14 de setembro
O PRAZER INEBRIANTE DA LEITURA
Elmar Carvalho
No domingo retrasado fui a Varjota, na boca da caatinga, mais precisamente ao bar/mercearia do senhor Chico Abdias, em busca da cerveja gelada com perfeição, ao menos no ideal dos puristas da degustação. É que nesse comércio havia uma antiga geladeira a gás, da qual, em companhia do Zé Henrique, meu falecido cunhado, sorvi, anos atrás, alguns goles dessa bebida. Segundo os pretensos perfeccionistas, a cerveja oriunda desse tipo de refrigerador seria mais deliciosa, em virtude de que o seu resfriamento é feito de forma lenta, gradativa, sem ocorrência de choque térmico, que lhe possa adulterar o sabor. Nessa localidade, muitos anos atrás, estudei matérias do antigo primário, tendo por base um grosso volume denominado Admissão ao Ginásio, mas, se não me falha a memória, também usei o livro Nosso Tesouro, em que havia lições de Geografia e História do Brasil. Foi quando eu tinha de dez para doze anos, no período em que moramos na localidade São Fernando, situada a dois quilômetros dali.
Foi nessa época que descobri o prazer da leitura. Como já tive ocasião de dizer em outra parte, eu era acostumado com o barulho, o movimento, a eletricidade, as luzes e o conforto da cidade, quando fui passar esse curto período na zona rural, em companhia de meus pais e irmãos. A tristeza me açoitava a alma, sobretudo na hora melancólica do anoitecer, quando a treva parecia aniquilar o mundo e o próprio existir. Esse tédio, que me envenenava o espírito, fez com que eu me voltasse para os livros, e os livros me libertaram dessa tristeza, dando-me conhecimento, ocupação, prazer e aventura. Jorge Luis Borges disse que Deus, em enorme ironia, lhe havia dado, quase ao mesmo tempo, os milhares de livros da Biblioteca Nacional Argentina, da qual foi diretor, e a noite de sua cegueira; já eu diria que Deus, em sua infinita bondade, curou-me do spleen, que por vezes me rondava, com o antídoto do gosto inebriante da leitura.
Primeiro, li os livros da pequena biblioteca de meu pai, entre os quais havia algumas antologias escolares, como as da Aída Costa e as do consagrado mestre José Sá Nunes. Alguns dos livros paternos, eu os havia parcialmente rasgado, por diversão e inocência, quando era ainda criança de quatro a seis anos, aproximadamente. Depois, fui vítima desse meu “vandalismo” infantil; quando contraí o vício da leitura, lamentei muitas vezes as passagens em que tinha de “saltar” as folhas que rasgara, principalmente quando lia, ente os dez e os doze anos, um livro de história e análise da literatura brasileira, no qual havia transcrição exemplificativa de textos, sobretudo poéticos. Sem dúvida, essa obra me serviu para aprimoramento de meu gosto estético, ao fazer comentários de natureza crítica sobre os defeitos e qualidades dos autores.
Também lastimei haver rasgado muitas páginas do Mártir do Gólgota, de Perez Scrich. Ficava angustiado e ansioso porque isso me impedia de saber o desfecho de certas passagens narrativas dessa obra, que era a vida romanceada de Jesus, através de cuja leitura eu parecia viver na Jerusalém de antigamente, a adentrar sinagogas, palácios, templos e a Torre Antônia; em que imaginava ver e ouvir personagens históricos como Herodes, Antipas, Dimas, Pilatos, Anás, Caifás, Salomé, João Batista e outras figuras do tempo de Cristo. Durante muitos anos, alimentei a obsessão de ler esse romance na íntegra. Meu pai me ajudou nessa busca. Apelei até para o erudito monsenhor Antônio Monteiro de Sampaio, que fora meu professor no curso de Administração de Empresas, mas sem sucesso. Já ele não era editado no Brasil há muitos anos. Até que encontrei um conhecido que disse tê-lo. Propus comprá-lo. Essa pessoa, vendo o brilho do meu olhar e minha ansiedade, deu um preço algo exorbitante, e ainda eu tendo de lhe dar mais dois ou três outros livros, que ele indicou, entre os quais Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Dom Casmurro, de Machado de Assis. Minha vontade de ler e reler esse romance histórico era tanta, que aceitei a “extorsão”. Emprestei-o a meu pai, e ele também o releu.
Após eu ler e reler todos os livros do pequeno acervo paterno, minha madrinha Mirozinha passou a me enviar os livros infanto-juvenis da biblioteca do Grupo Escolar Valdivino Tito, que meu pai me trazia, quando ia à cidade. Rapidamente eu os lia, porquanto dispunha de todo o tempo do mundo, para esse prazeroso mister, e, muitas vezes, entrava de noite a dentro, à luz mortiça de uma lamparina. Era advertido para que evitasse essa leitura noturna, pois a deficiente claridade poderia me prejudicar a visão. Nem sempre eu seguia esse conselho, tal a ansiedade em chegar ao fim da história. Após eu devorar a biblioteca do grupo, Mirozinha, que era prima legítima de minha mãe, passou a me enviar os livros de sua biblioteca, inclusive periódicos diversos. Meu pai, na medida de suas possibilidades, também comprava livros e revistas, para nosso deleite, pois ele também fazia as suas leituras.
Uma vez ele me deu de presente um dicionário de bolso, das Edições de Ouro. Como no momento eu não dispunha de outro livro, comecei a lê-lo de cabo a rabo, de fio a pavio, verbete após verbete. O velho me advertiu que dicionário não era para ser lido dessa maneira; que era para ser consultado, quando não se soubesse o significado de uma palavra. Segui-lhe a recomendação. Com a experiência, aprendi que o leitor descobre o significado de muitas palavras através do contexto da leitura. Quando retornamos à cidade, meu pai passou a tomar emprestados os livros da professora Avelina Rosa, de quem não tive a honra de ser aluno, mas de quem sou confrade na Academia Campomaiorense de Artes e Letras. Tendo me tornado amigo do Otaviano Furtado do Vale, filho dos saudosos João Capucho e dona Consolação, fiz amizade com sua irmã Cristina Vale e Silva, que depois veio a ser secretária da Educação do Estado do Piauí; passei a assaltar, por empréstimo, os livros de sua biblioteca, composta por belas coleções de clássicos da literatura universal. Em Teresina, durante algum período, usei as bibliotecas do SESC, da Delegacia do Ministério da Fazenda e a Cromwell Barbosa de Carvalho. Sou muito agradecido a todas essas pessoas, que me proporcionaram a dádiva da leitura, quando eu dela tanto necessitava.
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