segunda-feira, 15 de abril de 2013

Passagem e sobrevivência



Cunha e Silva Filho


No sofá da sala estou lendo um jornal e, de repente, olho para uma placa de metal revestida de uma moldura de plástico duro de uma turma de alunos que, em 2005, concluiu o segundo grau no Colégio Militar do Rio de Janeiro. A placa exibe, em letras do tipo manual, o meu nome completo gravado como homenagem, lembrança e agradecimento da turma por ter sido dela professor durante o período de um ano da última série do ensino médio. A placa é nominalmente individualizada, mas sua inscrição se estende a todos os professores que contribuíram para o sucesso dos alunos naquele ano de sua formatura

A última série desse centenário e conceituado Colégio público ali também se chama Prevest, pois funciona como reforço preparatório ao ingresso no ensino superior.

O Prevest é uma das seções mais respeitadas do Colégio Militar. Ela consegue reunir um quadro de professores de alto nível de competência, na sua maioria  com mestrado ou doutorado, o que me levava a afirmar aos meus colegas que o Colégio tem credenciais de uma verdadeira instituição universitária.

Olhando para aquela placa, assim como para todos os objetos de casa, os livros nas estantes, os objetos de decoração, os quadros de pintura na parede, enfim, todos os itens de que se formam o mobiliário e os acessórios gerais de uma casa ou apartamento, fico imaginando o quanto a nossa passagem pela Terra é rápida, diminuta e limitada.

Aquela placa, os livros, os objetos de decoração, todos os outros itens de bens materiais inanimados provavelmente, ainda que tenham destino diferente no tempo e no espaço, dependendo de sua estrutura física, do material usado na sua fabricação, durarão mais do que a nossa frágil estrutura de carne e osso.

Daqui a alguns anos, quando não mais estiver no Planeta, só restarão os objetos que, durante um tempo, a mim pertenceram. Os meus olhos já não os verão nem tampouco poderão mais sentir o que representavam para mim. Haverá outros olhares para eles, olhares que seguramente poderão trazer à lembrança quem primeiro naquela ambiente os viu,  os tocou e por eles teve  especial carinho de enxergá-los, de neles tocar, de sentir a sua textura, de ver a sua cor, o seu tamanho,o seu cheiro, a sua forma, a sua utilidade, a sua função. Se fosse um livro preferido e muitas vezes examinado com os dedos do antigo dono, um dicionário, por exemplo, naquelas páginas tantas vezes folheadas por mim de certa maneira estaria impressa espiritualmente  a antiga vida de seu dono.

Não podemos prever ou projetar o seu destino ou destinos, ou seja, em que mãos estarão, como serão tratados pelos sobreviventes de nossa frágil e liquida mortalidade.

Contaram-me que um famoso poeta brasileiro, logo que morreu, uma semana depois, se tanto, teve sua rica e variada biblioteca retirada para outro lugar de seu apartamento. Quer dizer, a viúva, logo dele se livrou, vendendo-a ou doando a uma instituição cultural. Não sei.

Será que a mesma coisa iria acontecer comigo? Também não sei. A única certeza de que tenho na projeção do futuro é que parte deles sobreviverá após o meu limite de existência. Estarão muitos deles em outras mãos, em ambientes diferentes.

Não sei como serão tratados ou que cuidados terão por parte dos outros, às vezes, nem mais da própria família do antigo dono, daquele que os recebeu e os mereceu, ou daqueles que os compraram como se fossem proprietários deles para sempre. Para eles outros seres mortais dirigirão os olhares, novos olhares, novos sentimentos, novas visões, novos modos de percepção, de toque, de cheiro, de uso, de funções.

Os objetos, os seres inanimados, as coisas que estão na Natureza, nas cidades ou nos campos, são quase “imortais.” É certo que essa “imortalidade” também não será eterna porque a velhice para alguns deles da mesma forma os aniquilará com o tempo e o uso. Outros, contudo, permanecerão por séculos ou serão vendidos, descartados ou tornar-se-ão peças de lojas de antiguidades, quem sabe, poderão se tornar peças de um museu. O seu fim me parece imprevisível à medida que mais durarem e mudarem de lugar. Há uma aura futura de cunho metafísico para cada um em particular, sobretudo para os que sobreviverem por mais tempo.

De qualquer forma, os objetos presentes transmitem algo de vivo na presente relativo de seus donos. Dá-me a impressão de que para eles transfiro os meus sentimentos, as minhas alegrias, tristezas, vitórias e fracassos. Eles me dão a sensação de que se impregnam de nossa interioridade, de nossa alma e de nosso gostos e preferências; por isso, entre eles e mim há uma espécie de contaminação, de sopro de vida que lhes infundi na convivência dos anos com eles, de cumplicidade, de harmonia, de uma deliciosa sensação de paz e bem-estar.

Por isso, falei de incorporação de nosso mundo interior para o que poderia falar de “alma” dos objetos queridos e amados. Neste nível, os objetos amados e transfigurados parecem dialogar comigo, numa linguagem que só quem os ama tão visceralmente sabe o quanto eles significam afetivamente para mim e para todos aqueles que vivem, viveram ou viverão situações análogas no contato com seus objetos e pertences.

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