URUBU
EM DIA DE AZAR
Elmar
Carvalho
O
velho urubu, como um rei do espaço, planava, recortando-se contra a
empanada azul do céu. Antes, estivera a revoar com os seus irmãos,
em circular dança acrobática. Como não surgisse nenhum aroma de
apetitosa carniça, seus companheiros tomaram o rumo do angico
branco, no alto do morro, para passarem nesse poleiro as horas de sol
inclemente do meio-dia. Mas ele, com sua experiência e talvez certa
dose de intuição, ainda ficou na esperança de alguma agradável
novidade.
De
repente, um vento um pouco mais forte lhe trouxe o tão agradável
cheiro de uma iguaria. O aroma parecia ter o simbolismo de um
incenso, de algo quase sagrado. O velho mestre das alturas e da
carnificina, como diria o poeta Augusto dos Anjos, apurou o olfato, e
desceu rápido para o local de onde provinha o odor. Vinha de um
terreno baldio, localizado na periferia de Barro Duro. O pouso, como
sempre, foi perfeito. Com cautela, olhando para um lado e para outro,
em sua marcha gingada de malandro carioca, o urubu aproximou-se da
carne putrefata.
Estava
dentro de uma pequena caixa feita de talas de buriti. Experiente como
era, não descartou ser uma armadilha preparada por algum moleque
traquina, que pretendia pegar algum urubu para transformá-lo em
brinquedo, ou apenas, por perversão, para judiar a pobre ave de
rapina. Mais uma vez olhou para todos os lados, à procura de
eventual inimigo. Analisou a embalagem com cuidado, para ver se
descobria alguma cilada, alguma arapuca.
Ele
não podia esquecer que, muitos anos atrás, um menino malvado
“pescou” um seu camarada com o anzol, apenas por maldade. O
pobrezinho foi encabrestado com um longo fio de náilon. O coitado
voava até a distância que o fio lhe permitia, sendo obrigado a
voltar ao chão. Foi puxado de um lado para outro. Depois, recebeu
pauladas. Foi apedrejado. Após muita judiação, o menino malvado e
seus colegas, abandonaram-no, com o anzol ainda espetado na boca. Já
ele mal conseguia se arrastar. Em enorme esforço, ainda tentou
ensaiar um voo. Não teve êxito; uma das asas estava quebrada. Ficou
sofrendo até o último suspiro.
O
velho urubu recordou todo essa tragédia, enquanto se sentia
inebriado pelo odor que cada vez mais lhe atraía, de forma
irresistível. Tomado pela tentação da gula e da fome, deu a
inspeção como concluída, e achou que não se tratava de nenhuma
armadilha. Deu uma bicada numa das talas, mas constatou que ela não
era tão frágil como pensara.
Bicou
uma outra, mas o resultado foi igualmente inútil. Desejou ter o bico
e a perícia de mestre pica-pau, para devorar logo aquele suculento
petisco. Imaginou afastar as peças, forcejando com o seu bico adunco
entre uma e outra. Não conseguindo nas primeiras tentativas, deu uma
bicada mais forte, certeira, entre duas talas que julgou mais
frágeis. Foi então que sentiu que seu bico ficara preso entre as
duas hastes.
Tentava
puxar o bico para um lado e para o outro, para ver se o desprendia,
mas ele parecia fixado a prego. Depois, se desesperou, e tentava
puxá-lo com violência. O exercício se tornou muito doloso e
cansativo. Tentou sacudir a caixa; a dor se tornou demasiada.
Procurou voar, porém mal conseguiu dar um salto; a embalagem e seu
conteúdo eram demasiado pesados para ele. Vez ou outra, um
companheiro lhe vinha fazer companhia, em solidariedade, mas logo
tinha de partir em busca da própria sobrevivência. Anoiteceu e
amanheceu, e ele continuou preso ao alimento que fora a sua perdição,
que tanto o tentara com seu odor, e que agora lhe causava
repugnância.
Cansado
de tanto se debater, e mesmo já tendo desistido de lutar, por volta
de nove horas, viu um menino aproximar-se. Temeu pelo que ainda lhe
poderia atormentar, a julgar pelo que vira acontecer ao seu colega,
fisgado pelo anzol. Procurou esconder-se detrás de uma moita, a
arrastar a caixa que lhe prendia o bico. A duras penas chegou ao
local, que considerou mais seguro, mas logo notou que o garoto
percebera a manobra, e para ali se dirigia, em passos vagarosos.
Sentindo-se
perdido, lutou para voar, mas apenas se cansou e se machucou.
Desesperado, tentou fugir; logo caiu estafado. Esperou as bordoadas e
pedradas, sentindo-se mais mesquinho que o albatroz do poeta Charles
Baudelaire. Sentiu quando o garoto lhe prendeu com as mãos. Viu
quando ele pegou um pedaço de pau. Fechou os olhos, à espera do
espancamento. Como nada tenha sentido, os abriu novamente, e viu o
moleque forcejando as talas da caixa, até desprender o seu bico.
Quase não acreditou, quando foi libertado.
–
Voa, urubu, voa!...
Dizia
o menino, a bater palmas, incentivando-o voar. Era inacreditável,
mas estava livre. Mesmo cansado e com fome, não esperou que o garoto
repetisse o convite. Embora dolorido e exausto, bateu as asas negras
com força, e ganhou altura, o mais rápido que pôde. No mais alto a
que lhe foi possível chegar, contemplou a imensidão do céu azul,
como se o visse pela primeira vez.
Admirou
a serra que margeia a estrada que vai para Agricolândia. A seguir,
contemplou o perfil azulado da Serra do Cachimbo. Aquele menino,
surgido do nada, teria sido enviado por algum anjo, ou seria o
próprio anjo da guarda dos urubus? Contente, apenas planava, como
jamais planara em sua vida. Sozinho nas alturas, imaginou que o céu
era somente seu.
Foi uma aventura marcante para o faminto urubu que aconteceu no Morro da Fome lá para os lados na cidade de Agricolândia.
ResponderExcluirO relato acima me fez lembrar um fato real ocorrido em uma aldeia do Sudão, onde um urubu espera a criança morrer que não morreu, certo que, o urubu não comeu a criança, na ocasião, mais que fezes desta e de outras crianças.
Um abço.
sp,