9 de março
AS CINZAS DO CARNAVAL
Elmar Carvalho
Este ano, por motivo de ordem pessoal, resolvi não viajar. Passei o período carnavalesco em casa, lendo, refletindo e descansando. Conquanto nunca tenha sido propriamente um folião, acho que foi (o deste ano) o melhor carnaval de minha vida. De modo que estou, nesta quarta-feira de Cinzas, repousado, saudável e sem arrependimento financeiro. Sei que muitos, vendo as cinzas frias do carnaval que passou, estarão arrependidos pelos excessos de álcool e de gastos, imersos em letárgica e doentia ressaca, em que o arrependimento tardio lhes devasta o ânimo.
Como disse, nunca fui propriamente um amante das folias momescas. Não tinha jogo de pernas nem molejo de cintura, e não gostava de sair pulando e saracoteando pelo salão. Por sinal, nunca gostei das alegrias forçadas e artificiais, motivadas por aglomerações festivas, com essa música gritada, gutural e ensurdecedora de hoje, em que o cantor parece estar a se espremer, com letras degradantes, de duplos sentidos, de trocadilhos grosseiros ou mesmo de escancarado mau-gosto, de forte apelo pornô, quase sempre. Não me enternecem, não me agradam o senso estético e não me fazem melhor, e não lhes vislumbro, ainda que longinquamente, qualquer toque de sublimidade, que deve ter a boa arte. Quase sempre são um apelo ao hedonismo, ao sexo pelo sexo, em que a maior criatividade parece ser chamar a mulher de “cachorra”, quando o cantor lhe pede a “patinha”.
Contudo, em minha juventude, fui a alguns bailes de carnaval, mais para estar com os amigos, degustar umas cervejas e aventurar a conquista de alguma namorada. Gostava das marchinhas carnavalescas, que tinham verdadeira música e conteúdo. Por vezes eram letras românticas, que falavam de pierrôs apaixonados, colombinas chorosas, corações dilacerados, jardineira a prantear flores mortas e as tristes cinzas da quarta-feira pós carnaval, em que o arrependimento tomava de conta do ressacado folião; ou quando, cessada a euforia artificial do álcool, da dança, da música e do ócio irresponsável, a depressão batia, ante o retorno à realidade do cotidiano mais trivial.
Talvez por causa dessas reflexões, o imenso poeta Manuel Bandeira, em seu retraimento de tímido e tísico, dizia, em seus versos, que uns tomavam cocaína, e ele, que já tomara tristeza, agora tomava alegria. Em outro poema, esse grande bardo alegava que eram tristes essas músicas de carnaval. De fato, como já disse, algumas letras eram repassadas de tristeza e solidão. A solidão de alguém em plena multidão, a tristeza pungente de algum folião a “tomar alegria” em meio ao frenesi da turbulenta folia momesca.
Acho que a alegria deve ser construída dentro de nós, no dia a dia, com a ajuda das lições espirituais e da arte, do trabalho e das boas ações, da verdadeira música e da boa literatura, que nos eleva espiritualmente e nos fortalece e aprimora o senso estético. Todavia, para não dizer que não falei de “flores”, mas que somente destilei “fel” no “mel” dos outros, devo dizer que ainda gosto de uma boa marchinha carnavalesca, que admiro, pela televisão, o carnaval de Pernambuco, com a dança alegre e moleca do frevo, com as suas sombrinhas multicoloridas; a indumentária, as cores, as fitas, a música e a dança popular dos maracatus.
E, por fim, a música vibrante dos metais em fervorosos frevos e marchinhas e a alegria descontraída e espontânea dos blocos de rua, em que todos se congraçam sem a necessidade da aquisição de caríssimos abadás e luxuosas fantasias. A alegria e a fantasia devem estar em nós mesmos, em nosso imaginário e em nosso espírito. Evoé, Baco! E boas cinzas, nesta quarta-feira de Cinzas.
Curto ainda o silêncio das cinzas e bebo a alegria do recolhimento que fiz no carnaval.Os mais experientes diziam: "Boa romaria faz, quem em sua casa está em paz."
ResponderExcluirMeritíssimo, com a devida aprovação, "assino" embaixo do artigo.
ResponderExcluirColoco-me na sua posição em relação às tais folias de Momo: pura perda de tempo. O carnaval de rua, aqui em Cuiabá, foi a menos de 50 metros de onde moro, no Centro Histórico. Hoje, quarta-feira, dou graças aos céus pelo fato de poder dormir sem toda aquela barulheira infernal. Na minha família, obviamente, tem quem discorde, mas, convenhamos, cada um na sua.
Você, caro Elmar, expressou o sentimento de muitos acerca do que é o Carnaval nos dias atuais.
Grande abraço. Continuo ligado no blog.
Antonio de Souza - Cuiabá-MT
Caros Antonio e Simão Pedro,
ResponderExcluirVocês captaram a mensagem.
Nada contra os foliões; cada qual na sua e cada qual com seu cada qual. O que deploro é a comercialização ostensiva dos dias atuais e essa barulheira deplorável de hoje, praticamente pasteurizada, de letras horrorosas, que chamam música.
Não devemos esquecer do volume de recursos publicos que sao gastos nestas festas onerosas. Nao dar para calcular o quanto o SUS gasta para socorrer vítimas de acidentes causados por pessoas embriagadas,os valores gastos com despesas nos acidentes que causam morte e invalidez. Quanto o governo gasta com os prejuizos dessas festas, sem falar na quantidade de DSTs que são transmitidas durante a festa. grato ROOSEVELT
ResponderExcluirAproveito para ratificar o segundo parágrafo, embora eu tenha apenas 29 anos, não deixei de notar a degradação da cultura musical. A título de exemplo, a música que fez mais sucesso no carnaval da Bahia foi A LIGA DA JUSTIÇA cujo refrão é uma frase duplo sentido e a letra da música, como um todo, não faz sentido nenhum.
ResponderExcluirEu também passei o carnaval na companhia de um bom livro.
Caro Nelson Rios,
ResponderExcluirA companhia de um bom livro é sempre saudável e enriquecedora espiritualmente, e nunca traz nenhum arrependimento. Muito pelo contrário. Agora, uma música do tipo a que você se referiu, além de não fazer nenhum sentido, ainda nos pode fazer perder o sentido, em duplo, triplo ou qualquer sentido...