terça-feira, 10 de junho de 2014

AURORA MENINEIRA


AURORA MENINEIRA

Jacob Fortes

Sobre o meu corpo e também nos meus modos já não existem sinais visíveis da minha origem: uma cabana, (escassa em mesa, farta em comunhão,) encravada no sopé de uma montanha situada na aba setentrional dos sertões de Euclides. O meu falar, genuinamente matuto, inerudito, afastou-se de mim, furtivamente, assim que percebeu minhas novas amizades: os livros. A minha roupa, empoeirada e fora do esquadro, também partiu; possivelmente envergonhada por ocupar, no guarda-roupas, um lugar que já não lhe pertencia. O meu gestual caipira, tímido, sem traquejo, cedeu lugar a outras formas espontâneas de expressão. As minhas feições, tão tenras quanto às de um botão em flor, com a consumação dos anos foram-se despetalando. Enfim, depois de toda essa metamorfose, em várias dimensões, os meus traços, marcantemente caipira, se desmancharam. Ainda que os distintivos exteriores que fiavam minha condição de roceiro tenham-se diluído, um após outro, a saudade da aurora menineira não desgrudou de mim. Ela, que tanto refresca quanto arde, tornou-se o sacrário das recordações pueris que calibram a minha alma. Cito apenas o desapressado ribeirão Longá, ladeando a montanha, onde eu tomava banho com os meus manos, e o vadiar pelos campos em busca da fruta encarnada, do cardeiro.

Ao meu sertão, não o de hoje, mas aquele, de carne e osso, – cujos habitantes pautavam a cura das suas enfermidades pelo ocultismo — e que tinha o condão de modelar o caráter e o decoro da sua gente, o meu agradecimento por haver-me ofertado uma infância lúdica. Infância que não sabia de onde vinha o que comia. Ainda bem que nessa quadra pubescente da vida fui poupado do aviso de que em certo momento acabaria a gratuidade da infância e começaria o tempo dos compromissos sérios dos adultos, sobretudo perante os padrões sociais ditados pelos citadinos. Nesse período em que durou a validade da infância pude me lambuzar; comum é o nordestino fazer-se homem sem ter sido criança.

Gostaria de detalhar ao leitor os efeitos da saudade dessa quadra de enlevo, porém não me ocorre o modo mais apropriado. Sendo assim, evoco ao céu o nome do gênio analfabeto, Zé da Luz, a quem peço por empréstimo as suas palavras, pois elas têm a medida certa para expressar o remastigar das recordações de uma aurora que foi a sementeira particular de felicidade no alvorecer da minha primavera.

Uma dô já rimuída,
Qui já cançou e num dói
Taliquá cumo as cumída
Qui os boi come e arrimói”

Dileto Sertão, se tu já não vês as tuas marcas em mim é porque elas estão do lado de dentro do meu peito. Mas saiba: nos confins da minha essência habita um caboclo que te devota, que se vê em ti, que faz de ti a sua canção preferida.   

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