O GOL DO MACUMBEIRO
Elmar Carvalho
Em meados dos anos 80, estive em Amarante, participando de evento lítero cultural. No quintal sombreado por grandes árvores de um casarão, que foi hotel durante alguns anos, quase na esquina da avenida Des. Amaral, perto da escadaria do morro da Saudade, participávamos de alegre libação, entre outras pessoas cujos nomes já não recordo, o Zé Elias Arêa Leão, a Sulica Figueiredo, a Sônia Setúbal e este diarista. O poeta Virgílio Queiroz, que funcionava como uma espécie de anfitrião e cicerone cultural, nos contou curioso episódio cômico, de que ele fora um dos protagonistas. Ao conversar com ele recentemente, puxei esse assunto, para que ele me reavivasse a memória.
Ele e um amigo prepararam um saboroso frito de galinha caipira, que ele fez questão de enfatizar que não fora confiscada do quintal do vizinho. A farofa estava deliciosa, de modo que o cheiro era um verdadeiro perfume sacrificial aos deuses. O Virgílio colocou no matulão um litro de pinga da terra; cana pura, sem “batismos” e desdobramentos espúrios. Talvez um tanto por galhofa de jovem brincalhão ou por espírito de aventura, seguiu para um dos terreiros de macumba existentes na cidade. Ao chegar ao local do culto, o babalorixá se preparava para os trabalhos, com incensos e essências aromáticas de plantas, com que ungia o corpo. O poeta, maliciosamente, colocou uma dose da branquinha no copo e a sorveu de um só gole. Lambeu os beiços, e retirou um pedaço apetitoso do galináceo.
O macumbeiro Tomé não resistiu, e a revirar os olhos pediu um pedaço da ave. O Virgílio disse que havia feito uma promessa de que só comeria do frito quem tomasse antes uma dose da cachaça. O outro respondeu que não poderia beber, pois iria iniciar a sua função religiosa, mas terminou não resistindo, e tomou uma golada, inicialmente pequena. Depois, outra e mais outra, cada vez mais volumosas, sempre acompanhadas de um pedaço do frito, que o poeta lhe dava. Finalmente, prestes a iniciar a dança e as cantigas, virou um copo da calibrina; ficou bastante “calibrado”, e foi executar sua tarefa.
Em determinado momento, a cantiga se transformava numa espécie de responso, em que o Tomé respondia os “pontos” que uma pessoa cantava. Assim como Pôncio Pilatos entrou meio atravessado no “credo”, o Virgílio Queiroz achou de introduzir futebol na cantoria ritualística, de tal arte que, esdruxulamente, perguntou:
- Quem foi, quem foi que fez o gol?
Ante o inesperado da pergunta, o pai-de-santo arregalou os olhos e fitou o vazio, como em busca de inspiração. Depois, caindo em si e se julgando no dever de responder a tão inusitada indagação, cantou, a rodopiar pelo salão, a driblar e atropelar rimas e ritmos, sob efeito etílico:
- Ou foi Pelé, ou foi Pelé, ou foi Pelé... – e não atinando com o nome de nenhum outro jogador, com a mente anuviada pelo álcool, saiu-se com este improviso algo desatinado: … ou foi Pelé, ou foi Pelé ou foi quem foi.
Durante alguns anos, a irmã do Tomé ficou “intrigada” com o Virgílio Queiroz, pois ela levava muito a sério as cerimônias da umbanda, e atribuía ao poeta a culpa de haver premeditado a embriaguez do irmão e chefe umbandista. Mas hoje já não resta sequela desse episódio, que faz parte do anedotário da terra dacostiana.
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