quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Histórias de Évora - Capítulo XXIX


HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

Capítulo XXIX

Revelações

Elmar Carvalho

Quando eu tinha sessenta anos de idade e já morava na capital há muitos anos, ao passar um final de semana em Évora, revi o meu amigo Anselmo Miranda, que fora morar em Brasília há mais de três décadas. Na banca de revista do Dourado, situada na Praça Lucas Mendes Furtado, ou simplesmente praça central ou da matriz, soube que ele se encontrava na cidade e estava hospedado na casa de seu irmão Jonas, o secular casarão de seus pais, já falecidos.

Após conversarmos sobre amenidades, cultura e assuntos do cotidiano de nossas vidas, bem como sobre velhos temas eborenses, o Anselmo, sem pruridos de vergonha, receios de censura familiar ou freios inibitórios morais, narrou-me a história de sua avó materna, a matriarca de sua família, sustentáculo de sua mãe e de seus tios.

Como desejo fazer um resumo e também por não ter capacidade de reproduzir suas frases com fidelidade, prefiro contá-la com as minhas próprias palavras, da maneira mais simples possível, porque o que tem importância neste texto é a história em si, e não os atavios e figuras de estilo que pudesse lhe colocar.

Disse-me Anselmo que, quando garoto de seus doze anos, ao brincar no quintal com dois irmãos e alguns amigos, acometido na época por certo tipo de verminose, foi procurar no muro um torrão de barro, que lhe parecesse mais saboroso, para comer. O muro era de adobe, mal conservado, um tanto desaprumado, pelo menos em certos pontos, e apresentava muitas gretas e furos, em que eventualmente se escondiam carambolos e lagartixas.

Ao procurar a sua 'iguaria', acabou encontrando num dos buracos, enrolado num saco plástico, um papel esmaecido, que lhe pareceu ser uma carta, escrita à mão, com caneta tinteiro ou bico de pena. As letras estavam um pouco borradas, mas eram grandes, firmes, bem delineadas e escritas com tinta azul. Anselmo a guardou com cuidado e a levou até sua avó, a quem se dirigia a missiva.

Tudo fazia supor que quem a escrevera tivesse boa instrução, o que era uma raridade na data de sua assinatura: 24 de dezembro de 1936. Estava assinada por Pedro Tavares de Mendonça. Sua avó, com muita delicadeza, retirou a carta do invólucro plástico. Colocou-a sobre a mesa e a desdobrou com toda cautela, para não danificá-la.

Mandou que Anselmo se sentasse à mesa, perto dela. Contraiu as feições; seus olhos marejaram um pouco, mas era uma mulher forte, de fibra e logo se recompôs. Afinal, sozinha, sem a ajuda do marido, cujo paradeiro nunca se soube ao certo, criara os nove filhos, lavando, passando e costurando para algumas famílias abastadas de Évora. O jovem imaginou que lhe seria revelado constrangedor segredo familiar.
– Meu neto, esta carta trouxe de volta uma história antiga de nossa família, que eu pensava já estar enterrada há muitos anos. Mas o destino e a sua curiosidade de garoto desenterraram esse segredo familiar. Vou ler a carta para você.

Leu-a com razoável desembaraço e sem se deixar trair pelas fortes emoções que certamente lhe transtornavam o espírito. Anselmo teve a grande surpresa de descobrir que a sua avó não era analfabeta, como ele pensara desde que se entendera por gente. Ela lhe revelou que desde o momento chocante em que leu essa carta, pela primeira e única vez, tomara a decisão de nunca mais ler nem escrever coisa alguma. Por isso todos pensavam fosse ela iletrada, quando na realidade aprendera a ler e a escrever com considerável desenvoltura. Ao terminar a leitura, fez o seguinte comentário (a que se seguiu a história de sua vida, que sem dúvida daria um belo romance):
– Esta carta foi o presente de natal que seu avô me deu no ano de 1936. Abandonou-me e fugiu com uma mulher nova para lugar incerto e não sabido, como dizem os advogados como ele. Pelo menos deixou a casa e os móveis. Não deixou nenhum níquel para o sustento de nossos nove filhos, que criei com muito esforço e trabalho pesado. Mas Deus nunca me faltou e nem há de faltar.

A carta era iniciada por um longo e lacrimejante pedido de perdão, a que se seguia uma injustificável justificativa, uma justificativa que na realidade nada justificava. O último parágrafo era um patético e exagerado adeus, algo semelhante a um trecho de dramalhão, em que dizia não ter ‘culpa de haver se apaixonado perdidamente’ por sua nova amada, que ‘ninguém mandava em seu próprio coração’. Encerrando, dizia que fora fraco, covarde mesmo, mas não tivera coragem de lhe contar pessoalmente essa sua incontrolável e irresistível paixão.

Dona Rosa Soares de Mendonça, cujo nome de casada sempre foi mantido, desfiou a sua história como se quisesse mesmo desabafar, botar para fora uma história que escondia há muitos anos. Dizia apenas que o marido fora embora para o Amazonas, em busca de fortuna, onde teria morrido, já que nunca mais mandara notícias. Nascera ela em Angical. Quando tinha 15 anos, o advogado Pedro Tavares de Mendonça, vindo não se sabe ao certo de onde, apareceu na cidade e botou banca de advocacia. Era dez anos mais velho que ela.

Quando fez 16 anos foi a uma festa e dançou com ele no clube da cidade. Era considerado um bom partido, apesar de as informações sobre as suas origens familiares serem vagas. Alguns rapazes, talvez enciumados, murmuravam que talvez ele tivesse feito “mal” a alguma moça, irmã e filha de valentões, e tivesse fugido. Também alguns pais, ciosos da honra de suas filhas, disso suspeitavam, todavia sem nenhuma informação concreta.

Rosa, no auge de sua juventude, era considerada a moça mais bela de sua cidade. Séria, prendada, diligente, ainda sabia ler e escrever, mesmo numa época em que a instrução pública era muito incipiente e elitista. O doutor Pedro sabia que para tê-la como mulher teria que se casar. Portanto, não perdeu tempo. Logo a pediu em casamento. Um ano após a cerimônia, alegando que seu escritório de advocacia não prosperara, e já com o primeiro filho nascido, resolveu se mudar para Évora, uma cidade maior, onde com certeza teria mais clientes.

Depois ela passou a desconfiar de que, além dos motivos profissionais, ele desejava uma cidade maior para mais bem dissimular e esconder a sua vocação boêmia, a sua incurável índole de dom Juan. A bem da família e da paz conjugal, procurou não saber de informações e nem de boatos, e tampouco buscou averiguar as suas desconfianças e indícios de infidelidade do marido. O desfecho do seu caráter fora aquela carta e a sua fuga com a amante.

Quando o meu amigo Anselmo terminou o seu relato familiar, aparentemente sem muita emoção, talvez porque tivesse aceitado isso como um fato irrevogável, contra o qual não adiantava se rebelar, imaginei como seria o muro no qual, em esconso furo, ele encontrara a velha e esquecida carta. Não pude deixar de trazer à memória estes versos de Alberto de Oliveira, que li e reli em minha surrada antologia da Fename: ‘É um velho paredão, todo gretado, / Roto e negro, a que o tempo uma oferenda / Deixou num cacto em flor ensanguentado’.


Conquanto desnecessária, faço a ressalva: em lugar de cacto, cujos espinhos também pungem, leia-se carta.”   

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