Gorender: as luzes do combatente
Fonseca Neto
Um
herói? Não. Um lutador pela causa dos oprimidos. O que em geral se
chama de herói não passa de invencionice.
A
luta dos trabalhadores perdeu um militante e o Brasil um de seus
melhores intérpretes. Refiro-me a Jacob Gorender: nonagenário, pois
nasceu em 1923, trata-se de um brasileiro notável por seu
engajamento vontadoso da construção do mundo livre das
colonizações. Historiador com lugar destacado entre os mais
respeitados.
Nascido
e criado em solo baiano, sua caminhada o levou a defender o ideal de
liberdade contra o nazi-fascismo em terras da Itália, em 1943 – já
então um militante comunista – integrando a Força Expedicionária
Brasileira. Ao contrário da maioria que apenas quis derrotar Benito
e Adolf, mas não os processos sociais e políticos que explicam o
regime que lideraram, aprendeu Gorender que as chamadas “guerras
mundiais” são explicativas de um conjunto de misérias que nem de
longe os “aliados” e sua linha política hegemônica quiseram
superar. Na construção do seu destino pessoal e social, a guerra
certamente concedeu-lhe a experiência sensível de reviver o drama
de seus próprios pais, judeus não sionistas, afugentados no velho
Império Russo e migrados para a Bahia.
Aliás,
tal circunstância explica seu itinerário de lutador social contra
as opressões. Nathan Gorender, pai, um ucraniano; a mãe, Anna, da
Bessarábia. Nathan, militante de esquerda, marxista, que, inclusive,
participou das jornadas de 1905: “viu ancorar em Odessa o
Encouraçado Potemkim”, contou mais tarde Jacob, o filho
historiador brasileiro.
A
formação intelectual de Jacob Gorender foi, assim, e na orientação
essencial, forjada no calor da luta. Frequentou escolas em Salvador,
chegou a iniciar o bacharelado em Direito, mas sua grandeza de
pensador humanista e social explica-se por aquela forja,
realizando-se num sentido de autodidatismo sem par. Costumava dizer
que a circunstância de ter nascido na Bahia fora decisiva para
estudar o horror da escravidão neste lado mundo – Bahia que é
caldeira genuína do povo negro afro-brasileiro e notório ninho de
lutadores da Esquerda.
De
fato, um dos trabalhos de forte impacto no debate historiográfico de
sua lavra, diz respeito ao “escravismo colonial” na América
portuguesa. Debate de muita intensidade e gerador de polêmicas
quentes na elaboração dos pensadores da Revolução proletária.
Nesse sentido, a contribuição dele é particularmente corajosa
porque ousou confrontar o “dogmatismo” de várias organizações
de luta dos trabalhadores quanto ao referencial marxista, propondo
releituras, por exemplo, de algumas análises de Caio Prado Jr.
quanto ao dito escravismo.
A
propósito, em pleno furor do ascenso neoliberal, em 1990, quando
acabara de desmilinguir o Império Soviético, disse ele o seguinte:
“A minha firmeza a respeito do marxismo como método de pesquisa e
compreensão da vida social não foi afetada por esses
acontecimentos. Eu continuo com a convicção de que o próprio
marxismo pode explicá-los. Para isso, entretanto, é preciso que o
marxismo seja entendido sem limitações de qualquer caráter
dogmático e aplicado com inteira criatividade. O próprio marxismo
precisa se renovar”.
Coerente,
bafejado por vida longa, Gorender é reconhecido e ainda mais
respeitado por muitos justamente pela qualidade e honestidade
intelectual que demonstrou em fazer releituras revisionais de sua
própria elaboração pretérita.
E
ainda mais importante: examinar as novas conjunturas descortinadas
sem perder as linhas analíticas essenciais sobre escravidão,
movimento operário, partido, dentre outras questões centrais da
vida e luta social na perspectiva da liberdade real e da justiça,
para além da retórica. Outro exemplo de sua coragem
intelectual-militante: sua escritura em “Combate nas trevas”,
obra necessária por ajudar entender a arqueologia das opções dos
lutadores quando “pegaram em armas” e na mira destas colocaram a
Revolução.
Atacado
à Direita – o que faz ainda mais realçar sua obra – foi, por
essas qualidades elevadas (e sem “formatura”) admitido como um
dos luminares da USP, laureado pesquisador do Instituto de Estudos
Avançados, pelo qual publicou suas contribuições mais recentes.
Não
morreria sem que visse ascender à presidência da República pelo
voto popular sua companheira no cárcere do fascismo. Dois ícones do
Brasil bonito que os capatazes do eito escravista atacam à luz do
dia.
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