improbidade
Administrativa (Lei 8.429/92) expressa que os agentes públicos de
qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita
observância dos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos.
A
atuação de cada um de vocês, nas diversas atividades que poderão
desempenhar deve ser pautada pela incidência de parâmetros morais.
A
moralidade atua para ampliar o controle das atividades, por isso
Marçal Justen Filho defende que a moralidade é princípio ‘em
branco’, pois o seu conteúdo não se exaure em comandos concretos.
Mas isso não quer significar que ele seja inaplicável.
Assim,
não apenas a Administração como também os particulares devem
obediência a moralidade nas suas relações. Isso é reforçado
quando o particular exerce a função pública através de
delegações, concessões, autorizações e permissões.
E
quais são as conseqüências do descumprimento do princípio da
moralidade?
Quaisquer
atos produzidos em dissonância com a ordem jurídica e de impossível
convalidação, devem ser declarados inválidos. E aqueles que agem
em dissonância com o princípio da moralidade devem ser
responsabilizados.
Não
esquecer, entretanto, que a ordem jurídica é uma só, e a questão
da invalidação dos atos devem ser vista com os olhos focados também
no princípio da segurança jurídica e no princípio da confiança.
Nesse quadro, uma segunda conclusão:
A
moralidade administrativa possui conteúdo específico, que não
coincide, necessariamente, com a moral comum da sociedade. A moral
administrativa exige ética, probidade, lealdade, decoro, boa-fé e
honestidade.
A
legalidade estrita não implica em obediência à moralidade. Todos
os que estão aqui presentes exigem dos formandos uma atuação
segundo o princípio da moralidade.
Não
interessa aos pais, familiares, amigos e professores de vocês que
alcancem o sucesso profissional, se não forem capazes de compreender
essa lição fundamental: Não existe regime democrático, igualdade
e consagração da dignidade sem a obediência dos agentes estatais
ao princípio da moralidade.
TERCEIRA
PARTE
São deveres morais básicos a
imparcialidade e a boa-fé. O princípio da boa-fé baseia-se na
confiança no comportamento alheio, que possui dois componentes:
ética e segurança jurídica.
Fala-se em boa-fé objetiva e boa-fé
subjetiva. A subjetiva é a boa-fé crença. É o desconhecimento da
ilicitude. Investiga-se a vontade e intenção do indivíduo.
A boa-fé objetiva – aquela que
interessa ao agente público, ao advogado, ao delegado, ao
procurador, ao promotor, ao magistrado e a todos vocês que estão
colando grau nessa noite – manifesta-se externamente por meio do
comportamento do agente.
Cobraremos de vocês, concludentes hoje
aqui presentes, quando no desempenho de suas funções a obediência
à boa-fé objetiva. Seus atos serão avaliados segundo o parâmetro
da boa-fé.
São conseqüências da aplicação da
boa-fé: a interdição do abuso de direito, impedindo o excesso no
exercício de prerrogativas legítimas; a negativa ao exercício
inútil de direitos, de modo a não obter nenhum resultado
proveitoso; o dever de sinceridade (não mentir e não omitir); o
dever de colaboração e o dever de informação (não omitir dados).
Além da boa-fé, exigiremos a obediência
ao princípio da imparcialidade. Ele também é uma vertente da
moralidade.
O dever profissional de vocês é
aproximar o modelo normativo da aplicação concreta do direito.
A interpretação jurídica não pode
servir de instrumento para distanciar o sistema legal do sistema
social.
A teoria dos sistemas de Luhman é capaz
de demonstrar a validade da afirmação de que apesar de
normativamente fechado o sistema legal é cognitivamente aberto.
Conforme Marcelo Pereira de Mello “a
idéia de que o sistema legal constitui um sistema fechado não deve
obscurecer o fato de que todo sistema mantém conexões com seu
ambiente. (MELLO, Marcelo Pereira de. A perspectiva sistêmica
na sociologia do direito: Luhmann e Teubner. Tempo Social –
Revista de Sociologia. USP. São Paulo, v. 18, n.1, p. 351-373,
junho.2006, p. 353.)
Luhmann já destacou o particular
relacionamento entre o sistema legal e o ambiente societário. O
sistema jurídico é “cognitivamente aberto” na medida
em que é estimulado pelas informações do ambiente e em contínua
adaptação às exigências do ambiente.
Ora, se a conclusão de Luhmann estiver
correta pode-se inferir que todos aqueles que compõem esse “ambiente
societário” são capazes de influenciar no sistema legal.
Em poucas palavras: o direito se alimenta
do ambiente no qual está inserido. Como vocês estão inseridos
nesse ambiente, devem influenciar positivamente a construção de um
modelo que não se descuida da moralidade, impedindo que a corrupção
seja um obstáculo à construção da justiça.
Marcelo Neves destaca no seu “A
constitucionalização simbólica” a discrepância entre a função
hipertroficante simbólica e a insuficiente concretização jurídica
dos diplomas constitucionais. Neves destaca que algumas vezes a
Constituição não passa de uma confirmação dos valores sociais,
de uma legislação-álibi, ou mesmo de um instrumento para adiar a
solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios.
O texto constitucional não é
suficientemente concretizado normativo-juridicamente de forma
generalizada. Algumas vezes existe uma preponderância do sistema
político sobre o jurídico.
Certamente será exigido de todos vocês
concludentes do curso de direito: contribuam para o equilíbrio dos
sistemas político e jurídico.
CONCLUSÃO
A construção do pensamento jurídico de
todos vocês deve ser baseado em valores e princípios democráticos,
igualitários, solidaristas e humanistas.
O sistema jurídico se molda a partir da
legislação e da atuação dos atores jurídicos.
Não existe justiça num Estado soberano
marcado pela corrupção.
A moralidade é princípio que exige
aplicação. Sua previsão normativa não transforma o ímprobo em
honesto. O dever profissional de vocês é aproximar o modelo
normativo da aplicação concreta do direito.
Obrigado pela Homenagem.
O tempo em que estivemos juntos em sala
de aula foi recompensador. Trabalhei para que essa compreensão de
respeito a dignidade estivesse presente em todos os momentos. A
fraternidade foi recorrente em nossos encontros e hoje não foi
diferente. Boa Noite.
(*) Discurso proferido pelo professor e defensor público Ivanovick Pinheiro, na qualidade de paraninfo dos formandos da turma que leva o seu nome - Curso de Direito - 2012 - NOVAFAPI.
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