DIÁRIO
[Pádua Marques e seus contos para Simplício Dias]
Elmar Carvalho
04/11/2020
Recebi, poucos dias atrás, pela velha ECT, um exemplar, com amável dedicatória, do livro Vinte contos para Simplício Dias, com 112 páginas. Bem encadernado e impresso, teve a capa, a formatação e a programação visual elaboradas de forma impecável pelo jornalista, escritor e poeta Paulo Moura, paradigmático irmão maçônico, meu conterrâneo e velho conhecido.
Além
do mais, a obra tem o luxuoso valor agregado de conter várias ilustrações desse grande artista plástico, um dos maiores
em seu gênero. Fiquei ainda honrado de estar incluído na lista impressa de
agradecimentos, embora certo de não ter tido mérito para isso. Não tem
prefácio, porém possui elucidativas “orelhas” e um esclarecedor e conciso texto
na contracapa.
O
autor, em seu sentimento de gratidão, esclarece que será eternamente agradecido
a Batista Teles “por dar condições para que este trabalho fosse publicado”.
João Batista Mendes Teles é meu conhecido há várias décadas, e fazia parte dos
colaboradores do jornal Inovação.
Um
dos pioneiros em pesquisas técnico-científicas de estatística, no final dos
anos 1970, começo dos 80, preparou várias pesquisas para diagnóstico econômico-social
de Parnaíba para esse periódico. Professor da UFPI por várias décadas. É o
titular do mais importante Instituto privado de pesquisa estatística do estado,
o Amostragem. Na medida do possível, tem incentivado a cultura e as artes do
Piauí.
Mário
de Andrade de forma sintética e bem-humorada, com alguma dose, talvez, de ironia,
disse que conto é tudo aquilo que chamamos de conto. Para mim, sem considerar a
questão da qualidade e outros gêneros textuais limítrofes, sua frase de efeito
é certeira e exata. Já tive oportunidade de dizer que, para mim, um conto que
não conta, não conta, porque nada vale
como um conto.
Seria
qualquer outro artefato literário, menos um conto. Seria uma crônica, um poema
em prosa, um devaneio, mas não um conto. Entendo que esse gênero literário deve
narrar, deve relatar, deve conter uma estória ou história. Nesse aspecto, os
contos de Pádua Marques, não há negar, são realmente contos, uma vez que
contam, que relatam um fato, um acontecimento, um episódio.
Contudo,
por razões que abaixo alinhavo, não os considero propriamente contos históricos,
no mesmo sentido que se dá ao chamado romance histórico. Classifico-os, em sua
quase totalidade, como sendo contos de época. É que eles não se restringem a “ficcionar”
sobre fatos da história de Parnaíba ou da biografia de Simplício Dias da Silva,
como à primeira vista o leitor poderia achar, induzido pelo título do livro.
No
meu entendimento, um conto histórico ou um romance histórico deverá ser
permeado por fatos e episódios da história de uma localidade ou da biografia de
uma figura histórica, evidentemente com “variações sobre o tema”, ou seja, com “licenças
fictícias”, todavia verossímeis, compatíveis com desdobramentos que poderiam
ter acontecido, ou que ensejem dúvidas sobre se aconteceram ou não, inclusive levando
em conta o que o imaginário popular acaso tenha transformado em episódios
lendários.
Vejamos
o que diz a Wikipédia, em acesso do dia 03/11/20, sobre o gênero romance
histórico, que mutatis mutandis pode se aplicar a conto histórico:
“O romance histórico é um gênero literário em
prosa em que a narrativa ficcional se ambienta no passado. Geralmente, os
romances históricos são marcados pela influência (em menor ou maior grau) de
eventos e personagens históricos no desenrolar da trama. Ao longo da história,
o gênero teve um papel importante em trazer para um público leitor
conhecimentos históricos através das narrativas de ficção.”
Conquanto
os contos sejam ambientados numa Parnaíba da época de Simplício Dias, os seus
relatos, episódios e entrechos não se basearam, quase, em fatos narrados nos
compêndios de História e em episódios da vida romanesca de Simplício e de
outras figuras históricas. Aliás, a história e o tempo, às vezes, são até
subvertidos pela ficção, como no conto A caveira de burro, em que “o velho
Domingos Dias da Silva vivia batendo cabeça, tentando de tudo para aposentar-se
pelo INSS”. Nesse mesmo texto, consta que “chamaram umas ciganas, que ficam ali
perto da Banca do Louro”.
Portanto,
Pádua Marques, em sua ilimitada liberdade de ficcionista, usando do que chamei
de “licença fictícia”, provocou uma verdadeira distorção no tempo-espaço,
porquanto na época de Domingos e Simplício Dias, como é sabido por todos e
muito mais pelo próprio autor, consciente de sua arte e de sua liberdade de
criar livremente, o INSS ainda não existia, e o Louro, embora seja um patrimônio
histórico, devidamente tombado pelos seus amigos, ainda não havia nascido,
claro está.
Essas
elucubrações se destinam apenas ao leitor, porquanto Pádua Marques tem plena
consciência de seu fazer literário e dos recursos de que poderia dispor, pois
já é um contista de longa cabotagem e já traquejado na arte romanesca, tanto
que o próprio título do livro já é uma pista do que acabei de explanar: Vinte
contos para Simplício Dias. “Atentai” bem: contos para, e não de ou sobre Simplício
Dias.
O
autor usou a sua capacidade imaginativa e de criação e as colocou a serviço de
sua ficção, que em três ou quatro contos tangenciou o conto histórico, e
colocou os seus episódios e tramas no cenário de uma Parnaíba do início do
século XIX, através de fatos compatíveis com o que bem poderia acontecer numa
cidade dessa época, além de ter usado com habilidade e verossimilhança personalidades
históricas, nos moldes feitos em um romance à clef.
No
mesmo diapasão, o texto da contracapa referenda ou chancela o que acabo de
abordar, senão vejamos: “Neste livro a vida política de Simplício Dias da Silva
é o menos importante. Não que ele não mereça. Merece e muito. Mas é que outros
autores, historiadores de formação ou até mesmo leigos já o fizeram com grande
alcance. Seria apenas mais um livro a tratar sobre a engenharia política e econômica
dessa parte do Brasil, distante e muito da Corte.”
De
fato, no vertente livro, a História de Parnaíba e a biografia de Simplício Dias
não foram importantes, por mais notáveis que tenham sido (e foram). O que
importa mesmo são as narrativas, frutos da imaginação de Pádua Marques, que são
atraentes e bem delineadas, embora não relatem fatos rocambolescos e
mirabolantes, nem tampouco escabrosos e escatológicos.
Um
episódio, todavia, me chamou muito a atenção: foi o fato de o Simplício
fictício ter uma preocupação imensa com o seu passado, a ponto de mandar matar
uma testemunha, a meu ver analfabeta, por ser um escravo, e que sequer poderia ter
tomado conhecimento do conteúdo dos documentos, que foram queimados e
enterrados pelo escravo de sua confiança. Que tanto ele teria a temer? Ou
apenas se tornou frágil e assombrado por
causa de doenças, da velhice e da proximidade da morte?
O
ficcionista seguiu a tradição da contística. Seus textos respeitam o tempo da
física, tal como o conhecemos em nossa vida prática e cotidiana. Não faz
inversões temporais. Seguem o tempo cronológico, com início, meio e fim bem
definidos. Não usa, em consequência, o chamado flashback, que pode dificultar a
compreensão do leitor mediano.
Em momento algum, para dar voz a suas personagens, lançou mão do discurso direto. Pode-se dizer que usou sempre ou quase sempre o discurso indireto, com o narrador em terceira pessoa. Portanto, esquivou-se do discurso indireto livre, do fluxo de consciência, do monólogo interior, etc. A sua narrativa é feita por intermédio de um narrador onisciente (ou quase), que tudo enxerga, que tudo escuta, que tudo perscruta e desvenda. Não atribuo a isso defeitos ou virtudes; estou fazendo apenas uma simples constatação.
O que importa, também, é a linguagem e a forma dos contos, que foram elaborados em linguagem escorreita, clara, objetiva, concisa, em frases curtas, quase telegráficas, que me fazem lembrar Hemingway, em seus melhores momentos, sem firulas, adereços e excrescências, sem adiposidades e adjetivações desnecessárias.
É isso o que efetivamente importa. E Pádua Marques, nesse aspecto, se houve com maestria.
Excelente!
ResponderExcluirMuito obrigado.
ResponderExcluirCaro amigo Elmar Carvalho, bela análise literária dessa nova obra lançada na nossa invicta Parnaíba: “Vinte contos para Simplício Dias”. Aprecio o estilo literário do escritor Pádua Marques, um certa vez li um conto dele aqui no Blog, que achei tão verocímeis os fatos e personagens que perguntei-o se eram reais ou fictícios. Estou com saudades da Parnaíba, de conversar com os velhos amigos na Praça da Graça, de ir à Banca do Louro, comprar esse livro e lê-lo deitado numa rede sob o embalo dos ventos dos verdes mares bravios e refletindo sobre as lutas pela subsistência dos meus ancestrais quando por lá estiveram.
ResponderExcluirAbraço,
Everardo-Parnaibano-PI
Muito obrigado por acessar o nosso blog e as nossas matérias.
ResponderExcluirMestre Elmar, não conheço a obra objeto desta resenha literária, mas é como se a tivesse manuseado, tal a clareza e virtuosidade com que você a expõe, e desnuda, o seu interior, colocando-a nua diante de nós. Mais do que uma crítica, é uma aula completa e didática sobre a arte de escrever uma narrativa ficcional curta, para depois explorar as entranhas da obra em si, como já disse,ao tempo em que nos chama atenção para a liberdade que o autor concedeu a si mesmo para desembarcar da normatividade das regras e dar vazão à sua imaginação, acrescentando elementos novos ao enredo já extraordinário da vida do grande Simplição da Parnaíba. Liberdade que você muito bem batizou com o designativo "licença fictícia".
ResponderExcluirMuito obrigado, caro amigo e erudito Araújo, você entendeu perfeitamente o meu texto. Sua análise do meu comentário foi perfeita, e corresponde ao que porfiei em explicar. Obrigado por suas palavras, que bem assimilaram o que procurei dizer. Abraço.
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