Cunha
e Silva Filho
Ao
concluir a leitura de Correntes cruzadas (Rio de Janeiro:
Editora A Noite, 1953, 383 p.), fico a pensar em
como a ação dinâmica de um intelectual determinado tem
como consequência mudanças efetivas, se não
imediatas, mudanças a médio e longo prazo.
Obra
polêmica, às vezes com traços de
paixão exagerada pelo desfecho de suas
aspirações e planos, não deixa de constituir um
panorama, como era do feitio do crítico Afrânio
Coutinho(1911-2000), do que o maior estudioso do Barroco entre nós
pôde escrever sobre o que presenciara na vida
literária brasileira, sobretudo no domínio da crítica
literária, da historiografia literária e no
ensino de literatura brasileira e de Literatura em geral.
Personalidade
polêmica, por vezes contraditória, mas sempre corajosa,
meteu o dedo na ferida do que via no Brasil
como grandes mazelas e atrasos culturais que vigoravam
nos anos 1948 e 1953, que são os intervalos de tempo
compreendidos na reunião de alguns textos
recolhidos de sua coluna dominical "Correntes
cruzadas" no Diário de Notícias do Rio de
Janeiro. Esclarece Coutinho, na sua longa introdução ao
volume, que neste havia incluído
outros textos saídos em diferentes épocas e
publicações. Percebe-se nitidamente, no textos
compilados e selecionados sem rigor cronológico, que
o estudioso conhecido como o introdutor do new
criticism no país, ao ter saído da Bahia,
estava decidido a abrir caminhos na vida
literária carioca, sobretudo após a sua
permanência nos Estados Unidos de 1942 a1947, período em
que lá trabalhou como redator-secretário do Reader’s
Digest (Seleções) e, como estava nos seus planos
de intelectual, aproveitou para realizar cursos na
Universidade de Colúmbia e em outras instituições
universitárias americanas.Essa temporada nos Estados Unidos
foi-lhe utilíssima à formação literária
nas áreas da crítica, na teoria literária, na historiografia
literária, na literatura comparada e bem assim na
atualização das áreas do ensino de letras,
história e filosofia, tendo sido naquele período aluno
de Jacques Maritain (do qual traduziu duas obras) e de
eminentes professores universitários, grandes scholars
tais como René Wellek, Austin Warrren, Roman
Iakobson entre outros grandes estudiosos de renome
universal da literatura e da linguística.
Foi
com essa formação sólida e renovada
que, de volta ao país, deu continuidade aos seus
planos e ambições intelectuais. O então jovem
intelectual baiano não sossegou nas suas
pretensões de galgar posições de
relevo na história da crítica literária
brasileira e na transformação radical de
novos hábitos de estudos da sua área, tendo como
meta tanto o ensino médio quanto sobretudo o
universitário, onde firmou seu nome e
conseguiu respeitabilidade de seus pares. Mas,
tudo conquistado a duras penas, arrostando
os obstáculos do meio literário e cultural do Rio de
Janeiro, já com as suas lideranças e grupos dominantes,
ou, conforme Coutinho gostava de assinalar,
com as suas ”igrejinhas, “, suas “futricas”,
seus parti-pris, suas lideranças no jornal,
no ensino, na produção editorial, na vida literária em geral.
Afeito
ao desenvolvimento alcançado nos meios
culturais americanos, Coutinho estava pronto para
aqui desbravar horizontes novos nos campos da crítica
literária através da divulgação e doutrinação do new
cirtricism, ou como ele, preferia rotular, “nova
crítica”, que, de resto, não era só
estritamente a corrente de procedência anglo-americana,
mas na verdade seria um movimento de ruptura
de métodos e approaches que, em diversas
partes do mundo desenvolvido, estava se
consolidando em novos princípios teóricos
lastreados pelas descobertas dos estudos
da literatura com fundamentos científicos que
fariam a passagem da corrente crítica
impressionista para a crítica formalista, ou
estilística, ou poética, valorizado a obra
nos seus componentes estéticos,
intrínsecos, i.e., dando valor capital à
autonomia do aspecto literário, da análise e
interpretação da obra literária, alterações estas
que vieram colocar o historicismo, o
determinismo, de orientação taineana, ou
anatoleana, ou saintbeuveana, em segundo plano. O
que se desejava, com a nova visão teórica da
Literatura era distinguir na obra
as características formais e específicas
da linguagem, sua literariedade, seus
artifícios e estratégias de composição, sua
retórica, que a tornassem um produto
da técnica, um artefato, e do talento
individual, de preparo e estudos sérios, sua ausência de
amadorismo e de aventureirismo intelectual no lidar com
as questões de Literatura, sem laivos
subjetivistas de fundo romântico, sem mais a ideia
de “gênio criador” tão forte no século 19.
Em
segundo plano, ficariam os elementos
extrínsecos, como a biografia do autor, a sua
situação social, a sua época, o seu espaço de
atuação. Quer dizer, os estudos literários
deslocaram o eixo de interesse do autor
para a obra em si. Esta é que importava
para o entendimento do que fosse
a obra literária, nos seus diversos gêneros.
São esta questões de que se ocupa Coutinho
em grande parte de seus artigos em Correntes
cruzadas.
Evidente
que um crítico ainda desconhecido nos meios
intelectuais do Rio de Janeiro e surgindo com um
instrumental de renovação
do establishment literário que encontrava
diante dele, não viu facilidade de nele
penetrar com as suas novidades trazidas dos centros
americanos de Letras.
Encontraria
resistências, desconfianças nos hábitos já
enraizados de cultura predominantemente francesa,
que tinha no seu bojo a prática dominante do impressionismo
crítico com seus reflexos no ensino médio e superior, no jornal
através da crítica de rodapé com seus nomes
estabelecidos, alguns dos quais desfrutando de real
reconhecimento como foi o exemplo do notável crítico
Álvaro Lins acompanhando, nos rodapés do Correio da
Manhã, a segunda fase da produção do Modernismo,
tanto na ficção, quanto na poesia e no teatro. Ao lado de
Álvaro Lins, se achavam outros ilustres
críticos como Agripino Grieco, Tristão de Athayde, Sérgio
Buarque de Holanda, Temístccles Linhares, Olívio de
Montenegro, Wilson Martins e, mais tarde,
Antonio Candido, entre outros. Cada um desses seguia sua
própria orientação crítica, ora de
cunho impressionista e humanístico, ora
expressionista (Trsitão de Athayde), ora de
abordagem sociológica, mas já se
servindo de princípios renovadores teóricos
visando a componentes estéticos no julgamento
do fenômeno literário. Seria, um pouco mais adiante, o
caso de Antonio Candido e outros. Ou seja, havia críticos
e críticos.
Entretanto,
Coutinho vinha para realizar rupturas
radicais, tanto no domínio da crítica,
da teoria literária, da historiografia literária
quanto da pedagogia da literatura, que deveriam
oxigenar-se dos seus sólidos conhecimentos
assimilados nos Estados Unidos e implantados no ensino médio
(Colégio Pedro II) e na universidade. Primeiro, em 1950, no
Instituto La Fayette da Faculdade de Filosofia e
Letras da Universidade do Estado da Guanabara, hoje Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), na qual viu triunfante o seu
projeto de criação da disciplina Teoria Literária,
depois, a cátedra de literatura brasileira da
Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ).
Correntes
cruzadas, sua coluna mantida no Diário de Notícias, segundo
já assinalei, se torna, assim, o seu
espaço de combate sem trégua contra a
crítica impressionista, não poupando nem seus maiores e
mais acatados cultores, tendo à
frente o crítico Álvaro Lins com o qual encetou
uma polêmica declarada com seus artigos naquela
coluna.
Afrânio Coutinho, no volume que estou comentando, tem páginas em que se pode ver bem a quem se destinavam os seus ataques, que, por terem o sinete da polêmica desabrida, extrapolam em suas invectivas muitas vezes de forma injusta
Afrânio Coutinho, no volume que estou comentando, tem páginas em que se pode ver bem a quem se destinavam os seus ataques, que, por terem o sinete da polêmica desabrida, extrapolam em suas invectivas muitas vezes de forma injusta
O
livro, porém, dedica a maior parte de seus
artigos a difundir suas ideias teóricas sobre
crítica, teoria literária, valorização dos estudos
de literatura comparada, parte do volume que na
verdade engrandece o todo dos seus textos e
onde se nota a sua grande contribuição
para a divulgação de todas as questões fundamentais
atinentes aos estudos literários.
A
melhor parte dessa obra de Coutinho é essa contribuição
que dá aos estudos literários no país, estudos em
bases renovadas que, até hoje, dão frutos mesmo se
considerando todos os avanços por que
passaram os estudos de Literatura entre nós, com
novas correntes do pensamento crítico, colocando as nossas
universidade em nível de igualdade, por
assim dizer, quanto a orientações
teóricas e sua produção na crítica, no
ensaio, nas novas disciplinas que deram seus
primeiros sinais de vitalidade na
época de Coutinho, como a ciência da literatura,
a teoria literária, a literatura comparada, a Poética,
os estudos de literaturas modernas e antigas. O
fermento dado por Coutinho teve frutos, ,
amadureceu e cresceu .
Em Correntes
cruzadas, há passagens notáveis em que o critico
sai do estritamente literário e envereda
pela crítica de natureza social, e política,
quando descreve, com grande sensibilidade,
a vida capitalista americana, com seus erros e acerto. .A
obra traz artigos, comentários, fragmentos de citações
de grandes autores, sobretudo ingleses e
americanos, o que demonstra a sua constante
preocupação por se mostrar atualizado,
ao corrente do que se produzia então nos Estados Unidos,
na Europa. Os fragmentos de textos são lições
indiretas de sua finalidade precípua,
pondo o nosso país a par do que de melhor
se produzia nos países adiantados do mundo,
nos dominios da Literatura e do pensamento crítico
universal.
Por
vezes, se nota alguma redundância na
focalização de temas e ideias no campo da
crítica e da história literária Mas, este defeito é
ofuscado pelas páginas originais e
sensíveis que dedica à Literatura, como aquelas
páginas que, com descortino e argúcia, fala
da importância da descentralização da vida literária
e cultural brasileira, ou daquele artigo em que
mostra todo o seu respeito e admiração
pela literatura produzida na Bahia,
ressaltando suas qualidades e sua força lírica,
seus intelectuais, sua produção de peso, suas
grandes figuras de nível nacional.
Em Correntes
cruzadas, o leitor está sempre tomando lições de
Literatura, ampliando seus repertório e vendo
o quanto um crítico sério consegue
imbuir-se de invejável capacidade de leitura
de autores, temas e obras sem fronteiras de nacionalidades.
Não
poderia afirmar que Coutinho, em seus artigos desta
obra, tenha acertado sempre nos seus juízos e
julgamentos, como no excessivo plano
superior em que coloca Sílvio Romero e, em menor
posição, José Veríssimo, sobretudo tendo em vista que
o último foi sempre tido como o crítico
que maior relevância deu ao
elemento estético na análise de obras,
ao passo que o primeiro, inegavelmente um
primoroso historiador literário e de grande capacidade
produtiva, trabalhou a literatura mais em
bases sociológicas do que estéticas.
Contudo,
o ponto alto de Correntes Cruzadas é a
sua constante afirmação de que a
leitura dos princípios aristotélicos
que estão consubstanciados na Poética de
Aristóteles é o maior contributo do filósofo grego
para rastrear as raízes primordiais do
elemento estético-literário nos estudos da crítica
literária e da teoria literária de todos os
tempos como foram também determinantes
ao desenvolvimento da crítica literária moderna a
obra Biographia Literaria (1717) de Coleridge,
a Mimesis de Auebach, os ensaios de T.S.Elliot.
Definindo-se
como crítico, Coutinho rebatia os que lhe
negavam essa condição, pois para ele, a
crítica literária não somente se apresentava nos
rodapés da imprensa, ou mesmo na militância de
julgamentos de obras, mas no papel que o teórico,
o professor universitário exercem na cátedra, nos
livros, nos congressos, e em revistas.
Damesma sorte, o historiador literário
exerce o ato crítico no seu próprio papel de
estudar as obras, os gêneros literários e
de lhes dar interpretação fundada em critérios
de avaliação e valorização das obras, dos períodos
literários, dos temas gerais ou
específicos de crítica e teoria literária, de apresentação
de grandes panoramas enfocando obras, gêneros e
autores.
Um
último aspecto focalizado no seu livro diz
respeito à orientação do ensino de
literatura brasileira, de sua pedagogia, de seus
critérios modernos e de cunho científico,
mobilizando todos os instrumentos de
trabalho de exegese como a valorização da bibliografia,
a abordagem crítica nos trabalhos de
monografias e teses, nas suas diferenças e finalidade
sem os exageros de erudição e desnecessárias
minúcias de notas de pé de página, em detrimento,
pois, do desenvolvimento e originalidade do
estudo que se faz.
Correntes
Cruzadas ainda apresenta uma valiosa
bibliografia de obras de vulto nos campos da
crítica literária, da teoria literária, da história
literária, de literatura comparada, obras gerais,
antologias de textos críticos, revistas, história da crítica,
antologias e coleções de textos críticos cobrindo
literaturas das principais línguas modernas, do passado até a
produção da década de 50 do século 20..
Para
o pesquisador interessado nas questões polêmicas
que Coutinho se viu envolvido intensamente, o
volume acrescenta, em forma de apêndice, “Doze
perguntas a Afrânio Coutinho" a propósito de sua
Tese Aspectos da literatura barroca e do
concurso para a cátedra de Literatura do Colégio Pedro
II. As perguntas fazem parte de uma sequência de
depoimentos que professores deram ao Tribuna
das Letras (22-12 de dezembro de 1951), tendo sido
primeiro entrevistados o crítico Álvaro Lins e o
filólogo Celso Cunha. As resposta de Coutinho valem como
síntese enriquecedora de suas preocupações de
analista literário e docente.
Finalmente,
o volume insere cinco páginas extraída, em
forma de entrevista, do Jornal de Letras (fevereiro de
1951) concernentes à repercussão que teve um artigo de
Coutinho acerca da vida literária brasileira
publicado na seção “Correntes Cruzadas,”
segundo já referi, do Suplemento literário
do Diário de Notícias do Rio de Janeiro.O artigo de
Coutinho causou “celeuma” e reações “veementes”
da parte de muitos escritores.
Coutinho
reafirmou a sua posição sustentada no artigo sobre os
males de nossa vida literária naquela época,
sobre comportamentos éticos de escritores e sobre
a situação da crítica e da teoria literária para as quais
reivindicava novos formas de abordagem do
fenômeno literário, ou seja, substituir o
impressionismo crítico e a orientação teórica
em bases estéticas, objetivas, científicas, visando a dar
ênfase aos aspectos intrínsecos da obra literária,
na valorização desta como fundamento para
a análise e julgamento crítico, na defesa da
autonomia do fenômeno estético, no tratamento
da linguagem literária, na autotelicidade de base aristotélica
do texto, refugando, assim, a continuidade
do impressionismo de viés romântico,
que valorizava a personalidade do crítico e o primado do
autor.
O
depoimento de Coutinho, embora muitas vezes
contundente, se afirma como um comovente
gesto de amor aos estudos literários, de
exercer a crítica, a teoria literária, a história literária
como um “destino,” uma forma
voluntária de opção e de crença nos valores
estéticos que a Literatura propicia
àqueles que por ela se decidiram a
dedicar sua vida profissional por vocação e
sem nenhum arrependimento ou possibilidade por
não a ter substituído por atividades mais
rendosas, econômica e socialmente. Para facilitar
o pesquisador, o volume finaliza com um índice
onomástico.
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