Charge: Gervásio Castro |
Charge: Gervásio Castro |
UM POETA NO TEMPLO DE CLIO (*)
Elmar Carvalho
Ora,
direis, entre o espanto e a perplexidade, um poeta tomando assento no
templo máximo da História e da Geografia do Rio de Janeiro, na
qualidade de sócio correspondente de seu Estado natal, o Piauí!?...
É que os senhores verificaram que, embora eu seja
intrinsecamente e sobretudo um poeta, tenho cantado, com muita ênfase
e muita determinação, a paisagem física, histórica e sentimental
de minha longínqua e humilde província.
Aqui,
pois, estou eu, um poeta matuto, em plena capital cultural do país,
entre o que há de mais seleto no mundo da História e da Geografia,
no firme propósito de honrar e merecer a elevada distinção que os
senhores me conferiram, tentando percorrer o caminho que vários de
meus conterrâneos seguiram em plagas cariocas. A seguir, a título
de ilustração e comovida homenagem, apresento uma sintética
amostragem de ilustres membros de estirpes piauienses que
perlustraram e ilustraram o Estado do Rio de Janeiro, com o melhor de
seu esforço, labor e inteligência, todos aqui presentes, seja
apenas em espírito, seja espiritual e materialmente, abrilhantando
esta tarde de cultura e saber, tão importante para mim em sua
singeleza, cuja memória se fará eterna em minha alma e em meu
coração:
O
valoroso Bugija Brito, de imorredoura memória, escreveu páginas
admiráveis, em seu estilo torrencial e inconfundível, em que
abordou, com muita propriedade, os mais variados assuntos, muitos
deles referentes ao seu e meu Piauí. Amélia de Freitas Beviláqua,
talentosa e irrequieta, talvez a maior expressão feminina do
ativismo literário da primeira metade deste século. Um sábio,
neurologista de fama internacional, membro das Academias Brasileira e
Piauiense de Letras, Deolindo Couto dispensa comentários. Júlio
Romão também por aqui espargiu muito de seu talento, sobretudo
peças para o teatro. De memória prodigiosa, nesta metrópole viveu,
durante vários anos, Cristino Castelo Branco, que presidiu a
Academia Piauiense de Letras e a Federação das Academias de Letras
do Brasil, cujos escritos, verdadeiros depoimentos, muito
contribuíram para o enriquecimento e preservação da historiografia
literária de meu Piauí. Assis Brasil, um dos mais fortes e
fecundos nomes da romancística atual, nesta cidade maravilhosa
esbanja os dons de que é senhor, cabendo evidenciar que muitas de
suas obras são romances históricos, nos quais imperam, além da
pesquisa, sua imaginação e capacidade de urdir tramas de vigorosa
densidade psicológica e emocional. Félix Pacheco, notável político
de meu torrão natal, proprietário do Jornal do Commercio, aqui
urdiu belos e imortais versos, e tão viva foi a sua presença que
terminou por ter o seu nome dado a um Instituto famoso, que grandes e
belos serviços presta ao Brasil. Neste Rio de Janeiro residiu o
nosso poeta maior, Da Costa e Silva, o poeta da saudade e do “Velho
Monge”, que ornou a literatura nacional com os mais extraordinários
versos, que algum poeta ousaria escrever. Nesta boa e bela terra
mourejaram o Gen. Jonas de Moraes Correia Filho, Secretário de
Educação do Rio de Janeiro, Deputado Federal, membro da Academia
Carioca de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
e o seu filho Jonas de Moraes Correia Neto, também General e
igualmente sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
que ocupou o elevado cargo de Chefe do Estado Maior das Forças
Armadas. Vive aqui Cunha e Silva Filho, arguto e preparado crítico
literário, poliglota, mestre em literatura e excepcional ensaísta,
que relevantes serviços presta ao magistério carioca. Também nesta
plaga, nunca assaz celebrada, vive e labora José Ribamar Garcia, um
jurista da melhor cepa, sobretudo no ramo do Direito Comercial,
ficcionista de escol, oleiro demiurgo, que do barro de seu torrão
natal esculpiu suas criaturas, em cujas narinas infundiu o sopro
sagrado da vida. Nesta terra de São Sebastião e do Morro Cara de
Cão viveu, durante algum tempo, Mário Faustino, tão cedo
arrebatado desta vida descontente, excelso poeta piauiense, que soube
fazer um casamento feliz entre a tradição e a invenção em seus
versos maravilhosos, e que pontificou no Jornal do Brasil como
crítico talentoso e sério, em que, para a pouca idade, já denotava
invejável erudição. Mora nesta terra um prezado amigo, cavalheiro
de fino trato e esmerada educação, herói da guerra contra o
nazi-fascismo, que igualmente pertence ao mundo intelectual, cujo
nome declino com reverência: General João Evangelista Mendes da
Rocha. Aqui mora e trabalha uma professora, que na verdade é mestra,
uma mestra que é doutora, uma doutora que é mais que doutora,
porque é uma professora na mais lídima e exata acepção do
vocábulo. Refiro-me à professora Miridan Brito Knox Falci, que
admiráveis estudos e ensaios tem escrito no campo da historiografia,
sempre com muita proficiência, profundidade e ineditismo.
Mais me tenho dedicado a ler do que a escrever, a
refletir do que a externar, a ouvir do que a dizer, no longo e penoso
esforço de minha literatura. É que prefiro escrever um único bom
poema do que várias mediocridades. E isto requer paciência, longa
espera, demorada gestação e, muitas vezes, dificultoso trabalho de
parto, exigindo ainda o largo uso da tesoura, da borracha e da cesta
de lixo, requisitos indispensáveis para quem tem um mínimo de
autocrítica.
Ser poeta é perceber as flores e as estrelas que
precisam ser percebidas. É ter a antena da sensibilidade voltada
para os mais diferentes valores da vida e para as mais variadas
formas de manifestação dos sentimentos e da emoção. Descobrir a
beleza onde quer que ela se encontre ou se esconda. Garimpar as
pedras preciosas que hão de ser garimpadas, e descobrir aquelas que
se excedem em pureza e glória. Amar o amor pelo amor do próprio
amor. Fugir do trivial e vulgar, sem deixar de ser simples e
criativo.
Tenho ainda que explicar por que um poeta se encontra,
sem ser um estranho, entre os doutores e sumidades da Geografia e da
História, bem à vontade nos domínios da deusa Clio. É que eu,
como já disse, en passant, tenho cantado a beleza e a grandeza dos
aspectos geográficos e históricos de meu Estado. Tenho divulgado em
meus poemas, através de livros, revistas e jornais, um pouco de sua
História e Geografia. Sem ser um ecologista renitente e de
carteirinha, tenho defendido a sua paisagem natural e arquitetônica.
Tenho denunciado os crimes que se cometem contra o nosso patrimônio
histórico, arquitetônico e ambiental.
Lá na minha Campo Maior, às margens do Jenipapo,
travou-se talvez a mais importante batalha em prol da Independência
do Brasil – a Batalha do Jenipapo, injustamente esquecida pelos
grandes historiadores de nossa pátria. Eu a celebrei nos versos:
O Monumento aos Heróis da Batalha do Jenipapo
O Monumento aos Heróis da Batalha do Jenipapo
recorte
de concreto contra a seda azul do céu
em
pleno e plano tabuleiro dos grandes campos
de
Campo Maior
não
obstante bonito é apenas um símbolo da
coragem
dos filhos da Terra dos Carnaubais
e
de outras terras
(...)
O comandante português, que teve uma vitória de Pirro,
pelas conseqüências que lhe adviriam dessa batalha, refugiou-se na
Fazenda Tombador, situada nas cercanias da vila de Santo Antônio do
Surubim, a velha Campo Maior, a ancestral Bitorocara do saudoso
historiador Pe. Cláudio Melo. Essa fazenda existia até bem pouco
tempo, quando mão insensível, insensata e cruel a destruiu, no
interesse apenas de seu bolso, quando poderia tê-la reformado e
preservado, dando-lhe, de preferência, a destinação de museu ou de
espaço cultural. Mas se o apego aos metais não permitisse dar-lhe
essa destinação, que a reformasse internamente, conservando-lhe a
aparência externa, e desse-lhe o uso que melhor sua ganância
recomendasse. Também, em versos, combati esse crime imperdoável:
Quando literalmente tombaram
a Fazenda Tombador,
nenhuma voz se levantou,
nem mesmo a voz de alguém,
que clamasse no deserto, clamou.
E a Fazenda Tombador
literalmente tombou.
Sendo Elmar, eu não sou apenas um amante e amado do
mar, mas sou o próprio mar – el mar. Ora, tendo contemplado na
infância apenas o espraiar dos longos tabuleiros e ouvido somente o
murmurante farfalhar das carnaubeiras, custa-me, a mim mesmo, crer
que o oceano me tenha fascinado com tamanha intensidade, quando me
mudei para a minha mui amada Parnaíba, de longo passado histórico e
de cultivada tradição, sobretudo no tempo do fastígio da Casa
Grande dos Dias da Silva, envolta em lendas, superstições e
mistério, e no tempo do apogeu comercial, em que as alvarengas e
barcaças, com os indefectíveis vareiros e porcos d’água,
transitavam pelo Igaraçu, nas imediações do Porto Salgado e do
Porto das Barcas, ali onde perambulavam as meretrizes dos bailes
azuis e outros bailes dos cabarés da Munguba. Cantei esse tempo,
imorredouro na saudade:
Hoje o Porto Salgado
sal’do nominal
do naufrágio
de uma barcaça de sal
é salamargo na lembrança
dos vareiros e embarcadiços.
E a água do Igaraçu
é uma lágrima de saudade
(ou sal’dade?)
do fastígio de outrora.
Os parcos barcos são
poemas de chegadas e partidas
e símbolos da decadência.
Entrando talvez na história do cotidiano ou mesmo na
história imediata e popular, ou até mesmo nos domínios da
geografia humana, registrei em poema – no épico moderno PoeMitos
da Parnaíba – tipos populares e folclóricos, que marcaram época
e que ainda hoje vivem cada vez mais vivos na memória de muitos.
Nesse longo poema desfilam os bêbados, os loucos de todos os
gêneros, as prostitutas e os proxenetas, os trágicos, os cômicos,
os ridículos, os pitorescos, picarescos e passionais personagens de
uma história que não será contada jamais nos livros da história
tradicional, mas que teimam em não morrer, na sucessividade das
memórias das gerações, que remanescem renitentes no resgate de
meus versos:
Derocy
Derocy, Ofélia da Parnaíba,
não era um orador oral:
era um orador boçal
em seus discursos bestialógicos,
ilógicos, escatológicos. Tirava
do sério o homem sério quando
disparava seus disparates.
Marechal
(...)
Davam-lhe plaquetas e selos
e pequenas chapas de metal:
eram as condecorações e os
distintivos com os quais desfilava
entre continências de
risos e zombarias.
Vários sítios e cidades piauienses foram tratados em
meus poemas, nos quais evidenciei os seus aspectos pitorescos e
peculiares, com a exaltação de suas belas paisagens. Dentre as
várias cidades, enfoquei Barras, Barras das sete barras, dos rios,
da Ilha dos Amores, a chamada Terra dos Governadores, por ter dado
vários governantes ao Piauí e a outros Estados brasileiros, terra
que ofertou ao nosso estado vários intelectuais e poetas ilustres.
Assim versejei essa terra, à qual sou ligado por laços afetivos e
pela memória atávica de meus ancestrais paternos:
(...)
Terra dos Governadores,
do desgoverno das dores
das ciliadas paixões
deliciadas na Ilha dos Amores.
(...)
Terra dos milagres da Alda,
a que morreu virgem,
na vertigem de um sonho
que num átimo se fez e desfez.
(...)
Desde a minha já distante meninice fui fascinado pela
velha Mocha, pela querida Oeiras, a primeira capital do Piauí, terra
de muita história e muita tradição, que muitos filhos ilustres tem
dado ao nosso Estado, nos mais diferentes campos do saber humano e
das artes. Abençoada pela Senhora da Vitória, com o seu cetro
fulgurante, do alto do Leme, acariciada pelas águas históricas do
Mocha e pelas águas mitológicas do Pouca Vergonha, que hoje só tem
vergonha da pouca água que tem, adormece e trabalha a velha urbe,
emoldurada pelas colinas, que lhe realçam a beleza do perfil.
Retratei a velha capital, os seus casarões vetustos, os velhos
sótãos e porões, por vezes esconderijos de ratos e fantasmas, os
velhos e rugosos prédios, trêmulos, pelos achaques do tempo, as
belas palmeiras imperiais da praça das Vitórias, que elegantemente
acenam suas palmas, ao dobre dos sinos do campanário da imponente e
antiga catedral. Em versos, assim a vi:
(...)
Atravesso a praça das Vitórias
na hora dolorosa das doze badaladas
punhaladas que também me atravessam.
Da casa de doze janelas
doze donzelas me espiam com olhares
que são setas de medo que
assustam e extasiam.
(...)
É chegada mais do que a hora de freiar este comboio
quase desgovernado de frases alinhadas ao sabor do acaso, da memória
e da emoção.
Sim,
porque é uma emoção formidável estar aqui, entre os doutores e
mestres da História e da Geografia, este poeta provinciano, poeta de
já escassos cabelos e de nenhum louro, poeta de poucas letras e de
muita audácia, pois só a audácia me faria adentrar este Olimpo,
que só os privilegiados podem alcançar. À morada dos deuses,
poucos mortais têm acesso.
Contudo, meus senhores, senhoras minhas, não me sinto
um estranho no ninho. Ao contrário, sinto-me em casa, rodeado de
amigos, no aconchego de um lar que chamaria paterno e materno, porque
se os senhores são geógrafos e historiadores na geografia, na
historiografia, nos livros e na cátedra, eu sou historiador e
geógrafo na literatura e na poesia.
(*)
Discurso pronunciado por José Elmar de Mélo Carvalho,
no dia de sua posse no Instituto Histórico e Geográfico do Rio de
Janeiro, ocorrida em 27 de agosto de 1998, na sede do sodalício, na
condição de sócio correspondente.
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