sábado, 20 de julho de 2013

Saudação ao novo escritor barrense


Senhores e senhoras,

Ao reler Estórias de minha gente, de Constâncio Furtado Rêgo, a fim de que pudesse fazer um retrato fiel de sua proposta literária, vi-me convidado a recuperar leituras da sociologia do conhecimento e da estilista. Fundamentado nessas áreas, comentaria os valores e costumes que o autor descreve e a estilização da linguagem oral própria de seu texto. Desisti dessa intenção inicial, para fornecer uma visão mais geral do texto, sem, entretanto, contar nenhuma das tramas elaboradas pelo autor. Desisti de uma leitura acadêmica, a fim de me aproximar mais de cada futuro leitor aqui presente.
Sejamos simples – o livro que ora chega às suas mãos tematiza especialmente a humildade, em quase que praticamente todos os contos. De Cristo – símbolo máximo dos humildes, até nós, esse traço do caráter tem se revelado, inclusive, como um poderoso elemento de transformações. Sejamos simples. Aquilo que mais toca a percepção tem um quê de simplicidade. O livro Estórias de Minha Gente, de evidente qualidade literária e gráfica, conforme verão ao apreciarem seus contos, consiste num atestado de exaltação à simplicidade – a exaltação da natureza camponesa em todas as suas dimensões.
Senhores e senhoras,
Envoltos pela mais profunda e sincera satisfação, Nova Aliança, de Leonardo Dias, e Entretextos, de minha propriedade, fazem-se aqui presentes por intermédio de minha pessoa, para o lançamento de Estórias de minha gente, de Constâncio Furtado Rêgo, o primeiro livro editado, entre vários que o escritor mantém inéditos. São vários motivos de nossa alegria, mas eu destacaria:
a)Trata-se a obra de um livro escrito por um conterrâneo de talento.Homem sensível, que sabe interpretar o seu tempo, com a grandeza peculiar ao verdadeiro homem de letras. Embora viva no campo, isso não tirou do autor o ânimo pra escrever; pelo contrário, dessa condição e das lides da terra, retirou a seiva para a produção de sua literatura. Nossa satisfação vai muito além de se tratar o livro de fruto da lavra de um conterrâneo de talento: é um livro escrito com o gosto da terra onde o escritor nasceu; com o afeto, as dores e as esperanças de sua gente; as dores e esperanças dos mais humildes. Isso já seria razão suficiente para comemorar esse feito, principalmente, porque esse tipo de acontecimento não vigora corriqueiramente nas práticas de sociabilidades nas pequenas cidades do Piauí, por enquanto, dadas as carências sociais e econômicas que vicejam entre nós.
b)Trata-se Estórias de Minha gente, da estreia da Nova Aliança, do livreiro editor Leonardo Dias e Entretextos, portal que criei há dez anos com o fim de divulgar literatura, na edição de livros cujo teor é a literatura de tradição oral, segmento da letras de irrefutável valor, e ainda não devidamente explorado pelo mercado editorial do Piauí. Nova Aliança e Entretextos promovem atualmente, em parcerias solidamente alicerçadas no princípio da ética e da qualidade do que edita, a maior revolução experimentada pelo mercado editorial piauiense, segundo os que acompanham atentamente a cena cultural do Estado. Sem amparo público, mesmo para a aquisição de livros, editamos no curto intervalo de dois anos e meio 37 livros de qualidade gráfica e de conteúdo. Isso mesmo: Estórias de minha gente é o 37 livro editado pela parceria Nova Aliança/Entretextos e inaugura linha de livros calcada na tradição da literatura oral, a ser explorada em novas obras.
Senhores e senhoras,
Não posso deixar de recorrer à teoria literária, embora tangenciamente, para explicar Estórias de minha gente, de Constâncio Furtado Rêgo. Minha missão nesta manhã é exatamente justificar o valor desta obra, já que não se trata de nenhum capricho autoral, mas de livro de inquestionável qualidade. Espero – vou enfatizar - por essa razão, não lhes aborrecer com as rápidas notas teóricas.
Estórias de minha gente se insere no rol das obras que reforçam a tradição da literatura oral. De Homero à era digital, seu valor tem se reafirmado incontestavelmente. As tecnologias modernas, que aparentemente poderiam representar a essa forma literária uma ameaça, acabaram também por contribuírem para reforçar-lhes o seu lugar de excelência como receptáculo do patrimônio cultural de comunidades rurais ou de pequenos lugarejos, fortemente influenciados pelo modo de vida da roça. As tecnologias modernas, embora modifiquem severamente o modo de vida campestre, também auxiliam a literatura oral na conservação e difusão de antigos valores e costumes de pequenas comunidades, os quais, por meio desse gênero, paradoxalmente, vencem o tempo e as barreiras geográficas e reforçam, até, o registro das formas de constituição da linguagem de grupos sociais específicos.
Historicamente, contos como os de Estórias de minha gente contribuem não apenas para documentar o aqui e agora de povos e regiões, mas também, acentuadamente, por meio da aparente simplicidade da escritura, que é uma marca linguística elogiável dessa vertente literária, subverter a voz do narrador, para expressar uma visão de mundo que é coletiva. Em estórias de minha gente, pois, os narradores englobam discursos anônimos, frutos do contar e recontar próprios da tradição oral. Assim, em Zequinha Piaba, Neco, Bena, Dr. Virgílio, Gerardo, Bernardo Moura e dezenas e dezenas de personagens, muitos deles sem nome, a fim de lhe revigorar a aparente fragilidade ou poder, ou mesmo por questão de conveniência, está a voz coletiva dos trabalhadores rurais ou dos senhores de terra; a voz dos oprimidos ou dos opressores, uma voz que a literatura em uma de suas funções magistrais recompõe tão habilmente, facilitando o alcance imediato da comunicação. Os contos que escreve Constâncio chegam fáceis ao leitor, preso pela sintaxe e pelo vocabulário bem piauienses, preso por estórias que o autor ouviu e recontou, supostamente ocorridas em dado tempo e no lugar social de que fala, o município de Barras do Marathaoan. Estórias recriadas com humor, indignação, surpresa e, até mesmo, para despertar alguma função moral.
Constâncio Furtado Rêgo, sobrinho do poeta Pedro Alves Furtado, que publicou obra de versos telúricos de exaltação a Barras do Marathaoan, infelizmente esquecido ou ignorado pelas gerações adultas, e absolutamente desconhecido pelos mais jovens, revela uma vocação que endossa, pelo estilo de literatura que produz, as tradições da cidade natal. Nesse quesito, o gênero que cultiva enseja o bairrismo bem característico dos barrenses, que se excedem, ingênua ou conscientemente, como poucos piauienses, em louvar as belezas naturais, a paisagem e mesmo a história antiga do lugar em que nasceram. Na literatura produzida por barrenses, narrativas com essa feição foram habilmente produzidas também pelo folclorista Bilé Carvalho, de saudosa memória, e pelo historiador e cronista Antenor Rêgo Filho; este, autor de obra ímpar no gênero, o consagrado livro “Jacurutu”.
Constâncio Furtado Rego, sobrinho ainda de Judith Furtado, escritora igualmente absorta na elevação da paisagem de sua terra-berço, Barras do Marathaoan, diferentemente de seus familiares escritores, foge do romantismo para tocar nas feridas da condição humana, produzindo – com propósito e projeto literário claro e consciente - contos de feição popular, assinalados por tom de denúncia social. Em seus contos, os leitores se esbarrarão com a perplexidade das injustiças sociais e da desigualdade, com a surpreendente capacidade de comunicação espontânea do camponês, com a inesperada reação resignada do homem da roça, enfim, com o jeito de ser e viver dos que, verdadeiramente, pela sua força produtiva foram quase que exclusivamente o motor principal da economia das comunidades piauienses até bem pouco tempo.
Senhores e senhoras,
É por meio dos livros que a memória dos homens e a cultura se constituem e se mantêm. Somos seres efêmeros e logo seremos substituídos por outras gerações e hábitos; às vezes, até a paisagem ou a arquitetura em que vivemos - onde há um menor grau de consciência sobre o patrimônio imaterial - são severamente modificados para atender as pressões do capital ou as vaidades, ou os mecanismos de controle social.
Estórias de minha gente é livro importante para Barras e aos barrenses, porque guarda um tempo que vai gradativamente sendo consumido pela globalização e pelas consequentes mudanças na vida rural. Livro que nos prende tanto pelos dramas dos personagens, como pela ambientação em que transcorrem as narrativas. Assim, o leitor se absorve diante de passagens como estas, em que se descreve, respectivamente, a cobertura habitual das antigas casas dos moradores da zona rural ou Barras à luz da usina elétrica:
A casa era coberta de palha de palmeira, coisa que para ele não era difícil conseguir, pois morava no meio do cocal. As madeiras da construção eram adquiridas nas imediações da localidade, às vezes até mesmo na própria roça. Tudo era muito rústico e simples, coisa de gente pobre”, (p.108) .
A luz fraca iluminava as rodas formadas nas calçadas das mais conceituadas famílias de Barras. Ali, o assunto predominante era a política. A construção da nova Capital Federal no Planalto Central do Brasil, incrustada no estado de Goiás, concentrava parte da conversa, que acabava sempre convergindo para a política local ou estadual.
Na velha cidade, apenas algumas ruas tinham calçamento: a maioria era empoeirada no verão e enlameada durante o inverno. Nalgumas delas, a água escorria entre as fileiras de casas, misturando-se com a piçarra encarnada, formando uma tintura escarlate na maior parte do período chuvoso (...)
Naquela época, a energia elétrica que iluminava o centro urbano era fornecida por uma velha usina abastecida à lenha, pertencente ao poder público municipal, usina que funcionava das dezoito às vinte e uma horas. Quinze minutos antes de se apagar as lâmpadas, ouvia-se uma buzina que tinha o objetivo de avisar a população que estivesse fora de casa, a fim de programar o retorno aos lares, antes que a energia elétrica fosse desligada”, (p.118).
Mais poderia dizer, porém, para não cansá-los, fico por aqui, na certeza e na satisfação de que vocês levam para casa, ao adquirirem Estórias de minha gente, de Constâncio Furtado Rêgo, um pedaço de vocês em forma de palavra, um pedaço de Barras. Cada um de vocês não sairá desta leitura sem rir e chorar, aplaudir e lamentar, mas principalmente sem reviver um tempo que é o de sempre – o tempo do sonho e das descobertas. É um livro para aqueles, como nós, que vivem a essência do que há de bom nesta cidade. Um livro para os que amam esta cidade; livro para guardar no coração
Muito obrigado pela atenção.
Dílson Lages Monteiro
Fonte: Portal Entretextos
Barras, 14.07.2013

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