DILETANTISMO
Jacob Fortes
Principiando,
quero pôr em relevo a diferença entre diletantismo e obrigação. A obrigação refere-se
a esforço vinculado a um dever. O diletantismo diz respeito a esforço
desvinculado, em prol de uma realização pessoal. A obrigação, mais das vezes,
sintetiza um meio de vida. O diletantismo uma filosofia que coloca como
condição prévia à ação: o prazer, o passatempo, a distração, o hobby, o lúdico.
O diletante é capaz de se determinar a agir voluntariosamente em direção a um
aprendizado, dominar qualquer técnica, superar obstáculos desde que os esforços
exigidos coincidam com o que lhe é aprazível; tragam-lhe mais deleite do que desgosto.
O diletante por vezes acalenta sonhos tão estratosféricos que jamais serão
atingidos; estão ocultos em colchões de nuvens. Mas é necessário! Os sonhos consolam,
(também cavam abismos).
Ao
caminho do diletante, não raro, entraves se antepõem, circunstâncias que lhe
estorvam o propósito. Ante a essas ocorrências é preciso cautela para
esquadrinhar o recomeço: melhores ocasiões e oportunidades. Eu mesmo sou
exemplo consumado disso. Ao meu primeiro deletrear na alfabetização senti o despertar,
como a uma tendência irreprimível, do gosto pela leitura, mas os reveses que me
couberam em sorte impediram-me de regar copiosamente essa inclinação; aplaquei-a,
não pude fazê-la progredir plenamente. Gostaria de tê-la posto à frente como a
um abre-alas, estadear-lhe o valor, mas era preciso porejar em busca de provisões de bocas,
consanguíneas, muitas. É o fado inexorável de quem, despojado de
haveres e decalcado de patentes feitas de taipa, sintetiza a privação das massas
anônimas e insignificantes. Mas perseverei; não deixei que se estagnassem as
necessidades da procura. Feito um passarinho devotado ao fruto preferido, de
quando em quando eu engendrava um modo, furtivo que fosse, para degustar
colheradas de leitura e, assim, manter o hábito de viajar: deslizando
remansosamente nas canoas feitas de folhas de papel, a quem devo muitas
consolações e pepitas.
Somente
mais tarde, depois de remodelações em todos os níveis, (eu já era aceito em
locais de tom) inclusive no bolso, pude dar confiadas asas ao meu diletantismo;
que se acentuou com a chegada da aposentadoria; ô adjutório! Esse vezo, a
leitura, acabou se tornando o meu avalista nas escritas, que também as faço por
divertimento. Aliás, quem se mete a sobreviver da escrita onde se assiste ao fenecimento da
leitura insta-se ao aviltado propósito de esmolar.
O
desconsolo de ter sido obrigado a embargar o sorriso de um diletantismo que
despontou na adolescência, e que fora empurrado, a bem dizer, para o subsolo,
impõe-me uma preocupação que pode ser tomada como um lembrete: que os
diletantes mancebos — imersos em contendas com os sonhos que lhe aconchegam o
peito, mas sem dinheiro para
levar a termo as suas vontades lúdicas, — tomem o propósito de estudar demoradamente
para desígnios profissionalizantes que lhes assegure futuros auspiciosos;
remorem o lúdico para o turno vespertino, transforme-o em intento subalterno. É
que certos hobby requerem apostes financeiros e estes defluem do alicerce com
que se erige uma qualificação. Antes perder a atualidade dos prazeres que não
tê-los nunca.
Muitíssimo
se poderia dizer acerca das diferenças que marcam a obrigação e o diletantismo,
mas, em síntese, fico com estas particularidades: a obrigação é sisuda; o
diletantismo ridente. A obrigação é reservada; o diletantismo espontâneo; a
obrigação entedia, o diletantismo recreia; o braço que se há fraco na rotina da
obrigação se faz vigoroso no ânimo do diletante.
Mas se o
diletantismo é tão prodigioso, cheio de benignidade, por que não aplicar os
seus efeitos sobre a obrigação, isto é, o esforço vinculado a um meio de vida?
Simples. Basta que o diletante faça da sua obrigação o seu prazer. Mas como
fica a aptidão; a disposição natural, o gene, que orienta as pessoas no sentido
de uma atividade: pendor, propensão, tendência? No reservatório secreto, o
íntimo de cada um, alojam-se intentos lúdicos, alguns inconfessáveis, quem sabe
escrever o poema da miséria moral ou, em vindita a Jesus Cristo, estripar um
traidor, feito de capim, no Sábado de Aleluia.
Que neste ano de 2015, e seguintes, não nos
falte saúde necessária ao diletantismo, este ser alado; inelutável. O diletantismo é mãe invisível que fecha
os olhos para que a gratuidade da infância não perca a validade; se estenda até
a desmotorização da existência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário