CARLOS BRANDÃO (*)
Vida corrida. Pode acreditar! Desde que me dei por gente, não lembro de me entregar a sossegos. Mundo afora, revirando os tempos e lavrando sem descanso, chego aos estágios de maturidade ainda com fôlego para levantar as vistas ao longe de minha idade e me perceber com nitidez em tantos caminhos percorridos ou adjudicados, em paisagens mais diversas.
Andei, revirei, venci léguas de tempo na aventura do viver, sem ao menos me conceder o átimo de fazer contas e cálculos dos riscos de despencar. Por espontaneidade, minha caminhada foi sendo desenhada em encostas de serras com pincéis próprios da imaginação e do sentir e assuntar, por ironia do vencer. Por isso, talvez os meus obséquios, data venia, de hoje com as regras, porque me parecem facilitar o conviver e o bom sonhar. Salvo melhor juízo, bom que se diga, porque esgrimir só com a retórica, cidadão, pode ser menos arriscado que reluzir as outras armas e manhas do sertão. Assim me conta a experiência.
Povoam minha memória as lembranças de Aroazes dos tempos de menino. Rescendem no átrio de minha identidade as recordações de uma infância que não se vai e permanece bem juntinho de mim, colorindo os caprichos do agora. Essas imagens me chegam e se formam em fantasias, o que me permite pensar e sondar a alternativa do mudar, e assim melhor aforar novos espaços que estavam, até então, além de minhas vistas e posses. Mirando sempre lá do cimo, sobre os ombros de mim mesmo, sempre tomei de certo que a realidade se nos aparece por graça de um imaginário instituinte. É luta!
Meu Pai, Álvaro Brandão Filho, era Juiz de Menores em Teresina. Com dez filhos e outros tantos aderentes, investia descansos de finais de semana no interior, distante da Capital e dos protocolos forenses, talvez colhendo reminiscências de uma tradição que se esvaía no violento processo de urbanização encetado a partir da década de 30 no Brasil. Para ele -nascido em 1924- que deixara aos nove anos de idade a infância e o convívio dafamília na Fazenda Concórdia, para se amoldar na marra a sistemas educativos de internato em Teresina, a concessão de final de semana pelo interior, livre de campainhas, relógios ou sinos, representava na maturidade um resgate de interrogações para sondar o fio da meada emaranhado nos pregões da modernização periférica.
Para nós, filhos, já adaptados a disciplinas de escola de cidade, os finais de semana significavam janelas de oportunidades e aventuras, por onde saltávamos os olhos da alma ou, às vezes, pernas e braços do corpo, em busca de outros mundos, adiante das cortinas. Encerrado o expediente da sexta, esquecíamos os compromissos de livros e deveres de casa e ganhávamos quase sempre o rumo de Aroazes, montado em bagagens de artes de se aventurar em bandeiras do descobrir e ocupar.
Até chegarmos à Fazenda São Luiz, nós ajuntávamos pela estrada afora uma coleção de acontecimentos, que distinguiam cada viagem. Sempre lapidávamos uma novidade, apurando o agradável da ocasião, a fim de distribuirmos mais tarde as graças com as conversas da boca da noite, depois de acomodar os trens e os aperreios de viagem.
Posso até dizer que a viagem da Capital ao interior constituía uma espécie de ritual de passagem, pelo qual deixávamos o mundo concreto da vida urbana e nos aventurávamos em confabulações próprias do sertão, esse espaço largo da imaginação e da arte do jogar os trunfos de Cronos. Logo no início da viagem, tínhamos de negociar intransigências e o pequeno espaço do carro, que de algum modo expressava uma estética de poder. Para isso, valiam as repreensões do Juiz, os cuidados de minha mãe, Simplícia Coelho Pires. No balanço da estrada, disputas e refregas por posições no carro ganhavam uma auto-regulação, cedendo a esboços de planos, quase sempre avolumados. As soluções dos conflitos entre os meninos seguiam a lógica do Trasímaco da República platônica e - não fosse a intervenção dos pais - quase sempre atendiam às conveniências dos mais fortes.
Mal chegávamos a Morrinhos e estávamos todos acomodados, com regimentos efetivos de rodízio nos bancos dianteiros e nas janelas, e assim podíamos nos ocupar de curtir a viagem e confabular também traquinagens a serem dosadas e ministradas sobre eventuais convivas de estrada. Mais um pouco, passada a bacia do Rio Berlengas, descíamos a ladeira do Marreiro, de onde avistávamos o longe das serras azuis do inconsciente. A partir daí, contagem regressiva para a entrada da Tabuleta, onde deixávamos a BR 316 por uma estradinha carroçável, de péssima conservação.
Devo repetir que cada viagem tinha sua graça, seu contentamento. A depender das condições climáticas, a programação poderia mudar grave e bruscamente. Quando, por exemplo, tomávamos a estrada de terra pelos tempos das águas, às vezes encontrávamos o riacho Várzea do Mel pelas alturas, à beira do qual ficávamos horas espreitando conveniências de passá-lo. Meu Deus, não sei como minha mãe dava conta de nos manter os filhos em lotes e de ninguém se perder nessas esperas, pois fazíamos todo tipo de provas e danações, quase todas escondidas dos olhos superiores. Emoção maior era quando o carro, com seus cavalos, partia para cima do riacho, sobre águas regidas por Poseidon, filho de Cronos. O coração saltava pela garganta, batendo à porta da razão, que se dobrava em orações e preces, prometendo sacrifícios aos deuses.
Eita, diacho! Entrou água no distribuidor. Problema grave. Motor estancou, dê na chave! Observava? Não. Para ser exato, eu perscrutava cada detalhe das faces de meu pai, investigando certeza de que sairíamos com vida do riacho. Por essa época, cuidei de aprender que as coisas da natureza guardam algum sentido em si e que há um certo mistério no desvelamento e na aparição desses sentidos. Não é bom confiar demasiado nos controles, a natureza surpreende. Preste atenção, menino!
Nessas esperas, encontrávamos de quando em vez os filhos do Doutor Jeremias Pereira da Silva com destino à Fazenda Lagoa do Saco. Os mais novos. Na época, menino só tinha o direito de conversar com alguém de seu igual, e seus filhos nos eram próximos em idade. Quando nos ajuntávamos, a confiança reforçava nas aventuras, e quase sempre caíamos na correnteza do riacho para medir sua pressa. Se as água estavam fortes, com promessa de tempo em demora, saíamos a caçar nas imediações, com baladeiras ou espingardas de ar-comprimido. Mamãe, vamos bem ali. Ali aonde, meu filho? Aqui, pertinho. Cuidado! Ganhávamos o mundo, cada um mais corajoso que o outro, disputando vez por outra até parelhas. Com gaitadas e muita prosa.
Quando hoje acompanho a feliz iniciativa do Instituto Vale do Sambito, organizando o Encontro dos Vaqueiros, sob a regência de Emília Pereira da Silva e inspiração da Nossa Senhora dos Vaqueiros, posso perfeitamente entender o porquê da devoção e do amor de sua família à querida terra de Aroazes. Emília percorrera semelhantes caminhos,experienciando viagens que se encontram veladas no sacrário das boas lembranças.
Fico impressionado, por exemplo, quando indago a meus alunos da Universidade Federal do Piauí se conhecem Aroazes, e eles, perplexos, questionam-me de onde eu teria sacado a razão de tal pergunta. Pronto. Isso é motivo para eu, suspendendo os assuntos dogmáticos, anunciar os encantos dessa terra. Começo lembrando das Missões de Aroazes, do aldeamento jesuítico do início do século XVIII. Exploro a fartura das terras, o gado empolado de gordo no inverno, as caças, os nomes das árvores. A beleza do comprido das várzeas da Fazenda Lindóia, a assentada espaçosa da Fazenda Piripiri do Doutor Ursulino Martins, a Serra de São Benedito fumando. Pergunto-lhes pelo Padre Gabriel Malagrida, Missionário da Companhia de Jesus, responsável por erigir a antiga Capela de Nossa Senhora da Conceição dos Aroazes, no que me confessam total desconhecimento. Daí, reinicio nova preleção, falando-lhes da relação entre o iluminismo de Pombal e a elevação da capitania de São Jose do Piauhy, a expulsão dos jesuítas de Aroazes, presos e enviados a Corte lusitana. Recordo do terremoto de Lisboa, do atentado ao Rei Dom José, a culpa de autoria lançada sobre o missionário Gabriel Malagrida, o ignominioso processo dos Távora. Aqui me demoro, desfio e fantasio acerca de Malagrida. Falo de sua inimizade com o Primeiro Ministro do Reino, Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, das acusações levantadas de heresia e blasfêmia contra o Missionário pelo establishment português, da condenação final do Padre, último mártir da Inquisição, garrotado e queimado na Praça do Rossio em Lisboa, em setembro de 1761, há 250 anos. Esse santo homem que se demorando por Aroazes iniciou a fundação da Capela de Nossa Senhora da Conceição dos Aroazes. Percorrendo de pés descalços ao longo de 30 anos outras terras do norte e nordeste brasileiro, semeou a palavra do Senhor, conventos e seminários pelo Brasil colonial. Hoje, esquecido das elites políticas, reaparece no Brasil consagrado em terreiros de umbanda, como caboclo das sete encruzilhadas, para quem não há caminhos fechados. É o que dizem.
A Missão de Aroazes guarda muitas lendas e histórias. Os alunos, a cada capítulo com que esquadrinho minha exposição, quedam absortos em tantas notícias de um Brasil escondido dele mesmo, a merecer revelações e apreços. Uma ponta de orgulho refulge. Se me resta tempo, o relato se estende a outros interessantes e destacados personagens da historiografia brasileira que viveram em Aroazes. Apresento-lhes Luís Carlos Pereira de Abreu Bacellar, dono da Serra Negra e de inúmeras outras fazendas. Por aqui as emoções ganham ainda mais intensidades e cores, com as diatribes do Coronel de Milícias, Cavaleiro da Ordem de Cristo, responsável pelo ingresso de Manoel de Souza Martins, futuro visconde da Parnaíba, como soldado raso da 5ª Companhia do Regimento de Cavalaria de Milícias de Oeiras. Digo-lhes das façanhas do Coronel, de sua prisão em São Luiz do Maranhão, do casamento por procuração com Luzia Perpétua Carneiro Souto Maior, celebrado pelo Governador do Bispado do Maranhão em 1802. Do descontentamento posterior da refinada esposa Luzia, com a rudeza do marido Luís. Discurso sobre a fuga da esposa, a simulação de doenças para furtar-se das desconfianças do Coronel Luís Carlos e escapar para São Luiz do Maranhão. Tempero com o namoro de Luzia - esposa fugitiva do Coronel Luís Carlos -, já em São Luiz, com o então Governador e Capitão Geral do Maranhão, José Thomaz de Menezes. Segredo-lhes sobre especulações de assassínio do Luís Carlos na mesma época da proclamação da autonomia administrativa do Piauhy em face do Maranhão, por Carta Régia de outubro de 1811. O Coronel que se empenhara tanto nesse tento, movido menos por ciúme ou mágoa da esposa, que lhe apresentara divórcio eclesiástico em 1810, talvez já enamorada do então Governador do Maranhão, com quem depois, já viúva de Luís Carlos, convolou núpcias, gerando filhos, entre os quais D. Rodrigo José de Menezes de Eça, 3º Conde de Cavaleiros, que fora governador civil de Braga e, depois, de Lisboa.
Todos ficam admirados das ricas histórias e fantasias, confiantes em um Piauhy por se revelar. De imediato, o desejo de conhecer Aroazes, sondar esses enigmáticos tesouros da epopéia humana, guardados no processo de colonização do Piauhy.
Cultivar essa tradição guerreira, iconizada no heroísmo do Vaqueiro, constitui um ofício exemplar de manifestação cívica e republicana. A iniciativa da Família Pereira da Silva e das demais ilustres famílias da região de Aroazes - ricas ou pobres de terras - em manter à lume esses encantos exige de nossa parte e dos demais brasileiros não somente a adesão espiritual à glória de nossos antepassados, mas, sobretudo, o compromisso patriótico de também acender juntos luzes que espantem as sombras ideologizadas pelo mandonismo político, pois só assim guardaremos reluzente a chama que clareou de esperanças e de sonhos a paisagem livre do Sertão, a despeito de todas as violências simbólicas inerentes ao processo histórico de formação de nossa brasilidade.
(*) Carlos Augusto Pires Brandão
Juiz Federal e Professor da Univesidade Federal do Piauí
Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela UFPE
Doutorando em Sociologia Jurídica e Instituições Políticas pela Universidad de Zaragoza (Espanha)
Que encanto de texto! Minhas humildes congratulações ao autor, Carlos Brandão. Sou do Maranhão, e apenas uma católica entusiasmada pela História do Brasil e da Igreja. Recentemente, por acaso, tomei conhecimento da história bem resumida de padre Gabriel Malagrida e fiquei muito encantada. Desde então procuro sobre ele e, que alegria, fui bater aqui. Estava atrás das igrejas erigidas pelo padre Malagrida e encontrei esta em Aroazes. Estou muito empolgada por conhecer tudo que eu puder sobre este santo padre. Agradeço a Deus e ao autor, e ao dono do blog, pela publicação.
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