HISTÓRIAS
DE ÉVORA
Este romance será publicado neste sítio
internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem
sendo escritos.
Capítulo XI
Música e memória
Elmar Carvalho
Julgo de bom alvitre, até para
quebrar eventual monotonia desta narrativa, em que trato, sobretudo, dos anos
da puberdade e da juventude do meu protagonista, intercalar alguns trechos de
suas memórias e de suas lembranças de Évora, bem como de alguns eborenses que
ficaram na história oral dessa cidade.
Portanto, a seguir e em outros
capítulos deste livro, interpolarei textos de Marcos Azevedo, escritos, alguns,
em sua madureza, e, outros, quando ele já descambava para a terceira idade. Os
textos, desentranhados de Histórias de Évora, Mitologia de Évora e Memórias,
serão transcritos em itálico e entre aspas, para que não paire nenhuma dúvida
sobre a autoria, porém, sem indicação expressa de título e autor. Passo-lhe, pois, a palavra:
“Marcel, o narrador dos romances de Proust, disse que ao degustar uma madeleine,
mergulhada numa xícara de chá, teve remotas lembranças despertadas, e de
maneira tão viva, que ele veio a recordar pormenores já completamente
esquecidos.
Afirmam outros que suas memórias são aguçadas por algum tipo de perfume
ou cheiro, que sentiram na época em que os fatos ocorreram. Na parte que me diz
respeito, os maiores catalisadores de minhas lembranças são os sons, sobretudo
os provenientes da música, e a visão de velhos prédios e logradouros.
Por muitos anos, quando quis recordar certos episódios de minha vida, no
intuito de aproveitá-los em algum texto literário, mormente em poemas
evocativos, contemplei vetustos sobrados, velhas casas solarengas; percorri
algumas praças e ruas que não haviam sido desfiguradas, que ainda mantinham os
traços que vi em minha infância e adolescência. E pude relembrar certos
momentos de minha vida, que já se esfumaçavam em minha memória.
Dessa forma consegui capturar um pouco do clima emocional e psicológico
da época. Contudo, como muitos afirmam, a memória é seletiva, e certos fatos
são completamente esquecidos; de alguns só voltamos a relembrar através da
memória dos outros, amigos ou parentes. Acredito mesmo que alguns fatos, que
incorporamos como sendo frutos exclusivos de nossa memória, são na verdade
lembranças de outras pessoas, que acabamos acolhendo como sendo parte original
de nossa reminiscência própria.
Por outra parte, como a tessitura das lembranças é muito frágil, diáfana
e se esgarça com facilidade, suponho que algumas de nossas memórias, com o
passar dos anos, com o surgimento de muitos e novos fatos ao longo de nossa
existência, terminam por se modificar, por se transformar, seja por obra de
nossa fantasia, seja por se entrelaçar com outras recordações.
Acredito que deficiências nos neurônios e em suas complexas conexões e
mecanismos eletroquímicos podem causar essas modificações, mitigando ou
exagerando alguns acontecimentos, associando-os a outros. Alguns episódios poderiam
ser apagados completamente de nosso cérebro, enquanto outros, segundo imagino,
poderiam ser criados, através de falsas lembranças.
Diferentemente de Marcel, o famoso narrador proustiano, a minha madeleine
não foi o bolinho embebido no chá; foram os sons e as músicas que mais me
marcaram em minha meninice e juventude. Por exemplo, o canto de uma rolinha
fogo-apagou me provoca funda e saudosa melancolia, ao passo que o trinado de um
bem-te-vi sempre me alegra. Ambos me despertam lembranças antagônicas, que não
irei, agora, expor.
Já casado, com filhos e entrando na idade madura, passei a ouvir essas
músicas com insistência e de forma, às vezes, repetitiva e quase obsessiva.
Primeiro através de velhos discos de vinil, que consegui adquirir, fossem eles
remasterizados ou fossem as melodias novas versões.
As capas e as canções desses antigos LP’s, muitos dos quais adquiri em
lojas de produtos usados, quando já descambava para a chamada terceira idade,
me permitiram reconstituir minhas recordações, me possibilitaram interligar as
memórias fragmentadas de minha adolescência e juventude. Ruminava, nostálgico e
comovido, as minhas mais caras e ardentes lembranças. Quase sentia as mesmas
emoções da época em que os fatos aconteceram. Para coroar tudo isso, comprei
uma eletrola em estilo retrô e vários álbuns sobre a Jovem Guarda, nos quais
eram estampadas as capas mais famosas dos ídolos de então.
Depois, com o progresso tecnológico, encontrei muitas dessas velhas
canções reproduzidas em CDs, originais ou que eu mandava gravar, com as músicas
que eu indicava. Mais adiante, fiz passar essas dezenas e dezenas de CDs com
minhas músicas favoritas para o sistema MP3, que me facilitava ouvi-las,
especialmente no carro, tanto em viagem como nos deslocamentos na cidade.
Também as ouvia em libações e degustações dominicais.
Por último, aprendi a passar as músicas que encontro na internet para um
pendrive. Com as minhas lembranças, consultas a amigos contemporâneos,
pesquisas nos sites de buscas, muitas vezes utilizando pequeno trecho das
letras, fiz uma rigorosa seleção dessas melodias que me encantaram, como já
frisei, na minha meninice, adolescência e juventude. Ao ouvi-las, em diferentes
ocasiões, elas potencializaram a minha memória, tornando nítidos e vivos certos
episódios e momentos, que pensava haver esquecido.
E pude recordar, com o mesmo encantamento, tristeza, saudade e emoção, os
acontecimentos que
marcaram minha vida, bem como pessoas que conheci ou de quem ouvi falar. Tenho
tentado reviver e restaurar essas pessoas e esses fatos através de minhas memórias
e outros escritos. É a precária ressurreição de um tempo que insiste em
permanecer."
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