O milagre, não o suave de Eça de Queiroz
“Obed é rico e tem servos.”
Cunha e Silva Filho
Chegando ao meu
apartamento, me dei conta de que
não se encontrava na minha
carteira de dinheiro a minha
identidade. Eu havia ido à
farmácia com a minha mulher comprar um remédio.Senti um calafrio como se tivesse
visto um fantasma.
Um fantasma diferente, um fantasma que
nos provoca medo e apreensões.
Era a quase certeza de que, perdendo um
documento tão vital como a identidade, equivaleria a vislumbrar um série de problemas
que iria enfrentar: não
poder fazer uma retirada de maio
valor no banco, não poder abrir um
crediário, não poder
irar um passaporte, não
poder fazer compras com cartão de
crédito que exija a comprovação da
identidade do comprador, enfim, a perspectiva
de não poder fazer isso tudo me deixava arrasado, apavorado,
perdido como uma criança
na multidão. Como iria provar
quem eu era diante de um situação que me obrigasse a exibir a minha carteira de identidade.
Neste país
chamado Brasil, o domínio da burocracia tem força
de lei. Se você vai a uma repartição
pública e lhe faltar um item de
uma documentação exigida, você
fica travado, de mãos atadas. Um
vez, um ministro brasileiro desejou
desburocratizar a máquina
administrativa do país, mas tudo foi
debalde. Alguma coisa ele fez, mas o grosso da mania
da exigência do papelório teima
em ser uma lei consuetudinária. Se não
se tem tudo o que se nos pede em matéria de
documentos, nada se consegue.
O atendente da burocracia fica até
irado quando alguém lhe
entrega tudo que lhe foi pedido a fim de conseguir alguma coisa de natureza
burocrática. Somos uma sociedade cartorial,
tabelionária, documentária.Até
para morrer, se o de cujus não estiver
direitinho com as exigências
da burocracia para esta difícil e
traumática passagem da vida para o andar
de cima, ele ficará em estado de putrefação ou senão volta
para a geladeira dos necrotério.
A burocracia ainda tem
fortes elos com os tempos
do Brasil colonial, das capitanias hereditárias, dos tempos dos meirinhos do Rio de Janeiro joanino. O que neste país vale é o documento. A palavra empenhada de nada mais vale. Tudo deve
estar escrito e chancelado no cartório. Meu reino pela
burocracia! - a única força-motriz que leva este país
para a frente de não sei de quê...
Diante de
toda esse calvário, me encontrava completamente desolado e sem chão. Onde foi cair a bendita identidade? Foi na farmácia? Perdeu-se em
casa em alguma pilha de papéis? Minha mulher
me sugeriu a possibilidade de voltar à farmácia a fim
de ver se eu deixara caída no chão
a minha identidade. Então, a minha pobre
mulher decidiu ir novamente à farmácia. Ao chegar lá, perguntou
a vendedor com quem fizera a
compra do remédio se ele por acaso
não vira uma identidade no chão,
ou se um cliente honesto a pegara e entregara aos cuidados da
farmácia. Qual nada! Ninguém vira minha
identidade. Voltou para casa desolada.
Enquanto minha
querida cara-metade estava na rua para ver se encontrava a minha
carteira, em casa eu revirava tudo: gavetas, fichários,
armários, pastas etc. Tudo fiz
para não ter nenhuma dúvida de que a identidade não estava comigo.
Olhei, examinei todas as divisões de minha
velha carteira de dinheiro e nada de
encontrar a identidade. Meu medo era que
algum malandro a encontrasse e fizesse
algum mal a mim, ou seja, retirar a minha foto e, em lugar dela, colocar a foto de alguém com alguns
traços que indicassem pertencer
à minha faixa etária ou, por outras artimanhas, falsificar meus
dados pessoais, inclusive
meu CPF, e transferi-los
para terceiros. Meu pavor era ser vítima de um
estelionatário que até poderia usar meus
dados para fins de lavagem de dinheiro,
aposentadorias falsas ou outras
maldades de que são tão férteis
esses escroques em plagas basílicas...
Foi, então, que
pensei em São Longuinho, o santo dos que perdem
objetos e outras coisas. “Valei-me, meu São
Longuinho!Valei-me, meu São
Longuinho!" Esse santo é tiro e
queda. Entretanto, não desisti de procurar em outros lugares do apartamento:
quartos, cozinha, banheiro,
debaixo das cama, das mesas, onde
me fosse possível lobrigar alguma ponto do apartamento em que pudesse se ocultar a minha identidade.
Exauridas todas as minhas energias, tomamos minha mulher,
meu filho mais novo e eu uma decisão
para que os meus receios se tornassem menos penosos: ir à delegacia do
bairro e fazer um BO (boletim de
ocorrência). Nós três saímos com passos
largos em direção a uma avenida
perto do meu prédio. Atravessamos e ficamos esperando acenar para o
primeiro táxi disponível que surgisse
.Passaram vários sem
ligarem para o nosso aceno até
que um parou. Indicamos ao motorista o
nosso destino: a delegacia.
Chegando lá, subindo
uma rampa, entramos no prédio e nos dirigimos ao balcão de atendimento, atrás
do qual havia uma funcionária de semblante amável. Lhe contei todas as circunstâncias do dramático incidente e lhe disse que desejava fazer um BO. A funcionária era
amável, simpática. No momento em que me pediu dados pessoais consignados na identidade,
de certa forma involuntária,
retirei minha carteira de dinheiro do bolso direito da calça e foi aí que percebi um objeto plástico que
surgiu de uma das partes da carteira. Era a minha identidade.
“Milagre! Milagre!- exclamei numa alegria
incontida. A funcionária sorriu e entendeu tudo.
Descemos a
rampa. Na calçada, ainda cresceu a minha alegria. Queria compartilhá-la
com todos. Passou um moço que,
pelos seus modos de vestir, via-se
que era um investigador de
polícia. Contei para ele o que ocorrera comigo. Ele mostrou-se receptivo.Nos
despedimos e caminhamos em direção a outra rua que dava para uma
praça.
No caminho, com voz embargada de tanta emoção, falei com
a minha mulher: “É um milagre! O milagre existe.” Sem perceber, estava falando e chorando baixinho. Nesse instante, me lembrei
do meu apelo a São Longuinho. Ele me dera ouvidos, me atendera. Era bem tarde da noite.
Numa calçada, acenamos para outro táxi. Nele entramos e, com o coração
esfuziante de contentamento, resumi
o acontecido para o
motorista, um moço de fisionomia bondosa.
Não fora um
grande milagre como o daquela criança
doentinha, pobre, que procurava pelo Salvador, o Rabi, o Messias. No momento em que não esperava, Jesus anunciou-se a ela: “_Aqui estou.” O meu pobre grande
milagre igualmente se realizou.
São Longuinho, que tantas vezes invoquei com sucesso, naquela delegacia se fez presente e o milagre, mais uma vez, me convenceu
pela fé. Ó incrédulos, não
duvideis dos milagres!
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