Belchior: Por causa de vocês
José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com
A galera leva jeito. Meio a tanta
mediocridade musical e poética, uma legião de jovens se encanta com lirismo de
primeira. A produção artística rasteja entre o inútil e a vulgaridade amorosa.
Estudantes recorrem aos antigos arquivos musicais, árduos de encontrar uma
casta de bons vinhos da música, diante da calamidade de criação atual.
Frequentemente, recebo e-mails relatando prazerosas
experiências com músicas de qualidade. Solicitam-me opinião. Ou quando me
encontram na praça de alimentação do Teresina Shopping, solicitam-me dicas.
Aconteceu na última sexta, noite, enquanto bebericava taça de
vinho. Jovem universitária sentou-se à minha mesa e me pediu para ler e
comentar o poema-música de Belchior, SANGUE LATINO, produção de 1976, em pleno
regime militar. A estudante atendia a uma tarefa de seu professor de
comunicação, que exigia análise do sentimento de protesto contido nas
entrelinhas da música de enorme sucesso na época.
Primeiramente, contei minha convivência com Belchior, colega
de seminário dos capuchinhos, em Messejana, perto de Fortaleza. Passara no
vestibular para medicina aos 16 anos, mas teve que aguardar maioridade para se
matricular. A convite de Frei Higino, internou-se, nesse período de espera, no
seminário. Rara inteligência, Belchior destacava-se no grupo pelo talento
literário. Convidou-me para passar um dia com a sua família. Abandonou o curso
de medicina e se entregou à carreira musical. Hoje, travessa cruel momento,
peregrinando fora do Brasil, procurado pela Justiça, acusado de dívidas
trabalhistas, diárias de hotéis, pensão de ex-esposa e quatro filhos,
fisicamente bastante envelhecido. Banco famoso convidou-o para retornar à
brilhante carreira musical, prometendo-lhe pagar as dívidas, em troca de
publicidade. Recusou peremptoriamente. Na verdade, o espírito franciscano
continua imerso no despojado artista, conhecido pela generosidade com os
necessitados.
Depois de conhecer um pouco da trajetória de Belchior, a
estudante interessou-se pelo texto: Eu sou apenas um rapaz/Latino-Americano/Sem dinheiro no
banco/Sem parentes importantes/E vindo do interior/Mas trago de cabeça/Uma
canção do rádio/Em que um antigo/Compositor baiano/Me dizia/Tudo é divino/Tudo
é maravilhoso/... E não tenho um amigo sequer/Que ainda acredite nisso,
não/Tudo muda!/E com toda razão/Mas sei/Que tudo é proibido/Aliás, eu queria
dizer/Que tudo é permitido/... Tenho um compromisso
E não posso faltar/ Por causa de vocês/ Mas se depois de
cantar/Você ainda quiser me atirar/Mate-me logo! ... O texto foi reduzido, por economia de espaço.
Ressalta o sentimento de protesto durante a ditadura, que proibida qualquer
manifestação crítica ao regime militar. Observe o temor velado ao expressar o
termo PROIBIDO, já motivo de afronta ao Poder. A criação artística driblava a
censura com recursos estilísticos. Neste caso, o tratamento VOCÊ(S) aponta para
os militares, bem como uma crítica velada a Caetano Veloso e demais baianos,
românticos melosos, segundo o texto, alienados à causa social.
Em tempo de tanta aridez musical e de consciência crítica,
professores e educadores precisam estimular os estudantes a extraírem o néctar
da produção literária. Urgentemente.
Belíssimo texto. Muito em consonância com os tempos que vivemos. Se a música de qualidade é eterna, precisamos resgatá-la. Os mais jovens precisam urgentemente disso. E acho que isso deve começar pela própria casa, em meio a família. Mas também na escola, na TV, nas rádios, que hoje vivem um período de renascimento. Grato, professor!
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