segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

UM POETA NO TEMPLO DE CLIO (*)

Charge: Gervásio Castro
Charge: Gervásio Castro

UM POETA NO TEMPLO DE CLIO (*)


Elmar Carvalho

Ora, direis, entre o espanto e a perplexidade, um poeta tomando assento no templo máximo da História e da Geografia do Rio de Janeiro, na qualidade de sócio correspondente de seu Estado natal, o Piauí!?...
É que os senhores verificaram que, embora eu seja intrinsecamente e sobretudo um poeta, tenho cantado, com muita ênfase e muita determinação, a paisagem física, histórica e sentimental de minha longínqua e humilde província.
Aqui, pois, estou eu, um poeta matuto, em plena capital cultural do país, entre o que há de mais seleto no mundo da História e da Geografia, no firme propósito de honrar e merecer a elevada distinção que os senhores me conferiram, tentando percorrer o caminho que vários de meus conterrâneos seguiram em plagas cariocas. A seguir, a título de ilustração e comovida homenagem, apresento uma sintética amostragem de ilustres membros de estirpes piauienses que perlustraram e ilustraram o Estado do Rio de Janeiro, com o melhor de seu esforço, labor e inteligência, todos aqui presentes, seja apenas em espírito, seja espiritual e materialmente, abrilhantando esta tarde de cultura e saber, tão importante para mim em sua singeleza, cuja memória se fará eterna em minha alma e em meu coração:
O valoroso Bugija Brito, de imorredoura memória, escreveu páginas admiráveis, em seu estilo torrencial e inconfundível, em que abordou, com muita propriedade, os mais variados assuntos, muitos deles referentes ao seu e meu Piauí. Amélia de Freitas Beviláqua, talentosa e irrequieta, talvez a maior expressão feminina do ativismo literário da primeira metade deste século. Um sábio, neurologista de fama internacional, membro das Academias Brasileira e Piauiense de Letras, Deolindo Couto dispensa comentários. Júlio Romão também por aqui espargiu muito de seu talento, sobretudo peças para o teatro. De memória prodigiosa, nesta metrópole viveu, durante vários anos, Cristino Castelo Branco, que presidiu a Academia Piauiense de Letras e a Federação das Academias de Letras do Brasil, cujos escritos, verdadeiros depoimentos, muito contribuíram para o enriquecimento e preservação da historiografia literária de meu Piauí. Assis Brasil, um dos mais fortes e fecundos nomes da romancística atual, nesta cidade maravilhosa esbanja os dons de que é senhor, cabendo evidenciar que muitas de suas obras são romances históricos, nos quais imperam, além da pesquisa, sua imaginação e capacidade de urdir tramas de vigorosa densidade psicológica e emocional. Félix Pacheco, notável político de meu torrão natal, proprietário do Jornal do Commercio, aqui urdiu belos e imortais versos, e tão viva foi a sua presença que terminou por ter o seu nome dado a um Instituto famoso, que grandes e belos serviços presta ao Brasil. Neste Rio de Janeiro residiu o nosso poeta maior, Da Costa e Silva, o poeta da saudade e do “Velho Monge”, que ornou a literatura nacional com os mais extraordinários versos, que algum poeta ousaria escrever. Nesta boa e bela terra mourejaram o Gen. Jonas de Moraes Correia Filho, Secretário de Educação do Rio de Janeiro, Deputado Federal, membro da Academia Carioca de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e o seu filho Jonas de Moraes Correia Neto, também General e igualmente sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que ocupou o elevado cargo de Chefe do Estado Maior das Forças Armadas. Vive aqui Cunha e Silva Filho, arguto e preparado crítico literário, poliglota, mestre em literatura e excepcional ensaísta, que relevantes serviços presta ao magistério carioca. Também nesta plaga, nunca assaz celebrada, vive e labora José Ribamar Garcia, um jurista da melhor cepa, sobretudo no ramo do Direito Comercial, ficcionista de escol, oleiro demiurgo, que do barro de seu torrão natal esculpiu suas criaturas, em cujas narinas infundiu o sopro sagrado da vida. Nesta terra de São Sebastião e do Morro Cara de Cão viveu, durante algum tempo, Mário Faustino, tão cedo arrebatado desta vida descontente, excelso poeta piauiense, que soube fazer um casamento feliz entre a tradição e a invenção em seus versos maravilhosos, e que pontificou no Jornal do Brasil como crítico talentoso e sério, em que, para a pouca idade, já denotava invejável erudição. Mora nesta terra um prezado amigo, cavalheiro de fino trato e esmerada educação, herói da guerra contra o nazi-fascismo, que igualmente pertence ao mundo intelectual, cujo nome declino com reverência: General João Evangelista Mendes da Rocha. Aqui mora e trabalha uma professora, que na verdade é mestra, uma mestra que é doutora, uma doutora que é mais que doutora, porque é uma professora na mais lídima e exata acepção do vocábulo. Refiro-me à professora Miridan Brito Knox Falci, que admiráveis estudos e ensaios tem escrito no campo da historiografia, sempre com muita proficiência, profundidade e ineditismo.
Mais me tenho dedicado a ler do que a escrever, a refletir do que a externar, a ouvir do que a dizer, no longo e penoso esforço de minha literatura. É que prefiro escrever um único bom poema do que várias mediocridades. E isto requer paciência, longa espera, demorada gestação e, muitas vezes, dificultoso trabalho de parto, exigindo ainda o largo uso da tesoura, da borracha e da cesta de lixo, requisitos indispensáveis para quem tem um mínimo de autocrítica.
Ser poeta é perceber as flores e as estrelas que precisam ser percebidas. É ter a antena da sensibilidade voltada para os mais diferentes valores da vida e para as mais variadas formas de manifestação dos sentimentos e da emoção. Descobrir a beleza onde quer que ela se encontre ou se esconda. Garimpar as pedras preciosas que hão de ser garimpadas, e descobrir aquelas que se excedem em pureza e glória. Amar o amor pelo amor do próprio amor. Fugir do trivial e vulgar, sem deixar de ser simples e criativo.
Tenho ainda que explicar por que um poeta se encontra, sem ser um estranho, entre os doutores e sumidades da Geografia e da História, bem à vontade nos domínios da deusa Clio. É que eu, como já disse, en passant, tenho cantado a beleza e a grandeza dos aspectos geográficos e históricos de meu Estado. Tenho divulgado em meus poemas, através de livros, revistas e jornais, um pouco de sua História e Geografia. Sem ser um ecologista renitente e de carteirinha, tenho defendido a sua paisagem natural e arquitetônica. Tenho denunciado os crimes que se cometem contra o nosso patrimônio histórico, arquitetônico e ambiental.
Lá na minha Campo Maior, às margens do Jenipapo, travou-se talvez a mais importante batalha em prol da Independência do Brasil – a Batalha do Jenipapo, injustamente esquecida pelos grandes historiadores de nossa pátria. Eu a celebrei nos versos:

                      O Monumento aos Heróis da Batalha do Jenipapo
recorte de concreto contra a seda azul do céu
em pleno e plano tabuleiro dos grandes campos
de Campo Maior
não obstante bonito é apenas um símbolo da
coragem dos filhos da Terra dos Carnaubais
e de outras terras
(...)

O comandante português, que teve uma vitória de Pirro, pelas conseqüências que lhe adviriam dessa batalha, refugiou-se na Fazenda Tombador, situada nas cercanias da vila de Santo Antônio do Surubim, a velha Campo Maior, a ancestral Bitorocara do saudoso historiador Pe. Cláudio Melo. Essa fazenda existia até bem pouco tempo, quando mão insensível, insensata e cruel a destruiu, no interesse apenas de seu bolso, quando poderia tê-la reformado e preservado, dando-lhe, de preferência, a destinação de museu ou de espaço cultural. Mas se o apego aos metais não permitisse dar-lhe essa destinação, que a reformasse internamente, conservando-lhe a aparência externa, e desse-lhe o uso que melhor sua ganância recomendasse. Também, em versos, combati esse crime imperdoável:

Quando literalmente tombaram
a Fazenda Tombador,
nenhuma voz se levantou,
nem mesmo a voz de alguém,
que clamasse no deserto, clamou.
E a Fazenda Tombador
literalmente tombou.


Sendo Elmar, eu não sou apenas um amante e amado do mar, mas sou o próprio mar – el mar. Ora, tendo contemplado na infância apenas o espraiar dos longos tabuleiros e ouvido somente o murmurante farfalhar das carnaubeiras, custa-me, a mim mesmo, crer que o oceano me tenha fascinado com tamanha intensidade, quando me mudei para a minha mui amada Parnaíba, de longo passado histórico e de cultivada tradição, sobretudo no tempo do fastígio da Casa Grande dos Dias da Silva, envolta em lendas, superstições e mistério, e no tempo do apogeu comercial, em que as alvarengas e barcaças, com os indefectíveis vareiros e porcos d’água, transitavam pelo Igaraçu, nas imediações do Porto Salgado e do Porto das Barcas, ali onde perambulavam as meretrizes dos bailes azuis e outros bailes dos cabarés da Munguba. Cantei esse tempo, imorredouro na saudade:

Hoje o Porto Salgado
sal’do nominal
do naufrágio
de uma barcaça de sal
é salamargo na lembrança
dos vareiros e embarcadiços.

E a água do Igaraçu

é uma lágrima de saudade
(ou sal’dade?)
do fastígio de outrora.
Os parcos barcos são
poemas de chegadas e partidas
e símbolos da decadência.

Entrando talvez na história do cotidiano ou mesmo na história imediata e popular, ou até mesmo nos domínios da geografia humana, registrei em poema – no épico moderno PoeMitos da Parnaíba – tipos populares e folclóricos, que marcaram época e que ainda hoje vivem cada vez mais vivos na memória de muitos. Nesse longo poema desfilam os bêbados, os loucos de todos os gêneros, as prostitutas e os proxenetas, os trágicos, os cômicos, os ridículos, os pitorescos, picarescos e passionais personagens de uma história que não será contada jamais nos livros da história tradicional, mas que teimam em não morrer, na sucessividade das memórias das gerações, que remanescem renitentes no resgate de meus versos:

Derocy

Derocy, Ofélia da Parnaíba,
não era um orador oral:
era um orador boçal
em seus discursos bestialógicos,
ilógicos, escatológicos. Tirava
do sério o homem sério quando
disparava seus disparates.

Marechal
(...)
Davam-lhe plaquetas e selos
e pequenas chapas de metal:
eram as condecorações e os
distintivos com os quais desfilava
entre continências de
risos e zombarias.

Vários sítios e cidades piauienses foram tratados em meus poemas, nos quais evidenciei os seus aspectos pitorescos e peculiares, com a exaltação de suas belas paisagens. Dentre as várias cidades, enfoquei Barras, Barras das sete barras, dos rios, da Ilha dos Amores, a chamada Terra dos Governadores, por ter dado vários governantes ao Piauí e a outros Estados brasileiros, terra que ofertou ao nosso estado vários intelectuais e poetas ilustres. Assim versejei essa terra, à qual sou ligado por laços afetivos e pela memória atávica de meus ancestrais paternos:

(...)
Terra dos Governadores,
do desgoverno das dores
das ciliadas paixões
deliciadas na Ilha dos Amores.
(...)
Terra dos milagres da Alda,
a que morreu virgem,
na vertigem de um sonho
que num átimo se fez e desfez.
(...)

Desde a minha já distante meninice fui fascinado pela velha Mocha, pela querida Oeiras, a primeira capital do Piauí, terra de muita história e muita tradição, que muitos filhos ilustres tem dado ao nosso Estado, nos mais diferentes campos do saber humano e das artes. Abençoada pela Senhora da Vitória, com o seu cetro fulgurante, do alto do Leme, acariciada pelas águas históricas do Mocha e pelas águas mitológicas do Pouca Vergonha, que hoje só tem vergonha da pouca água que tem, adormece e trabalha a velha urbe, emoldurada pelas colinas, que lhe realçam a beleza do perfil. Retratei a velha capital, os seus casarões vetustos, os velhos sótãos e porões, por vezes esconderijos de ratos e fantasmas, os velhos e rugosos prédios, trêmulos, pelos achaques do tempo, as belas palmeiras imperiais da praça das Vitórias, que elegantemente acenam suas palmas, ao dobre dos sinos do campanário da imponente e antiga catedral. Em versos, assim a vi:

(...)
Atravesso a praça das Vitórias
na hora dolorosa das doze badaladas
punhaladas que também me atravessam.

Da casa de doze janelas
doze donzelas me espiam com olhares
que são setas de medo que
assustam e extasiam.
(...)

É chegada mais do que a hora de freiar este comboio quase desgovernado de frases alinhadas ao sabor do acaso, da memória e da emoção.
Sim, porque é uma emoção formidável estar aqui, entre os doutores e mestres da História e da Geografia, este poeta provinciano, poeta de já escassos cabelos e de nenhum louro, poeta de poucas letras e de muita audácia, pois só a audácia me faria adentrar este Olimpo, que só os privilegiados podem alcançar. À morada dos deuses, poucos mortais têm acesso.
Contudo, meus senhores, senhoras minhas, não me sinto um estranho no ninho. Ao contrário, sinto-me em casa, rodeado de amigos, no aconchego de um lar que chamaria paterno e materno, porque se os senhores são geógrafos e historiadores na geografia, na historiografia, nos livros e na cátedra, eu sou historiador e geógrafo na literatura e na poesia.

(*) Discurso pronunciado por José Elmar de Mélo Carvalho, no dia de sua posse no Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, ocorrida em 27 de agosto de 1998, na sede do sodalício, na condição de sócio correspondente.

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