Elmar Carvalho
Há algum tempo corriam boatos, na localidade Canafístula, de que na proximidade da passagem da Apertada Hora aparecia um lobisomem. Diziam que algumas pessoas já o teriam visto. As pessoas acreditavam que a besta surgia em noites de lua-cheia; que era algum compadre amancebado com comadre. Eu achava que isso era uma injustiça contra os homens: se o compadre virava bicho, por que a comadre também não virava, e se transformava numa loba-mulher? Ou mesmo numa mula-sem-cabeça? O certo é que o pecado, se é que tal fato era pecado, não poderia ter dois pesos e duas medidas, com o homem sendo punido com a maldição da licantropia e a mulher sendo poupada. Ambos eram culpados. Se um não aceitasse o acasalamento ou fornicação, como diz a Bíblia, o outro também não poderia pecar. Mas os encantamentos são mesmo misteriosos, e se não fossem misteriosos não seriam encantamentos. Os boatos sobre o lobisomem da Apertada Hora iam crescendo e tomando proporções assustadoras, e já poucas pessoas passavam à noite pelo indigitado lugar. Essa passagem, cheia de mistérios, lendas e assombrações, ficava mais ou menos na metade do caminho entre os povoados Canafístula e Boqueirão. Com os moradores de Boqueirão não havia problema, pois moravam a cerca de 15 quilômetros da sede do município, onde ficava o posto de saúde mais próximo, e onde morava o único médico da região; lá também ficava o único estabelecimento que merecia, embora com ressalva, o nome de farmácia. Mas com Canafístula a situação era muito mais difícil, pois esta ficava a 18 quilômetros de Boqueirão, de onde a estradinha seguia para a sede municipal. Seria quase impossível não se passar pela passagem da Apertada Hora, pois o desvio seria pela mata fechada, sem caminho, subindo as encostas íngremes da serra, contornando obstáculos que encompridariam consideravelmente a distância entre os dois povoados. A coisa chegou a tal ponto, que ninguém de Canafístula foi ao festejo de Santo Antônio, em Boqueirão, que era muito animado, com novenas, quermesses, leilões, bancas de jogos e festas dançantes. Mas era diversão, dava para se passar sem diversão. Era o que se dizia, como um triste consolo.
Chico Doca era um caboclo calado, desconfiado, arisco, e considerado homem de coragem e decidido. Quando perguntado sobre se acreditava nas estórias sobre o lobisomem, limitava-se a dar de ombros, e resmungava que não acreditava nem desacreditava; que o mundo era composto, e nele havia de tudo. Acrescentou, num rasgo verborrágico, inusitado em se tratando de sua pessoa, que não gostava de gastar sua coragem à toa, mas que se houvesse necessidade enfrentaria o problema, ainda que fosse numa noite de lua-cheia. Era solteiro, filho único e órfão de pai. Morava sozinho com a sua velha mãe. Uma tarde, por volta das cinco horas, a anciã sentiu uma coisa ruim, com febre e fortes dores de cabeça. Chegou a gritava de dor. Chico Doca não contou conversa. Imediatamente selou seu cavalo e seguiu para a cidade, à procura do médico e de medicamentos para sua mãe. Sequer por um momento, pensou no lobisomem. Ainda que tivesse pensado, iria do mesmo jeito.
Quando retornava, alta noite, já na saída de Boqueirão, e ao ver a lua-cheia brilhando no céu, foi que se lembrou do lobisomem e da passagem da Apertada Hora, que era uma garganta estreita entre dois desfiladeiros abruptos. Destemido, seguiu adiante, em marcha firme, levando os remédios aviados pelo médico e comprados na farmácia da cidade. Era um homem prevenido, e por isso, para se defender de algum ladrão ou de alguma onça ou outra fera, levara um facão e um forte bordão de jucá, que derrubaria qualquer novilho, com uma pancada no cabelouro. Quando se aproximava da temida passagem, viu um vulto escuro. Pareceu-lhe que o cavalo refreava os passos, até empacar de vez, como se estivesse cismado de alguma coisa, deste mundo ou do outro. Pensou que se voltasse a sua missão não estaria cumprida, e sua mãe poderia morrer por falta de socorro. Por outro lado, teria que dizer que vira o lobisomem, quando não tinha nenhuma certeza sobre o que realmente via, diante da pouca claridade da lua, escondida entre nuvens, e porque a fera estava quase oculta entre as folhas. Fosse por causa do refugo do animal ou porque preferisse enfrentar a marmota em terra firme, para melhor desferir o golpe com o facão ou com o porrete, marchou a pé em direção ao local onde estava o bicho, de tocaia, meio encoberto por uma pequena moita de mufumbo. Ante o inelutável, marchou rápido, empunhando o cacete na mão esquerda e levando o facão na destra. Esperando o salto da fera a qualquer momento, caminhou para a luta, para a vida ou para a morte. Ao se aproximar, resolveu passar o jucá para a mão direita e o facão para a canhota, e desfechou um violento golpe na besta, que saiu em louca disparada, a escoicear o vento e a rinchar desesperado. O temido lobisomem era apenas um pacato jumento. Foi a última vez que se ouviu falar do lobisomem da passagem da Apertada Hora.
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