HISTÓRIAS
DE ÉVORA
Este romance será publicado neste sítio
internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem
sendo escritos.
Capítulo XXVI
Amor sem esperança
Elmar Carvalho
Marcos aprendera a dizer versos de
improviso. Adquirira essa habilidade, vendo, vez ou outra, os violeiros em seus
repentes na feira livre, no lado externo do mercado público. Comprava, de vez
em quando, alguns folhetos de literatura de cordel. Com o seu vocabulário bem
acima da média, sobretudo levando-se em conta que ele ainda era adolescente,
tinha certa facilidade para rimar e não se lhe podia negar ter algum talento
para o improviso, cujo dom ele não levava muito a sério, e por isso quase não o
exercitava.
Chegou mesmo, numa cantoria, na casa
de uns conhecidos, no subúrbio, a participar de um “desafio”, com certo
desembaraço, embora tenha reconhecido, no próprio repente, que o cantador adversário
lhe era superior, o que nunca acontecia nos blefes e nos hiperbólicos
autoelogios dos cantadores profissionais, que por vezes tinham rasgos
“condoreiros”, como era o caso de Rogaciano Leite. Não mais teve coragem de
enfrentar esse tipo de embate, e passou a nutrir profunda admiração e respeito
por esses poetas populares.
Por simples brincadeira, Fabrício,
Mário Cunha e outros amigos lhe propunham motes ou temas, para que improvisasse
alguns versos rimados a título de glosa. Certa vez, quando passavam perto do
Armazém Confiança, do senhor Abdias, Fabrício argumentou, para provocá-lo:
– Marcos, você já notou que nada muda
nesta cidade, que é sempre a mesma rotina. Sempre o mesmo sempre velho e
tedioso. Sempre o seu Abdias fica com essa amplificadora velha, fazendo as
mesmas propagandas mequetrefes, dizendo sempre as mesmas coisas com a sua voz
fanhosa...
Não perdeu Marcos a oportunidade de
desovar mais um de seus repentes:
– Mudam as noites, e mudam os dias,
só não muda a enfadonha voz do senhor Abdias.
Como Marcos tivesse falado alto, no
momento em que a amplificadora silenciara, o comerciante ouviu o epigrama, e
gritou ao microfone, enfurecido, de modo que todos ouvissem:
– Marcos, você agora virou um
moleque, a fazer gaiatices e deboches? Vou contar a seu pai, que é um homem de
bem, para ver se ele lhe ensina a respeitar os mais velhos. Você, um rapaz
inteligente e estudioso, agora fica a fazer esses versos de pés quebrados e sem
pés nem cabeça, a zombar dos outros!...
Os dois amigos trataram de se afastar
logo do local, em passos apressados. Marcos passou a ser mais cuidadoso com os
seus versos, para não ferir a suscetibilidade de ninguém. Seus pais sempre o
advertiam para ter respeito para com os mais velhos, e não tripudiar sobre os
defeitos físicos ou morais de quem quer que fosse. Afinal, todos somos humanos,
todos temos os nossos defeitos e fraquezas, todos temos o nosso calcanhar de
Aquiles e os nossos pés de barro.
Marcos gostava de ficar à tarde em um
posto de combustível, perto da Praça da Rodoviária, para ver as normalistas
passarem, na ida para a Escola Normal, ou quando retornavam. Eram jovens,
cheias de graça, cheias de vida e de esperança, e tudo lhes sorria. A farda
tinha saia azul e blusa branca. Isso lhe fazia lembrar a música de Nelson
Gonçalves, verdadeiro poema da Velha Guarda, muito cantada nas serestas e nas
libações: “Vestida de azul e branco / Trazendo um sorriso franco / No rostinho
encantador...”
Algumas eram belas, de rosto e de
corpo. E ele as olhava com encantamento e saudável cobiça. Algumas lhe
retribuíam o olhar embevecido. Quase todas eram um pouco mais velhas que ele, e
já tinham noivos ou namorados fixos. Uma delas, mais atrevida, encarava o seu
olhar, e sorria. Tempos depois, através de Fabrício, Marcos fez amizade com um
irmão dela. De vez em quando tomavam uns porres na casa desse rapaz.
A normalista incentivava Marcos a dizer
os seus poemas. Elogiava-os com muito entusiasmo, sorrindo e batendo palmas. Disse-lhe,
quando estavam a sós, que ele se parecia com famoso galã de telenovela, por
quem as moças da época suspiravam. Era três anos mais velha que Marcos, o que,
no albor da mocidade e na época preconceituosa de então, representava uma
significativa diferença. Além do mais, era noiva de um acadêmico de Direito, de
família abastada, que estudava na capital, com quem mantinha um namoro morno,
insípido, formal, à vista de todos, fosse na sala da casa paterna ou na calçada
que dava para a rua movimentada. O futuro bacharel era respeitoso; aliás,
excessivamente respeitoso para o gosto da noiva, ardente em sua virgindade estoica.
Era um amor sem esperança, uma doce
ilusão, fadada a se desfazer com o seu casamento. Após alguns tragos,
quando Marcos já estava mais desinibido, a moça lhe pedia para recitar alguns
versos de sua autoria. Ela o aplaudia com muita intensidade e com palavras de
vívido entusiasmo, como só ela sabia fazer. Após algum tempo, o rapaz fingia
ter sede, e pedia para essa boa e linda samaritana lhe dar o que beber.
Acompanhava-a até a cozinha, onde
ficava a geladeira. Mas a sede do jovem não era de beber; estava sedento da
taça dos lindos lábios da moça. A sós, lhe sussurrava Marcos ao ouvido os
versos de Vespasiano Ramos, que decorara ao ler surrada antologia de sonetos de
seu pai: “Sou perseguido pela sede insana / Do amor que anima e que nos faz
sofrer: / Tenho sede demais, Samaritana / Tenho sede demais: quero beber!”
Ambos se beijavam e se abraçavam com
sofreguidão, quase com loucura e desespero, como se os corpos abraçados e
abrasados quisessem se trans/fundir um no outro. Ela mergulhava os seus olhos
grandes, castanhos, apaixonados, prenhes de mistério e sortilégio, nos olhos
verdes de Marcos, onde boiava tímida esperança, mesmo ante o naufrágio, que era
certo.
Sabiam que o tempo seria muito curto,
e logo teriam que retornar à sala. Sabiam que era um amor sem esperança, em
face da idade de Marcos e do compromisso da moça. Era apenas uma doce ilusão, nada
mais. Um frágil, furtivo e efêmero encantamento, que sequer podia se mostrar à
luz do sol.
O Grande Marcão volta a atacar com os seus amores impossíveis e fortuitos.Em "Logo Agora", Emílio Santiago definiu bem o Marcão, ou os botes que aplica: "Passou a noite com o seu amor do lado...Ele foi embora...Tolo, pensou que beijar sua boca foi consolo, despertou o instinto da fêmea,que agora se deixa abater". Meu caro Poeta,o seu protagonista travaste-se de múltiplas personagens:bom menino, estudioso,bom amigo, muito mulherengo, etc. etc. etc. E como não sou crítico literário nem nada, só digo que isso nos deixa empolgados a ponto de cometer tolices como a que faço agora, ao descreve trechos da música do ES. E fico no aguardo das suas próximas "botadas". Está bem na fita, o poderoso Marcos!
ResponderExcluirCaro José Pedro Araújo,
ResponderExcluirEsse Marcão, por último, vem surpreendendo até a mim próprio, que sou o autor do romance.
Não tenho a menor ideia do que ele ainda vai aprontar até o final desse folhetim eletrônico, que espero não demore muito a terminar.
Abraço,
Elmar