Cunha
e Silva Filho
No
sofá da sala estou lendo um jornal e, de repente, olho para uma
placa de metal revestida de uma moldura de plástico duro de uma
turma de alunos que, em 2005, concluiu o segundo grau no Colégio
Militar do Rio de Janeiro. A placa exibe, em letras do tipo manual, o
meu nome completo gravado como homenagem, lembrança e agradecimento
da turma por ter sido dela professor durante o período de um ano
da última série do ensino médio. A placa é nominalmente
individualizada, mas sua inscrição se estende a todos os
professores que contribuíram para o sucesso dos alunos naquele ano
de sua formatura
A
última série desse centenário e conceituado Colégio público ali
também se chama Prevest, pois funciona como reforço preparatório
ao ingresso no ensino superior.
O
Prevest é uma das seções mais respeitadas do Colégio Militar. Ela
consegue reunir um quadro de professores de alto nível de
competência, na sua maioria com mestrado ou doutorado, o que
me levava a afirmar aos meus colegas que o Colégio tem credenciais
de uma verdadeira instituição universitária.
Olhando
para aquela placa, assim como para todos os objetos de casa, os
livros nas estantes, os objetos de decoração, os quadros de pintura
na parede, enfim, todos os itens de que se formam o mobiliário e os
acessórios gerais de uma casa ou apartamento, fico imaginando o
quanto a nossa passagem pela Terra é rápida, diminuta e limitada.
Aquela
placa, os livros, os objetos de decoração, todos os outros itens de
bens materiais inanimados provavelmente, ainda que tenham destino
diferente no tempo e no espaço, dependendo de sua estrutura física,
do material usado na sua fabricação, durarão mais do que a nossa
frágil estrutura de carne e osso.
Daqui
a alguns anos, quando não mais estiver no Planeta, só restarão os
objetos que, durante um tempo, a mim pertenceram. Os meus olhos já
não os verão nem tampouco poderão mais sentir o que representavam
para mim. Haverá outros olhares para eles, olhares que seguramente
poderão trazer à lembrança quem primeiro naquela ambiente os viu,
os tocou e por eles teve especial carinho de enxergá-los,
de neles tocar, de sentir a sua textura, de ver a sua cor, o seu
tamanho,o seu cheiro, a sua forma, a sua utilidade, a sua função.
Se fosse um livro preferido e muitas vezes examinado com os dedos do
antigo dono, um dicionário, por exemplo, naquelas páginas tantas
vezes folheadas por mim de certa maneira estaria impressa
espiritualmente a antiga vida de seu dono.
Não
podemos prever ou projetar o seu destino ou destinos, ou seja, em que
mãos estarão, como serão tratados pelos sobreviventes de nossa
frágil e liquida mortalidade.
Contaram-me
que um famoso poeta brasileiro, logo que morreu, uma semana depois,
se tanto, teve sua rica e variada biblioteca retirada para outro
lugar de seu apartamento. Quer dizer, a viúva, logo dele se livrou,
vendendo-a ou doando a uma instituição cultural. Não sei.
Será
que a mesma coisa iria acontecer comigo? Também não sei. A única
certeza de que tenho na projeção do futuro é que parte deles
sobreviverá após o meu limite de existência. Estarão muitos deles
em outras mãos, em ambientes diferentes.
Não
sei como serão tratados ou que cuidados terão por parte dos outros,
às vezes, nem mais da própria família do antigo dono, daquele que
os recebeu e os mereceu, ou daqueles que os compraram como se fossem
proprietários deles para sempre. Para eles outros seres mortais
dirigirão os olhares, novos olhares, novos sentimentos, novas
visões, novos modos de percepção, de toque, de cheiro, de uso, de
funções.
Os
objetos, os seres inanimados, as coisas que estão na Natureza, nas
cidades ou nos campos, são quase “imortais.” É certo que essa
“imortalidade” também não será eterna porque a velhice para
alguns deles da mesma forma os aniquilará com o tempo e o uso.
Outros, contudo, permanecerão por séculos ou serão vendidos,
descartados ou tornar-se-ão peças de lojas de antiguidades, quem
sabe, poderão se tornar peças de um museu. O seu fim me parece
imprevisível à medida que mais durarem e mudarem de lugar. Há uma
aura futura de cunho metafísico para cada um em particular,
sobretudo para os que sobreviverem por mais tempo.
De
qualquer forma, os objetos presentes transmitem algo de vivo na
presente relativo de seus donos. Dá-me a impressão de que para eles
transfiro os meus sentimentos, as minhas alegrias, tristezas,
vitórias e fracassos. Eles me dão a sensação de que se impregnam
de nossa interioridade, de nossa alma e de nosso gostos e
preferências; por isso, entre eles e mim há uma espécie de
contaminação, de sopro de vida que lhes infundi na convivência dos
anos com eles, de cumplicidade, de harmonia, de uma deliciosa
sensação de paz e bem-estar.
Por
isso, falei de incorporação de nosso mundo interior para o que
poderia falar de “alma” dos objetos queridos e amados. Neste
nível, os objetos amados e transfigurados parecem dialogar comigo,
numa linguagem que só quem os ama tão visceralmente sabe o quanto
eles significam afetivamente para mim e para todos aqueles que vivem,
viveram ou viverão situações análogas no contato com seus objetos
e pertences.
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