2 de agosto Diário de Incontínuo
A GÊNESE DE DALILÍADA
Elmar Carvalho
Há aproximadamente um mês e meio atrás, quando minha
mulher retornou de Parnaíba, trouxe um álbum sobre a obra de Dalí,
que me fora enviado por Alfredo Fait, que estivera passeando pela
Europa, inclusive na Itália, sua terra natal. A obra é da autoria
de Carolina Brook, faz parte da coleção Art Dossier, publicada pela
editora Giunti. Traz as principais obras do grande pintor espanhol,
além de comentários críticos sobre sua trajetória artística.
Muitas das pinturas reproduzidas eram de meu conhecimento, posto que
tenho me interessado por essa obra instigante desde o final de minha
meninice.
Tomei conhecimento da vida e da obra de Salvador Dalí,
creio, por volta de meus treze anos, através de uma das grandes
revistas da época, salvo engano a O Cruzeiro, que trazia uma
reportagem sobre o mestre. A matéria falava sobre sua vida e obra,
sobre o seu relacionamento com Gala. Uma das fotografias dava
destaque ao seu surrealista bigode, a respeito do qual ele dizia,numa
de suas bombásticas frases de efeito, que era um para-raios, em que
ele captava, salvo engano, os raios cósmicos de sua genialidade, ou
algo similar.
A datar de então, sempre que tinha oportunidade,
procurava ler outras informações sobre esse genial e mistificador
artista. Ao que parece, ele, com as suas histrionices e
fanfarronices, foi o grande marqueteiro de si mesmo, inclusive em
suas performances e instalações, mas também em suas criativas
frases feitas. Alguns títulos de suas obras, parecem peças
minimalistas da literatura. Parecem enigmáticos poemas. Recordo de
seu fim melancólico, envelhecido e esquelético, como se fora a
sombra de si mesmo. Parecia a ruína surrealista dele próprio, nesse
epílogo um tanto espetaculoso, que bem poderia ter sido uma farsa
performática de seu espírito um tanto mistificador.
Por muitos anos anos desejei escrever um épico moderno
sobre sua vida e obra. Com vinte e poucos anos de idade, ainda
morando em Parnaíba, fiz alguns poemas surreais, inspirados em
algumas de suas obras mais famosas. Poderia dizer que foi o prelúdio
e o ensaio de Dalilíada, que só fui escrever muitos anos depois,
quando já morava em Teresina. Tomando por base o início de meu
casamento e o tempo em que o pintor Sica (Siqueira), natural de
Parnaíba, agente da Polícia Federal, foi meu vizinho, suponho tê-lo
escrito pelos idos de 1990, um pouco mais, um pouco menos.
O velho Sica, com o seu bigode chinês, era um grande
pintor e desenhista, e exímio pirógrafo, a utilizar como tela
grandes e médias peças de couro. Era ele também um bom boêmio,
com certa dose de histrionismo à Dalí. Possuía muitos e caros
álbuns com reproduções das grandes obras de Dalí. Ilustrou alguns
de meus poemas, cujos textos e gravuras foram publicados na obra
coletiva Poemarít(i)mos, de que fui um dos organizadores. Sica havia
sido amigo do grande artista plástico Fernando Costa, que ele tanto
admirava, falecido tragicamente num dia de carnaval, que também
conheci, e sobre o qual já escrevi uma crônica, em que lamentei a
sua morte precoce.
Falei ao Sica sobre o meu projeto de escrever um longo
poema sobre a vida e a obra de Dalí. Ele me franqueou os seus álbuns
sobre o mestre. Disse-lhe que quando chegasse o momento oportuno
viria buscá-los. Numa boca de noite, em que me sentia inquieto,
senti a compulsão em escrever a Dalilíada. Fui quase correndo à
casa do pintor parnaibano (há muitos anos morando em Brasília), e
lhe pedi os álbuns. Voltei na mesma pressa, sobraçando os vários
volumes.
Escrevi o poema como se estivesse “atuado” por algum
espírito, ou pelas forças cósmicas e líricas, ou seja lá os
raios que os partam. Fiz mesmo questão de não ter controle sobre o
que escrevia, automática ou mediunicamente. Não quis saber nem da
razão nem do coração, e muito menos do consciente. Escrevi como se
fora um jorro da inspiração incontrolada.
Contudo, fiz o poema a olhar para as pinturas e a ler os
seus títulos, com os quais intertextualizei. Em cada unidade,
utilizei uma ou mais pinturas, um ou mais títulos, sem buscar a
lógica ou a falta dela. Dalilíada foi fruto de uma longa gestação
e de uma busca demorada. Espero ter sido válida essa longa espera.
COISA
NENHUMA
Elmar
Carvalho
Meus
olhos jogados ao
acaso
como pedaços
de
espelho quebrado.
Meus
cabelos arrancados
flutuando
como
cabelos
do vento.
Minhas
mãos decepadas
acenando
em vão e em vão
apertando
coisa nenhuma.
Minha
cabeça atirada
numa
lata de lixo
onde
o lixo era ela.
Minhas
células espalhadas
por
uma tempestade que
partiu
de mim.
Os
pedaços de meu
corpo
mutilado depois
se
agregam como antes,
exceto
a cabeça.
(Ai!
Dalí, Dalí, Dalí...
O
meu corpo sem cabeça,
como
o Farmacêutico de Ampurdán,
anda
à procura de coisa nenhuma.)
Parnaíba,
78.
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