quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A GÊNESE DE DALILÍADA




2 de agosto   Diário de Incontínuo

A GÊNESE DE DALILÍADA

Elmar Carvalho


Há aproximadamente um mês e meio atrás, quando minha mulher retornou de Parnaíba, trouxe um álbum sobre a obra de Dalí, que me fora enviado por Alfredo Fait, que estivera passeando pela Europa, inclusive na Itália, sua terra natal. A obra é da autoria de Carolina Brook, faz parte da coleção Art Dossier, publicada pela editora Giunti. Traz as principais obras do grande pintor espanhol, além de comentários críticos sobre sua trajetória artística. Muitas das pinturas reproduzidas eram de meu conhecimento, posto que tenho me interessado por essa obra instigante desde o final de minha meninice.

Tomei conhecimento da vida e da obra de Salvador Dalí, creio, por volta de meus treze anos, através de uma das grandes revistas da época, salvo engano a O Cruzeiro, que trazia uma reportagem sobre o mestre. A matéria falava sobre sua vida e obra, sobre o seu relacionamento com Gala. Uma das fotografias dava destaque ao seu surrealista bigode, a respeito do qual ele dizia,numa de suas bombásticas frases de efeito, que era um para-raios, em que ele captava, salvo engano, os raios cósmicos de sua genialidade, ou algo similar.

A datar de então, sempre que tinha oportunidade, procurava ler outras informações sobre esse genial e mistificador artista. Ao que parece, ele, com as suas histrionices e fanfarronices, foi o grande marqueteiro de si mesmo, inclusive em suas performances e instalações, mas também em suas criativas frases feitas. Alguns títulos de suas obras, parecem peças minimalistas da literatura. Parecem enigmáticos poemas. Recordo de seu fim melancólico, envelhecido e esquelético, como se fora a sombra de si mesmo. Parecia a ruína surrealista dele próprio, nesse epílogo um tanto espetaculoso, que bem poderia ter sido uma farsa performática de seu espírito um tanto mistificador.

Por muitos anos anos desejei escrever um épico moderno sobre sua vida e obra. Com vinte e poucos anos de idade, ainda morando em Parnaíba, fiz alguns poemas surreais, inspirados em algumas de suas obras mais famosas. Poderia dizer que foi o prelúdio e o ensaio de Dalilíada, que só fui escrever muitos anos depois, quando já morava em Teresina. Tomando por base o início de meu casamento e o tempo em que o pintor Sica (Siqueira), natural de Parnaíba, agente da Polícia Federal, foi meu vizinho, suponho tê-lo escrito pelos idos de 1990, um pouco mais, um pouco menos.

O velho Sica, com o seu bigode chinês, era um grande pintor e desenhista, e exímio pirógrafo, a utilizar como tela grandes e médias peças de couro. Era ele também um bom boêmio, com certa dose de histrionismo à Dalí. Possuía muitos e caros álbuns com reproduções das grandes obras de Dalí. Ilustrou alguns de meus poemas, cujos textos e gravuras foram publicados na obra coletiva Poemarít(i)mos, de que fui um dos organizadores. Sica havia sido amigo do grande artista plástico Fernando Costa, que ele tanto admirava, falecido tragicamente num dia de carnaval, que também conheci, e sobre o qual já escrevi uma crônica, em que lamentei a sua morte precoce.

Falei ao Sica sobre o meu projeto de escrever um longo poema sobre a vida e a obra de Dalí. Ele me franqueou os seus álbuns sobre o mestre. Disse-lhe que quando chegasse o momento oportuno viria buscá-los. Numa boca de noite, em que me sentia inquieto, senti a compulsão em escrever a Dalilíada. Fui quase correndo à casa do pintor parnaibano (há muitos anos morando em Brasília), e lhe pedi os álbuns. Voltei na mesma pressa, sobraçando os vários volumes.

Escrevi o poema como se estivesse “atuado” por algum espírito, ou pelas forças cósmicas e líricas, ou seja lá os raios que os partam. Fiz mesmo questão de não ter controle sobre o que escrevia, automática ou mediunicamente. Não quis saber nem da razão nem do coração, e muito menos do consciente. Escrevi como se fora um jorro da inspiração incontrolada.

Contudo, fiz o poema a olhar para as pinturas e a ler os seus títulos, com os quais intertextualizei. Em cada unidade, utilizei uma ou mais pinturas, um ou mais títulos, sem buscar a lógica ou a falta dela. Dalilíada foi fruto de uma longa gestação e de uma busca demorada. Espero ter sido válida essa longa espera.

COISA NENHUMA

Elmar Carvalho

Meus olhos jogados ao
acaso como pedaços
de espelho quebrado.
Meus cabelos arrancados
flutuando como
cabelos do vento.
Minhas mãos decepadas
acenando em vão e em vão
apertando coisa nenhuma.
Minha cabeça atirada
numa lata de lixo
onde o lixo era ela.
Minhas células espalhadas
por uma tempestade que
partiu de mim.
Os pedaços de meu
corpo mutilado depois
se agregam como antes,
exceto a cabeça.
(Ai! Dalí, Dalí, Dalí...
O meu corpo sem cabeça,
como o Farmacêutico de Ampurdán,
anda à procura de coisa nenhuma.)

Parnaíba, 78.

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