EXORCIZANDO
AS DOENÇAS
Jacob
Fortes
A
sabedoria popular sustenta, de modo veemente, que os recém-nascidos,
bípedes ou quadrúpedes, trazem em seus corpos uma espécie de
antígeno pelo qual o organismo mantém-se protegido de doenças por
duradouros anos. Seria digamos algo semelhante ao colostro, líquido
amarelo secretado pelas glândulas mamárias antes e, principalmente,
depois do parto, rico em anticorpos. O colostro tem a função de
imunizar o recente, exemplificativamente os bezerros.
Mas
o antígeno, talqualmente os repelentes, têm prazo de validade;
afugenta enquanto perdura sua ação. A medicina não confirma, mas
também não refuta essa crença acerca do antígeno. Verdade ou
mentira o fato é que o populacho, esteado na superstição,
tradição, ocultismo ou coisa que o valha, acredita piamente nas
propriedades que tem o antígeno de enxotar agentes patogênicos;
invasores. Nesse aspecto o sistema imunológico é,
misericordiosissimamente, o lado inventivo e benfeitor da natureza. O
problema é que não se sabe quando termina o prazo de validade do
antígeno. Porém uma coisa é certa: experiencialmente sabe-se que o
seu combustível é bastante rentável, suficiente para percorrer
todo o calendário da primavera e, de brinde, atingir a fronteira do
verão. Por causa dos efeitos longevos do antígeno há casos em que
o cristão consegue atravessar, ileso, sem avarias, todo o território
do verão. Coincidência ou não, quando a criatura, agora do
meio-dia para a tarde, põe os pés em solo outonal aí começa o
desmantelo, a bagunça, o flagelo. Em bandos ou em manadas, marmotas
surgem de todas as paragens, inclusive do estrangeiro, com o firme
propósito de se instalar na cacunda do cristão, justamente quando
este, despojado da intrepidez da mocidade, (e do orgulho), já não
tem munição grossa para reagir. Invariavelmente o lombo está
ornado de mataduras causadas pelo albardão dos anos. Esses seres
espectrais chegam à socapa, como quem não quer nada, e, ao menor
descuido da vigilância, vão-se alojando, cada um a seu tempo, nos
organismos humanos deixando-os lesionados, achacados, escarificados,
fazendo lembrar os vergões de chicotada que zebravam o dorso dos
cativos quando estes participavam das delicadas aulas de correção
regidas pela bondosa escravatura. A técnica das marmotas, aliás,
muito se assemelha ao movimento dos sem-teto.
Ainda
que nenhum organismo esteja imune a enfermidades, verdade é que
existem aqueles que têm tendências inatas para atrair essas
marmotas; recendem um cheiro agradabilíssimo ao olfato das
assombrações. Por causa desse cheiro gustativo certos organismos
estão sempre lotados, não há vaga para mais ninguém. Nesse
“santuário” de doença em cuja romaria há peregrinos nacionais
e importados, o que se vê são doenças do lado de fora, à espera
de vaga. Quando o hospedeiro, com o corpo apinhado de doença, já
não suporta o peso da carga ele, que mal se levanta, se alui e,
afadigado, sai em busca de um médico (alguns preferem os
mandingueiros) que lhe possa prescrever um antídoto, um uma surra de
pinhão roxo, um alvará de despejo com que possa exorcizar os
inquilinos malfazejos. Mas é preciso alertar que a solução nem
sempre ocorre de forma imediata, pois há invasores portadores de
estabilidade assegurada pela usucapião. Em tais ocorrências há que
se recorrer ao tribunal imagiológico cujo itinerário hierárquico é
pródigo em instâncias de grande valimento dentre elas a ressonância
magnética, o eletrocardiograma, o ultrassom e outras que vão além
das catorze estações da via-sacra.
Apesar
dos achaques que as marmotas vão causando mundo afora, — além, é
claro, de o encherem com o seu assombro —, durante o outono é
possível ao padecente conseguir uma boa reforma junto a um bom
médico. O mesmo já não se pode dizer em relação aos que pisam em
áreas jurisdicionadas ao inverno, a última quadra da vida. Nessa
fase, em que a primavera é algo que ficou num passado distante e os
que dominavam agora são dominados, reformas já não são
eficientes; apenas paliam.
Seja
como for, o importante é dulcificar a vida, afugentar do corpo a
acidez para não atrair cupins. Se não sabe o nobre leitor, o cupim
só habita solos extremamente ácidos. Quem, viajando de automóvel,
já avistou, à margem da via, um talhão de solo abarrotado de
arranha-céus edificados pelos cupins? Então, eles só habitam essas
terras porque são extremamente ácidas. Os solos corrigidos por meio
de calcário não lhes servem de estalagem; em vez de palatáveis
lhes são repulsivos.
No
cardápio destinado a dulcificar a vida há preceitos inumeráveis
com que se podem espaventar as marmotas: um deles refere-se à
higiene mental derivada de viagens e tudo mais de efeito
anticorrosivo às rotinas de ferrolho, incluso espairecer na orla, no
bosque, nos palhaços de circo que dão fidelidade do riso.
Ainda
que esta prédica esconjuratória possa ressoar aos ouvidos de todos,
maior favor prestará aos que — atravessando frajolamente a quadra
da mocidade — estão longe de ficar perto de quem está perto do
fim. Desavisados, jamais imaginam que um dia lhes baterá à porta
uma fatura cobrando-lhes o frescor da mocidade. Pelo SIM, pelo NÃO,
convém não olvidar: a natureza que concede é a mesma que toma;
forma e deforma, põe e dispõe.
Xô,
marmotas. Salvante as doenças grudadas ao meu cangote por força de
estabilizada, na minha cacunda não tem mais vaga. Que Deus se apiede
dos infelizes hospedeiros.
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