AURORA
MENINEIRA
Jacob
Fortes
Sobre
o meu corpo e também nos meus modos já não existem sinais visíveis
da minha origem: uma cabana, (escassa em mesa, farta em comunhão,)
encravada no sopé de uma montanha situada na aba setentrional dos
sertões de Euclides. O meu falar, genuinamente matuto, inerudito,
afastou-se de mim, furtivamente, assim que percebeu minhas novas
amizades: os livros. A minha roupa, empoeirada e fora do esquadro,
também partiu; possivelmente envergonhada por ocupar, no
guarda-roupas, um lugar que já não lhe pertencia. O meu gestual
caipira, tímido, sem traquejo, cedeu lugar a outras formas
espontâneas de expressão. As minhas feições, tão tenras quanto
às de um botão em flor, com a consumação dos anos foram-se
despetalando. Enfim, depois de toda essa metamorfose, em várias
dimensões, os meus traços, marcantemente caipira, se desmancharam.
Ainda que os distintivos exteriores que fiavam minha condição de
roceiro tenham-se diluído, um após outro, a saudade da aurora
menineira não desgrudou de mim. Ela, que tanto refresca quanto arde,
tornou-se o sacrário das recordações pueris que calibram a minha
alma. Cito apenas o desapressado ribeirão Longá, ladeando a
montanha, onde eu tomava banho com os meus manos, e o vadiar pelos
campos em busca da fruta encarnada, do cardeiro.
Ao
meu sertão, não o de hoje, mas aquele, de carne e osso, – cujos
habitantes pautavam a cura das suas enfermidades pelo ocultismo — e
que tinha o condão de modelar o caráter e o decoro da sua gente, o
meu agradecimento por haver-me ofertado uma infância lúdica.
Infância que não sabia de onde vinha o que comia. Ainda bem que
nessa quadra pubescente da vida fui poupado do aviso de que em certo
momento acabaria a gratuidade da infância e começaria o tempo dos
compromissos sérios dos adultos, sobretudo perante os padrões
sociais ditados pelos citadinos. Nesse período em que durou a
validade da infância pude me lambuzar; comum é o nordestino
fazer-se homem sem ter sido criança.
Gostaria
de detalhar ao leitor os efeitos da saudade dessa quadra de enlevo,
porém não me ocorre o modo mais apropriado. Sendo assim, evoco ao
céu o nome do gênio analfabeto, Zé da Luz, a quem peço por
empréstimo as suas palavras, pois elas têm a medida certa para
expressar o remastigar das recordações de uma aurora que foi a
sementeira particular de felicidade no alvorecer da minha primavera.
“Uma
dô já rimuída,
Qui
já cançou e num dói
Taliquá
cumo as cumída
Qui
os boi come e arrimói”
Dileto
Sertão, se tu já não vês as tuas marcas em mim é porque elas
estão do lado de dentro do meu peito. Mas saiba: nos confins da
minha essência habita um caboclo que te devota, que se vê em ti,
que faz de ti a sua canção preferida.
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