segunda-feira, 11 de abril de 2011

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS


“NA VIDA INTEIRA QUE PODIA TER SIDO E QUE NÃO FOI”

Elmar Carvalho

Quando conheci dona Isabel Antunes Linhares já ela tinha mais de setenta anos. As rugas vincavam-lhe o rosto e a coluna dorsal vergava ao peso da idade. Conquanto sóbria em sua conversa, tinha seu senso de humor, e não me pareceu revoltada contra o mundo e a vida. Deu-me a impressão de não ter recalques por causa de sua condição de solteira. Vivia de sua aposentadoria de professora do estado. Na casa, situada no bairro Vermelha existia um jardim, com plantas bem cuidadas por ela, como uma espécie de ocupação e lazer. Uma empregada lhe ajudava a cuidar dos afazeres domésticos.

Não a conhecia. Fui visitá-la, por causa de uma história que um velho amigo me contara. Usei como pretexto o fato de ser jornalista, e que estaria cumprindo uma pauta determinada pelo jornal, o que de fato era verdade. O que não lhe revelei é que a pauta fora sugerida por mim, para que eu pudesse ter a desculpa de conversar com essa solteirona, como dizem, não sem alguma conotação pejorativa, como se esse fato fosse sempre negativo, e não pudesse ser uma decisão pessoal ou mesmo uma espécie de vocação ou inclinação da própria personalidade. Em razão da entrevista, colhi muitas informações sobre ela, que adicionei ao que o meu amigo Artur Moreira Veras me contara, para fazer o relato que segue adiante.

Não agi com pressa. Tomei vagarosamente o cafezinho que ela me ofereceu. Demonstrei interesse por seus móveis antigos e por suas flores, o que de resto é verdade, para lhe angariar a simpatia e confiança. Vi um velho retrato na sala de visitas, colocado numa moldura muito bem trabalhada, com dourados nos cantos, denotando haver sido muito cara. À revelia de ser a fotografia em preto e branco, dava para se notar que se tratava de uma mulher loura e de olhos azuis. Revelou-me ser ela, aos 18 anos de idade.
Desculpe-me a observação, não quero ser impertinente, mas nesse retrato está estampada uma das mais belas mulheres que já vi... – disse-lhe, sem muita ênfase, quase como se fosse uma observação corriqueira, de modo que ela não notasse alguma intensão oculta. Vi um breve sorriso estampar-se em seu rosto, que ainda guardava um pouco da beleza juvenil, e uma luminosidade avivar-lhe o olhar. Devo dizer que ela nada me falou sobre sua vida pessoal. Quanto a isso, era uma perfeita esfinge, como se obedecesse a uma rígida disciplina que impusera a si mesma.

Estamos em meados da década de 1950. Artur Moreira Veras foi substituir um colega que se aposentara, pelo período máximo de seis meses, no Banco do Brasil, agência de Jetirana. Por indicação dos colegas, foi hospedar-se na pensão de dona Carolina Antunes Linhares, que ficara viúva mal completara um ano de casada, a melhor da cidade. Era o único mensalista, já que provinha de muito longe, e só poderia visitar seus pais, com os quais morava na capital, uma vez por mês, na melhor das hipóteses, contando com a boa vontade do gerente, para lhe abonar um dia ou dois de ausência. Funcionário do Banco do Brasil, nessa época, mormente em cidade do interior, era muito prestigiado, e era o que se chamava de bom partido, entendendo-se por isso que era o “sonho de consumo” de toda moça casadoira. Foi-lhe reservado na pensão o melhor quarto, exclusivamente para ele.

Jetirana era uma típica cidade do interior nordestino, com seus preconceitos, dissimulados ou não, com seus moralismos, falsos ou verdadeiros, com suas hipocrisias e maledicências. Tinha dois clubes sociais. Um, da chamada alta sociedade, onde não entravam nem pobres, nem negros. O outro, misturado, como se dizia na cidade. Nessa época, e sobretudo nas cidades interioranas, as moças se conservam virgens até o casamento. Não ficavam a sós com um homem depois das nove horas da noite. Os namoros eram em praça pública, à vista de todos, e geralmente sob a vigilância de algum irmão menor da garota, que tudo enredaria aos pais. Artur logo fez os seus amigos. Todavia discreto, nada revelava sobre sua vida na capital, onde moravam seus pais.

Como o leitor atento já deve ter percebido, Isabel era filha única de Carolina Antunes Linhares, apenas remediada, mas pertencente a família ilustre da cidade. A mãe a mantinha sob severa vigilância, porquanto não desejava que ela caísse na boca do povo, como dizia o jargão. Ia a poucas festas, sempre em companhia das primas. Terminara o antigo científico e se preparava para fazer concurso para professora. Um tanto retraída, não tinha namorado, embora tenha dançado algumas vezes nas poucas festas a que fora, com a ajuda das primas, pois dona Carolina não gostava que a filha fosse a eventos sociais. Com a aceitação de Artur como mensalista, e, portanto, passando os sábados e domingos na pensão, quando não existiam outros hóspedes, em geral pessoas que vinham a negócios e caixeiros-viajantes, dona Carolina redobrou a vigilância sobre a filha, pois, como ela dizia para os seus botões, a situação era de gasolina perto de fogo, ou de fome misturada com a vontade de comer.

Para não cansar o leitor, não entrarei em minudências. O fato é que, inevitavelmente, Isabel e Artur conversaram algumas vezes, sobre os mais variados assuntos. Sabedor de que Isabel se preparava para o concurso de professora e de que tinha dificuldade em matemática, o meu amigo Artur, altamente preparado nessa disciplina, da qual havia sido professor até ser chamado para trabalhar no banco, prontificou-se a lhe ensinar essa matéria em suas horas de folga e nos finais de semana. Ele, que fora considerado um grande professor, esmerou-se nesse mister. Embevecido, contemplava-lhe a beleza do rosto, o azul celestial dos olhos, a delicadeza das mãos a empunhar o lápis e a escrever os algarismos. Excedeu-se em paciência a lhe ensinar as fórmulas e a lhe ministrar exercícios. Com que infinita paciência ele não os corrigia, a lhe mostrar docemente, com sua voz mais suave, onde ela errara... Às vezes, como se fosse por acaso, as mãos se tocavam. No início, ela recolhia as suas. Depois, Isabel fingia que não sentira o leve toque, até que um dias as mãos se entrelaçaram, até culminar, dias mais tarde, com o primeiro beijo.

O que Artur nunca dissera a alguém, muito menos a Isabel, é que tinha uma noiva na capital, da qual fora o primeiro namorado. O mais dramático é que essa noiva tinha apenas 17 anos. O namoro começara quando ela debutara, e era uma esplêndida menina-moça. Com a promessa de casamento e depois com a “oficialização” do noivado, quando Artur pedira Gardênia em casamento a seus pais, o homem conquistou-lhe toda sua confiança, e quebrou-lhe as resistências e os pudores, de forma que passaram a fazer sexo, quando as circunstâncias eram propícias. Porém, Gardênia contou ao noivo que a sua menstruação, que era bastante regular, não viera. Diante do inelutável, Artur, de forma firme e calma, disse-lhe para não se preocupar; que iria marcar com seus pais o casamento para dali a dois meses, quando já teria terminado o seu período de serventia em Jetirana. Cumpriu o prometido e marcou o casamento.

Artur estava quase louco, divido entre a paixão avassaladora por Isabel e o amor pela noiva. Quando o término de seu período de serventia em Jetirana se aproximava do fim, ficou angustiado, quase desesperado, praticamente sem saber o que fazer. Pensou em retornar à capital, sem revelar o seu noivado e casamento, já marcado, à moça. Mas achou que isso era uma tremenda covardia e indignidade. Julgou melhor ir protelando a confissão o máximo possível. Porém, quando foi na quarta-feira da última semana em que ficaria em Jetirana, à noite, quando ficou a sós com Isabel, no momento em que lhe estava a ensinar matemática, de chofre, pois, se parasse para pensar, nunca teria coragem para dizer o que achava ser sua obrigação, contou-lhe toda a verdade, com todas as circunstâncias, inclusive a do início da gravidez de sua noiva. Num impulso, Isabel levantou-se e abraçou Artur com toda força, como louca, quase desesperada, e lhe disse com as lágrimas a lhe escorrer pelo rosto angelical:
Vamos embora, eu largo tudo por você... Vamos para longe, para um lugar em que ninguém nos conheça.
Começou a soluçar e a beijar Artur com sofreguidão. Este, ouvindo o barulho de uma porta, pressentiu que dona Carolina já ia retornar à sala. Desvencilhou-se da moça, e voltou a sentar-se à mesa, e a escrever numa das folhas de papel, como se preparasse um exercício de matemática. Isabel dirigiu-se a seu quarto, para se recompor. Voltou alguns minutos depois, aparentemente refeita. O homem lhe deu uma folha com novos exercícios, e se despediu, recolhendo-se a seu quarto.

No dia seguinte, Artur falou com o gerente e conseguiu antecipar sua viagem para aquela quinta-feira, alegando motivo de saúde de pessoa de sua família. Ao almoço, despediu-se de dona Carolina. Pagou suas contas, acrescentando uma generosa gratificação, que a dona da pensão escrupulosamente relutou em receber. Perguntou-lhe por Isabel, tendo sua mãe respondido que ela fora passar o dia com suas primas, como às vezes fazia.

Nunca procurou ter notícias de Isabel, e nem nunca lhe mandou notícias. Contudo, quando ele me contou essa história, senti-lhe a voz embargar algumas vezes, e notei que seu semblante fora tomado por viva emoção. E lhe vi uma furtiva lágrima escorrer do olho esquerdo. Ele, discretamente, simulou reclinar a cabeça na mão correspondente, e recolheu a úmida denúncia com o anelar, onde estavam duas alianças, sinal de sua viuvez. Para mim, simbolizavam seus dois amores, ambos revividos na saudade, que lhe preenchiam os dias de velhice e solidão. Certamente, pensava no verso de Bandeira, que algumas vezes me repetira, e na sua “vida inteira que podia ter sido e que não foi”.

Um comentário:

  1. Joserita Maria de Melo Carvalho12 de abril de 2011 às 08:59

    Triste história! Mas de qualquer maneira se ele tivesse ficado com a Isabel, certamente iria ficar pensando no verso de Manoel Bandeira.... “vida inteira que podia ter sido e que não foi” com a Gardênia.

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