Goleiro Coló e o Caiçara |
Comercial e o goleiro Beroso |
Pintura de Amaral - acervo de Cineas Santos/Oficina da Palavra |
René Iguita |
4 de julho Diário Incontínuo
A INGRATA
POSIÇÃO DE GOLEIRO
Elmar Carvalho
Desde minha
infância e adolescência, fui um admirador dos goleiros Beroso e Coló, como já
tive ocasião de dizer. Era meu ícone, sobretudo, o segundo, tanto por suas
pontes ou voadas espetaculares, como pelo fato de ser integrante do Caiçara. O
Coló, na minha concepção, era mais estiloso, exercitava mais a elasticidade e
ornamentava as suas defesas com suas acrobacias felinas e pontes estaiadas, em
que parecia desafiar a lei da gravidade.
O Beroso,
titular do Comercial por muitos anos, era mais objetivo; procurava se
posicionar corretamente, fechando os ângulos para a trave o máximo possível. As
suas atuações eram sóbrias, sem ornamentos, contudo, quando necessário,
realizava belas jogadas. No futebol de salão campomaiorense se destacava o
goleiro Zé Olímpio (José Olímpio da Paz Filho). Fazia arrojadas defesas, em que
praticava bonitos e acrobáticos saltos, sem medo do cimento rústico e áspero
das quadras esportivas de então.
Mormente na
minha adolescência, pratiquei, quase todo dia, o futebol. Quase sempre optei
por ser goleiro, mas algumas vezes atuei na lateral direita ou na ponta
direita. Como guarda-metas procurei imitar o grande Coló. Quase sempre minhas
atuações eram tidas como regulares ou boas, e nunca fui defenestrado de nenhuma
partida ou time. O professor, intelectual e musicista Zé Francisco Marques, na
crônica “Quem te ensinou a voar?”, que se encontra publicada na internet, narra
algumas de minhas peripécias goleirísticas da minha adolescência.
O acrobático e
elegante Coló, quando a bola vinha numa altura e numa velocidade que ele
julgava apropriadas, simulava deixar passar a pelota, para em seguida
espalmá-la ou mesmo agarrá-la em suas mãos habilidosas. Isso arrancava urros e
aplausos da torcida alvirrubra, que ficava com os nervos em frangalhos nas
arquibancadas do velho Estádio Deusdeth de Melo. Era um arqueiro de “voadas”
dignas de um trapezista circense, um verdadeiro artista do picadeiro
futebolístico.
Contou-me o
notável craque Zé Duarte uma audaciosa façanha do inesquecível Beroso, que
assim narrei no meu livro “O Pé e a Bola”: “(...) certa vez, estando Beroso
muito adiantado, houve um chute a gol por cobertura, que forçou este
extraordinário goleiro a dar dois passos em recuo, arremessar-se de costas para
trás, desviar a trajetória da bola, enquanto girava seu corpo, em legítimo
salto mortal, para cair de bruços.”
Em tempos mais
recentes, fez sucesso o espetaculoso golquíper Iguita, que além de fazer
verdadeiras acrobacias circenses, metia-se a atuar como se fora um líbero, ou
até mesmo atacante; nessas “loucuras” extravagantes tanto cometia inesperados
dribles como fazia defesas com as pernas e pés, como se fora um zagueiro.
Algumas vezes perdia a bola, e sofria melancólicos e ridículos gols. Teve alguns
imitadores, que jamais superaram o mestre. Rogério Ceni se tornou o goleiro
artilheiro, mas sobretudo em cobranças de faltas e penalidades máximas.
Alcançou o
colombiano René Iguita, com a sua basta cabeleira encaracolada, o ápice de sua
glória quando, após exaustivos treinamentos, conseguiu executar uma defesa
quase suicida, designada como escorpião, na qual ele deixava a bola passar por
sobre suas costas, e, em pleno voo e na horizontal, realizava a defesa, ao devolver
a bola com os calcanhares. Na verdade, seria muito mais simples e eficaz
encaixar a bola nas mãos ou entre o peito e os braços. De qualquer sorte foi um
grande, ousado e abusado goleiro, embora, às vezes, suas intervenções fossem
suicidas e irresponsáveis.
Uma ocasião,
talvez tentando inconscientemente imitar o meu ídolo Coló, num campinho de
areia que existia às margens do Açude Grande de Campo Maior, ao lado da vivenda
do tenente Jaime da Paz, vi a bola ser arremessada para o atacante adversário;
tive uma loucura momentânea, e no auge do entusiasmo de meus quinze ou
dezesseis anos, empreendi maluca correria para me lançar num grande e alto
salto, e dessa forma interceptar o lance. Devo dizer que, já em pleno voo,
tive medo do que poderia me acontecer no impacto com o solo, mas então já era
tarde para arrependimento e executei a defesa.
A posição de
goleiro é mesmo esdrúxula. O atleta fica solitário, sempre na proximidade da
meta. Sua preocupação exclusiva é impedir os gols, enquanto a de seus
companheiros é principalmente fazê-los. Estes jogam, sobretudo, com os pés, e
são proibidos de usar as mãos; o guarda-redes atua principalmente com as mãos.
Até a sua indumentária é diferente, tanto na cor como por ter geralmente mangas
longas, além de fazer uso de luvas.
Algumas vezes,
após uma magnífica defesa, um “montinho artilheiro” pode ludibriar um goleiro,
por melhor e mais experiente que seja. Mesmo os melhores arqueiros, aceitam, em
momento infeliz, o mais desmoralizante “frango”, ficando apenas a segurar as
penas do galináceo. O goleiro Júlio César, titular da Seleção Brasileira de
2014, consagrou-se como herói na partida contra o Chile, quando defendeu dois
chutes, na decisão dramática por pênalti.
Entretanto,
tempos atrás, ficara um tanto depressivo, ao lhe ser atribuída a responsabilidade
de uma derrota de nosso escrete nacional. O grande Barbosa amargou até o fim de
sua vida o estigma de culpado de o Brasil não ter se sagrado campeão na Copa de
1950, cuja partida ficou conhecida como Maracanazo. E ele é tido por vários
expertos como o melhor goleiro de nosso esquadrão canarinho. Muitos entendem
que esse gol não poderia ser classificado como um “frango”.
Quanto o goleiro
brilha, é sinal de que o seu time está apagado. Quando muito aparece é sinal de
que os seus companheiros não estão bem. Por outras palavras: quanto menos o
goleiro atuar e for destaque, menos preocupação o técnico e o time têm. Os gols
e os dribles são mostrados com destaque na TV, inclusive reprisados na
transmissão ao vivo, enquanto raramente são exibidas as defesas espetaculares e
mesmo milagrosas dos goleiros.
Todos podem
falhar, menos o solitário defensor. Uma falha desse guardião das traves é
sempre fatal. Portanto, é mesmo ingrata essa posição. Contudo, como é bela e
gloriosa uma defesa espetacular de um goleiro, em que ele arranca suspiros e
urros da plateia. É por isso que sinto saudade dos meus tempos de goleiro, em
que me quedava solitário sob o travessão, mas sempre atento, à espreita dos
chutes certeiros, para frustrar os possíveis gols do adversário.
Escrever sobre um tema do qual temos domínio é meio caminho para o sucesso de um texto trabalhado com o conhecimento profundo do que está sendo discutido. Este é seu caso, Elmar, ao produzir uma crônica soberana sobre a sua história de goleiro na juventude .
ResponderExcluirUm poeta falando sobre a sua própria poesia ou a poesia de outros poetas, um romancista, um contista, um dramaturgo, um artista de qualquer arte falando sobre o seu ofício criativo tem que ser levado em alta conta, e muitas vezes leva vantagem sobre os próprios críticos, os quais estão do outro lado da questão, e com outros propósitos de analisar o produto artístico.
Não é que uns sejam melhores do que os outros, mas o que uns e outros, em posições diferentes, enxergam e discernem sobre a obra de arte literária ou sobre outras especies de artes.
Ocorre também que o crítico pode estar no poeta ou no ficcionista e isso também não pode ser desmerecido.
Enfim, são formas diferentes de se discutir a atividade artística.
Na sua crônica sobre a condição do goleiro, o que se observa é sua vivência, ainda que passada, do que seja um goleiro, o que ele sente de alegrias, vive e sofre nessa posição do time..
Aqui só ele pode tomar a palavra e testemunhar o que lhe vai na alma de goleiro, nas vicissitudes de sua arte - poética, por que não ? - de frear os gols do adversário. Só pode ser mesmo uma espécie de artista dos movimentos, dos saltos, da quedas do poder de concentrar-se e do estado de vigilância constante de saber com argúcia como se posicionar, sobretudo nos momentos de maior dramaticidade, de maior tensão, que é o instante em que a bola é impedida de entrar e fazer seu estrago.
Sua crônica aborda, em lentes poderosas, todos esses lances que podem ser poéticos ou se transformarem em fracassos, mesmo no ridículo, como na situação de deixar passar um "frango," que, a meu ver, é o momento mais histriônico de um goleiro e ao mesmo temo a sua tragicomédia.
Toda essa vivência deixa anotada na sua crônica, à qual não falta, no estilo de linguagem traçado, uma elegância do lastro da tradição com a modernidade
Com seu texto aprendi muita coisa útil que o meu próprio "horizonte de expectativa" de ignorante em coisas de futebol não podia sozinho alcançar.
Cunha e Silva filho
Caro Cunha,
ResponderExcluirVocê é mesmo um mestre na arte de bem observar e comentar.
Seu texto apreendeu com maestria o que eu tentei "passar", inclusive sobre o estilo de um goleiro, ao contrastar o Beroso e o Coló.
De qualquer sorte, falei de uma época já distante, em que havia outros valores e outros esquemas táticos, e não apenas a vontade quase mercenária de vencer; em que se procurava jogar com arte e beleza, muitas vezes ao sabor do improviso.