A retomada do litoral pelo Piauí
José Pedro de Araújo
A questão envolvendo a negociação com
o Ceará por uma fração da faixa litorânea se constitui, na verdade, em uma
política de retomada de território, uma vez que no passado essa mesma gleba
litorânea já pertencera ao Piauí. Pereira da Costa relembra que na troca de
território, o Piauí “readquiriu o seu usurpado território de Amarração. De
longe vinham as reclamações do Piauí contra essa espoliação, e de cujo direito
possuía os melhores e mais eloqüentes documentos”.(PEREIRA DA COSTA, In
Cronologia histórica do Estado do Piauí).
Por sua
vez, em seu indispensável livro intitulado Memória Cronológica Histórica e
Corográfica da Província do Piauí, J. M. Pereira de Alencastre, faz a citação
de dois documentos acerca das ações de grilagem praticadas pelo Ceará sobre o
território piauiense. O primeiro documento é um Ofício do Juiz ordinário da
vila de Marvão (Castelo do Piauí), Manoel Gonçalves de Araújo, datado de 20 de
agosto de 1765, ao primeiro governador
da capitania, João Pereira Caldas, dando conta dos avanços praticados pelas
autoridades cearenses ao território do Piauí. No documento citado, o juiz
Ordinário relata que “Pároco da matriz de S. Gonçalo da Serra dos Cocos, desde
o ano de 1760 tem tomado, desta Capitania para aquela(Ceará), mais de vinte
povoações, não se dando por contente em tomarem aquelas que mais perto lhes
ficam”. Alencastre acrescenta que “o
mesmo sucedeu na Parnaíba com o povoado de Amarração, que pertencendo sempre ao
Piauí, hoje é da freguesia da Granja. O vigário desta freguesia chegou a desobrigar
a uma légua da cidade da Parnaíba”.
Incumbido
pelo Governador Pereira Caldas de levantar informações sobre a denúncia
proferida pelo citado juiz ordinário, o Ouvidor da Capitania, Luiz José Duarte
Freire, não só confirmou a denúncia como afirmou peremptoriamente que “Na
tromba da Serra dos Cocos nasce o rio Timonha, que deve formar o limite da
Província com o Ceará, visto como as onze ou mais léguas da costa, que alguns
autores dão ao Piauí, não é sem fundamento. Da Barra do Timonha à Barra do
Igaraçu são onze léguas, segundo o roteiro do cosmógrafo Manoel Pimentel”. O
rio Timonha é hoje o marco limitante dos dois estados na região litorânea.
O professor e historiador João Gabriel Batista reafirma a
informação ao dizer que a retirada da faixa litorânea se dera quando um padre
da paróquia de Granja, do Ceará, começou a ministrar assistência religiosa a
uma comunidade de pescadores piauienses que se situava em Amarração, ainda nos
primórdios da ocupação do território. Este fato levou o governo da Província do
Ceará a proceder à anexação do estreito litoral piauiense ao seu território,
suprimindo o único acesso ao mar que o Piauí possuía.
Começaria, desde então, a luta dos piauienses para retomar o
seu pequeno, mas belíssimo litoral, consumado depois de irredutível insistência
quando da publicação do Decreto Imperial de nº 3.012, de 22 de outubro de 1880.
Este diploma legal veio alterar a linha divisória entre as Províncias do Ceará
e do Piauí, devolvendo-nos o que, de direito, já nos pertencia. Na troca
realizada entre os dois estados, o Piauí cedeu extensa faixa de terra
compreendendo a comarca de Príncipe Imperial (Independência e Crateús), área
também de há muito reivindicada pelos cearenses, e readquiriu o seu direito ao
mar.
Na mesma região litorânea, foi ainda o Piauí prejudicado
sobremaneira, ao perder para o Maranhão uma faixa interessante do seu litoral,
exatamente a nesga de terra que contava dos limites atuais até tocar à baia de
Tutóia, fato verificável ao se compulsarem os primeiros mapas cartográficos
existentes. Nesta disputa, o Piauí não logrou resultado satisfatório,
constituindo-se em um assunto que já caiu até mesmo no esquecimento. O prejuízo
aí foi monumental também, pois a região litorânea suprimida possui uma das melhores
condições para a instalação de um porto marítimo com ótima capacidade para
receber navios de grande calado. Aliás, durante muitos anos as exportações de
produtos piauienses se deram pelo porto instalado naquela barra, atestando a
sua ótima localização.
Hoje, ainda temos alguns problemas de limites com o Ceará, em
dois pontos da Serra da Ibiapaba; com a Bahia, em uma estreita faixa de terra
no extremo sul; e, mais recentemente, com o Estado do Tocantins que, mais que
de repente, passou a contestar a posse de extensa gleba de terra
tradicionalmente reconhecida como sendo território piauiense.
Deste modo, contamos hoje com um território abrangendo uma
área de 250.934 km2, correspondendo a 16,20% da região Nordeste e 2,95% da área
territorial do Brasil. Sua área total, assim como a conhecemos hoje, procede
assim desde o período Imperial, mas, poderá ser alterada no seu formato e
tamanho mais uma vez, se resolvidos os problemas de limites que hoje temos com
os estados citados no parágrafo anterior. Problemas estes, a bem da verdade,
que vêm se arrastando há vários séculos e que, vez por outra, algum político à
procura de maior visibilidade, encarrega-se dele e faz do seu caso palanque
para aparições na mídia, para depois deixar tudo como estava antes.
Pela importância que a retomada da sua faixa litorânea tem
para o Piauí, transcrevemos abaixo a íntegra do Decreto assinado pelo Imperador
D. Pedro II, fazendo desaparecer, a nosso ver, parcialmente, este grande
conflito de interesses e a grande injustiça perpetrada contra o povo piauiense
e que demorou uma eternidade para ser resolvido:
[...] DECRETO Nº 3012 – DE 22 DE OUTUBRO DE 1880.
Altera a linha divisória das Províncias do Ceará e do Piauhy.
Hey por bem Sanccionar e Mandar que se execute a Resolução
seguinte da Assembléia Geral:
Art. 1º - É annexado à Província do Ceará o território da
Comarca do Príncipe Imperial, da Província do Piauhy, servindo de linha
divisória das duas províncias a Serra Grande ou da Ibiapaba, sem outra
interrupção além da do rio Puty, no ponto do Boqueirão, e pertencendo à
Província do Piauhy todas as vertentes occidentaes da mesma serra, nesta parte,
e à do Ceará as orientais.
Art. 2º - Fica pertencendo à Província do Piauhy a freguezia
da Amarração com os limites que estabeleceu a Lei Provincial do Ceará nº 1360,
de 5 de Novembro de 1870, a saber: da barra do rio Timonia, rio de São João da
Praia Acima; até a barra do riacho, que segue para Santa Roza, e d’ahi em rumo
direto à serra de Santa Rita, até o pico da serra Cocal, termo do Piauhy.
Art. 3º - A linha divisória ecclesiastica será idêntica à
civil que fica estabelecida, sendo o Governo autorizado para solicitar da Santa
Sé as necessárias bullas.
O Barão Homem de Mello, do Meu Conselho, Ministro e
Secretário de Estado dos Negócios do Império, assim o tenha entendido e faça
executar. Palácio do Rio de Janeiro, em 22 de Outubro de 1880, 59º da
Independência e do Império.
Com a rubrica de Sua Magestade, o Imperador.
Barão Homem de Mello.
O ato acima transcrito não deixa dúvidas sobre os limites que
deveriam respeitar as duas Províncias vizinhas, afastando possíveis pontos de
discórdias que por ventura pudessem subsistir. Não foi o que ocorreu.
Interpretando ao seu talante, o Ceará continuou dominando toda a extensão da
Serra da Ibiapaba, descumprindo o que estabelece o Decreto Imperial: a linha
divisória deveria ser o divisor de águas da dita Serra. Ou seja, as vertentes
ocidentais daquela região montanhosa deveriam pertencer ao Piauí. Pela
determinação contida neste diploma legal, o limite entre os dois estados
deveria ser o cume da serra da Ibiapaba, por onde as águas escorrem para um
lado e para o outro, conforme ficou determinado. O que se observa quando em viagem
pela rodovia federal que liga Teresina à capital do Ceará, é que a placa com a
identificação da linha divisória está fincada quase no sopé da grande serra, no
começo da sua subida.
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