Senhores e
senhoras,
Ao reler
Estórias de minha gente, de Constâncio Furtado Rêgo, a fim de que
pudesse fazer um retrato fiel de sua proposta literária, vi-me
convidado a recuperar leituras da sociologia do conhecimento e da
estilista. Fundamentado nessas áreas, comentaria os valores e
costumes que o autor descreve e a estilização da linguagem oral
própria de seu texto. Desisti dessa intenção inicial, para
fornecer uma visão mais geral do texto, sem, entretanto, contar
nenhuma das tramas elaboradas pelo autor. Desisti de uma leitura
acadêmica, a fim de me aproximar mais de cada futuro leitor aqui
presente.
Sejamos
simples – o livro que ora chega às suas mãos tematiza
especialmente a humildade, em quase que praticamente todos os contos.
De Cristo – símbolo máximo dos humildes, até nós, esse traço
do caráter tem se revelado, inclusive, como um poderoso elemento de
transformações. Sejamos simples. Aquilo que mais toca a percepção
tem um quê de simplicidade. O livro Estórias de Minha Gente, de
evidente qualidade literária e gráfica, conforme verão ao
apreciarem seus contos, consiste num atestado de exaltação à
simplicidade – a exaltação da natureza camponesa em todas as suas
dimensões.
Senhores e
senhoras,
Envoltos
pela mais profunda e sincera satisfação, Nova Aliança, de Leonardo
Dias, e Entretextos, de minha propriedade, fazem-se aqui presentes
por intermédio de minha pessoa, para o lançamento de Estórias de
minha gente, de Constâncio Furtado Rêgo, o primeiro livro editado,
entre vários que o escritor mantém inéditos. São vários motivos
de nossa alegria, mas eu destacaria:
a)Trata-se
a obra de um livro escrito por um conterrâneo de talento.Homem
sensível, que sabe interpretar o seu tempo, com a grandeza peculiar
ao verdadeiro homem de letras. Embora viva no campo, isso não tirou
do autor o ânimo pra escrever; pelo contrário, dessa condição e
das lides da terra, retirou a seiva para a produção de sua
literatura. Nossa satisfação vai muito além de se tratar o livro
de fruto da lavra de um conterrâneo de talento: é um livro escrito
com o gosto da terra onde o escritor nasceu; com o afeto, as dores e
as esperanças de sua gente; as dores e esperanças dos mais
humildes. Isso já seria razão suficiente para comemorar esse feito,
principalmente, porque esse tipo de acontecimento não vigora
corriqueiramente nas práticas de sociabilidades nas pequenas cidades
do Piauí, por enquanto, dadas as carências sociais e econômicas
que vicejam entre nós.
b)Trata-se
Estórias de Minha gente, da estreia da Nova Aliança, do livreiro
editor Leonardo Dias e Entretextos, portal que criei há dez anos com
o fim de divulgar literatura, na edição de livros cujo teor é a
literatura de tradição oral, segmento da letras de irrefutável
valor, e ainda não devidamente explorado pelo mercado editorial do
Piauí. Nova Aliança e Entretextos promovem atualmente, em parcerias
solidamente alicerçadas no princípio da ética e da qualidade do
que edita, a maior revolução experimentada pelo mercado editorial
piauiense, segundo os que acompanham atentamente a cena cultural do
Estado. Sem amparo público, mesmo para a aquisição de livros,
editamos no curto intervalo de dois anos e meio 37 livros de
qualidade gráfica e de conteúdo. Isso mesmo: Estórias de minha
gente é o 37 livro editado pela parceria Nova Aliança/Entretextos e
inaugura linha de livros calcada na tradição da literatura oral, a
ser explorada em novas obras.
Senhores e
senhoras,
Não posso
deixar de recorrer à teoria literária, embora tangenciamente, para
explicar Estórias de minha gente, de Constâncio Furtado Rêgo.
Minha missão nesta manhã é exatamente justificar o valor desta
obra, já que não se trata de nenhum capricho autoral, mas de livro
de inquestionável qualidade. Espero – vou enfatizar - por essa
razão, não lhes aborrecer com as rápidas notas teóricas.
Estórias
de minha gente se insere no rol das obras que reforçam a tradição
da literatura oral. De Homero à era digital, seu valor tem se
reafirmado incontestavelmente. As tecnologias modernas, que
aparentemente poderiam representar a essa forma literária uma
ameaça, acabaram também por contribuírem para reforçar-lhes o seu
lugar de excelência como receptáculo do patrimônio cultural de
comunidades rurais ou de pequenos lugarejos, fortemente influenciados
pelo modo de vida da roça. As tecnologias modernas, embora
modifiquem severamente o modo de vida campestre, também auxiliam a
literatura oral na conservação e difusão de antigos valores e
costumes de pequenas comunidades, os quais, por meio desse gênero,
paradoxalmente, vencem o tempo e as barreiras geográficas e
reforçam, até, o registro das formas de constituição da linguagem
de grupos sociais específicos.
Historicamente,
contos como os de Estórias de minha gente contribuem não apenas
para documentar o aqui e agora de povos e regiões, mas também,
acentuadamente, por meio da aparente simplicidade da escritura, que é
uma marca linguística elogiável dessa vertente literária,
subverter a voz do narrador, para expressar uma visão de mundo que é
coletiva. Em estórias de minha gente, pois, os narradores englobam
discursos anônimos, frutos do contar e recontar próprios da
tradição oral. Assim, em Zequinha Piaba, Neco, Bena, Dr. Virgílio,
Gerardo, Bernardo Moura e dezenas e dezenas de personagens, muitos
deles sem nome, a fim de lhe revigorar a aparente fragilidade ou
poder, ou mesmo por questão de conveniência, está a voz coletiva
dos trabalhadores rurais ou dos senhores de terra; a voz dos
oprimidos ou dos opressores, uma voz que a literatura em uma de suas
funções magistrais recompõe tão habilmente, facilitando o alcance
imediato da comunicação. Os contos que escreve Constâncio chegam
fáceis ao leitor, preso pela sintaxe e pelo vocabulário bem
piauienses, preso por estórias que o autor ouviu e recontou,
supostamente ocorridas em dado tempo e no lugar social de que fala, o
município de Barras do Marathaoan. Estórias recriadas com humor,
indignação, surpresa e, até mesmo, para despertar alguma função
moral.
Constâncio
Furtado Rêgo, sobrinho do poeta Pedro Alves Furtado, que publicou
obra de versos telúricos de exaltação a Barras do Marathaoan,
infelizmente esquecido ou ignorado pelas gerações adultas, e
absolutamente desconhecido pelos mais jovens, revela uma vocação
que endossa, pelo estilo de literatura que produz, as tradições da
cidade natal. Nesse quesito, o gênero que cultiva enseja o bairrismo
bem característico dos barrenses, que se excedem, ingênua ou
conscientemente, como poucos piauienses, em louvar as belezas
naturais, a paisagem e mesmo a história antiga do lugar em que
nasceram. Na literatura produzida por barrenses, narrativas com essa
feição foram habilmente produzidas também pelo folclorista Bilé
Carvalho, de saudosa memória, e pelo historiador e cronista Antenor
Rêgo Filho; este, autor de obra ímpar no gênero, o consagrado
livro “Jacurutu”.
Constâncio
Furtado Rego, sobrinho ainda de Judith Furtado, escritora igualmente
absorta na elevação da paisagem de sua terra-berço, Barras do
Marathaoan, diferentemente de seus familiares escritores, foge do
romantismo para tocar nas feridas da condição humana, produzindo –
com propósito e projeto literário claro e consciente - contos de
feição popular, assinalados por tom de denúncia social. Em seus
contos, os leitores se esbarrarão com a perplexidade das injustiças
sociais e da desigualdade, com a surpreendente capacidade de
comunicação espontânea do camponês, com a inesperada reação
resignada do homem da roça, enfim, com o jeito de ser e viver dos
que, verdadeiramente, pela sua força produtiva foram quase que
exclusivamente o motor principal da economia das comunidades
piauienses até bem pouco tempo.
Senhores e
senhoras,
É por
meio dos livros que a memória dos homens e a cultura se constituem e
se mantêm. Somos seres efêmeros e logo seremos substituídos por
outras gerações e hábitos; às vezes, até a paisagem ou a
arquitetura em que vivemos - onde há um menor grau de consciência
sobre o patrimônio imaterial - são severamente modificados para
atender as pressões do capital ou as vaidades, ou os mecanismos de
controle social.
Estórias
de minha gente é livro importante para Barras e aos barrenses,
porque guarda um tempo que vai gradativamente sendo consumido pela
globalização e pelas consequentes mudanças na vida rural. Livro
que nos prende tanto pelos dramas dos personagens, como pela
ambientação em que transcorrem as narrativas. Assim, o leitor se
absorve diante de passagens como estas, em que se descreve,
respectivamente, a cobertura habitual das antigas casas dos moradores
da zona rural ou Barras à luz da usina elétrica:
“A casa
era coberta de palha de palmeira, coisa que para ele não era difícil
conseguir, pois morava no meio do cocal. As madeiras da construção
eram adquiridas nas imediações da localidade, às vezes até mesmo
na própria roça. Tudo era muito rústico e simples, coisa de gente
pobre”, (p.108) .
“A luz
fraca iluminava as rodas formadas nas calçadas das mais conceituadas
famílias de Barras. Ali, o assunto predominante era a política. A
construção da nova Capital Federal no Planalto Central do Brasil,
incrustada no estado de Goiás, concentrava parte da conversa, que
acabava sempre convergindo para a política local ou estadual.
Na velha
cidade, apenas algumas ruas tinham calçamento: a maioria era
empoeirada no verão e enlameada durante o inverno. Nalgumas delas, a
água escorria entre as fileiras de casas, misturando-se com a
piçarra encarnada, formando uma tintura escarlate na maior parte do
período chuvoso (...)
Naquela
época, a energia elétrica que iluminava o centro urbano era
fornecida por uma velha usina abastecida à lenha, pertencente ao
poder público municipal, usina que funcionava das dezoito às vinte
e uma horas. Quinze minutos antes de se apagar as lâmpadas, ouvia-se
uma buzina que tinha o objetivo de avisar a população que estivesse
fora de casa, a fim de programar o retorno aos lares, antes que a
energia elétrica fosse desligada”, (p.118).
Mais
poderia dizer, porém, para não cansá-los, fico por aqui, na
certeza e na satisfação de que vocês levam para casa, ao
adquirirem Estórias de minha gente, de Constâncio Furtado Rêgo, um
pedaço de vocês em forma de palavra, um pedaço de Barras. Cada um
de vocês não sairá desta leitura sem rir e chorar, aplaudir e
lamentar, mas principalmente sem reviver um tempo que é o de sempre
– o tempo do sonho e das descobertas. É um livro para aqueles,
como nós, que vivem a essência do que há de bom nesta cidade. Um
livro para os que amam esta cidade; livro para guardar no coração
Muito
obrigado pela atenção.
Dílson
Lages Monteiro
Fonte: Portal Entretextos
Barras,
14.07.2013
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