Dourado e Augusto na arte de Gervásio Castro |
Marechal visto por Gervásio Castro |
Capa da autoria de Gervásio Castro |
ANEXO
Outras Histórias de Évora
Elmar Carvalho
Ao completar
62 anos de idade, Marcos Azevedo publicou o livro Outras Histórias de Évora.
Eram textos curtos, densos, que a crítica e os doutos não souberam classificar
ao certo se seriam crônicas memorialísticas, contos ou apenas simples “causos”
anedóticos. Segue, abaixo, uma pequena amostra desses artefatos literários.
Marechal
Vi-o muitas vezes a percorrer as
ruas e praças de Évora. Metido em velhas fardas que lhe davam, algumas vezes
esfarrapadas e amarrotadas, não andava, marchava. Com um velho quepe na cabeça,
parecia participar de um desfile na caserna. Certa feita, em meados de 1980,
entrou em minha repartição. Os colegas mais brincalhões foram logo tirando
lorotas com ele, chamando-o de soldado, que para ele tinha uma conotação
pejorativa e de menoscabo. Vendo que eu não sorria, veio até onde eu estava e
disse baixinho: “Eles não sabem quem eu sou... Sou alta autoridade do
planalto”. Pedi-lhe, então, que os perdoasse, tendo ele assentido. Perdi-o de
vista; achei que tivesse ido para outra cidade. Muito anos depois soube que
passara a morar no abrigo para idosos. Fui visitá-lo. Recebi a informação de que
fugira, dois dias antes. Como certos animais que voltam para morrer no lugar em
que nasceram, o velho Marechal fora morrer em seu pago, no meio dos seus.
Roberto Carlos
Seu nome era Raimundo, mas desde que
enlouquecera, dizem que por causa de uma paixão não correspondida, adotara o
“nome artístico” de Roberto Carlos. Um dia, em minha adolescência, vi-o nas
calçadas altas da Zona Planetária, bem na esquina de Júpiter, o principal
“planeta”. Fazia mímicas para ninguém ou talvez para o vento ou para espíritos
que só ele via. Simulava segurar um microfone; acenava para a turma do
gargarejo e para “ouvintes” do fundo da inexistente plateia. Fazia meneios,
trejeitos e requebros dignos de um pop star.
Julguei fosse mais feliz do que eu, imerso na
ilusão de sua loucura. Muitos anos depois perguntei ao acadêmico e psiquiatra
Humberto Guimarães se o Raimundo, o nosso popular Roberto Carlos, não seria
mais feliz do que qualquer um de nós, porquanto ele viveria na melhor realidade
que imaginara para si. Humberto disse-me que não, pois quando um louco melhora
de sua doença e volta a piorar, e sente que vai perder a consciência de si
mesmo, sofre muito. Em minhas palavras e interpretação: é como se ele sentisse
o aniquilamento de seu mais profundo eu; é como se fosse a morte da consciência
de seu verdadeiro eu.
Tobago
A primeira vez que o vi, ele se encontrava no
Bar Carnaúba. Fazia gestos e esgares. Acenava e fazia reverências, como se
estivesse cumprimentando alguma pessoa no recinto. Não o conhecia e nem nunca
ouvira falar dele. De repente, olhou em minha direção, e acenou. Respondi-lhe,
mas notei que ele não me via. Com efeito, seus olhos vagos fitavam o vazio,
talvez o infinito de algum ponto imaginário. Informei-me a seu respeito, e
soube que, de segunda a sexta-feira, era um funcionário exemplar do Banco do
Brasil, rigorosamente pontual e que nunca faltava, sempre monossilábico,
introvertido, ensimesmado. Mas no final de semana se transformava naquele
excêntrico e sociável boêmio, a cumprimentar espíritos ou, talvez, os fantasmas
de si mesmo. Ou talvez fosse apenas um esquizofrênico dos finais de semana, a
evadir-se da rotina e do tédio.
Paru
Quando o ricaço Roland Jacob se deslocava para
a capital ou de lá retornava, estacionava seu Land Rover na frente de sua
filial da velha urbe. Paru, então, doido manso, ia limpar o carro. Quando
indagado a respeito, invariável e laconicamente respondia: "Estou lavando
meu carro." Tinha o sonho de ser o prefeito da cidade. A principal meta de
sua plataforma eleitoral consistia em levar o riacho Pintadas para Parnaíba e
em recompensa trazer o "mar da Parnaíba", como ele dizia com ênfase,
a abarcar o mundo com os braços bem abertos. Sem se despedir de ninguém,
desapareceu da cidade, como por encanto. Filho da estrada e do vento, nunca se
soube de onde vi/era, nunca se soube para onde foi. Ou talvez tenha ficado -
encantado.
Ester
Hoje bem sei quanto é triste a loucura. Mas em
minha infância, sem a devida consciência dessa enfermidade, achava alegre
quando a Ester estava “atacada”. Nos surtos mais severos de sua doença, ela
parecia a encarnação da própria primavera, pois se cobria de ramos e flores, e
saía a dançar, a cantar e a pular pelas ruas de Évora. Ela era a alegoria viva
da flora – das folhas, das flores e das ramadas. Um séquito de moleques a
seguia. Alguns, mais extrovertidos, dançavam com ela. Às vezes, no paroxismo de
sua loucura, tirava a roupa, e mostrava os seus “recantos mais secretos, mais
seletos”. Sem dúvida, muitos adolescentes se “vingavam”, na prática do vício
solitário. Hoje, tenho arrependimento de ter sentido alegria dos seus
“ataques”, que nunca soube se ocorriam apenas na época de plenilúnio. Hoje sei
o quanto a loucura é triste.
Vangogue
Lindalva fazia jus a seu nome: era linda e
alva. Além de alva e linda, era loura e simpática. Sempre que passava pelo seu
vizinho Ribamar, doente mental, chamava-o de “meu noivo”, a cujo cumprimento
ele correspondia com paixão. Sucede que um dia Lindalva noivou de verdade, com
seu primo Clemilton, médico e guapo rapaz, com quem veio a se casar. Riba,
quando soube da notícia, surtou, e num impulso trágico, como se fosse um novo e
diferente Van Gogh, cortou o próprio pênis, cerce, rente à base, como se
dissesse em seu gesto tresloucado que se “ele” não fora de Lindalva não seria
de nenhuma outra mulher. Medicado a tempo, a hemorragia foi estancada e ele
escapou. O rábula Possidônio Vogado, quando soube do acontecido, exclamou em
admirável arroubo retórico: “O Riba vai continuar tendo desejo, porém como um
direito fulminado pela prescrição ou como um revólver municiado, mas sem
gatilho. Como no dizer do poeta, será um fósforo que não dará luz”.
Mudinha
Certo dia em que eu estava no Isabelão, ouvi,
vindo de uma das espeluncas, um forte alarido, uns gritos que se assemelhavam a
um bodejar. Um tanto apreensivo sobre o que poderia estar acontecendo,
perguntei a uma das mulheres o que significavam aqueles sons desconexos e
guturais, que sequer pareciam humanos. Obtive a seguinte e concisa resposta: “É
a muda gozando. Quando ela goza parece que ela ou o mundo vai se acabar. Toda
vez é essa latomia!”
Dourado
Além de boêmio, era compositor, carnavalesco,
humorista e exímio churrasqueiro. Em cada período momesco, ele se caracterizava
como um personagem nacional, que estivesse em evidência. Certa feita, encarnou
PC Farias. Ficou tal e qual. Era múltiplo. Era plural. Dourado era ele próprio
e seus “heterodoxos heterônimos pessoanos”.
Romualdo
Era um triste “rapaz alegre”. Patético e
passional, era condecorado por inúmeras cicatrizes ao longo dos braços, feitas
por ele próprio. Eram as marcas visíveis e concretas das cicatrizes que lhe
feriam a alma, a cada amor desfeito ou não correspondido. Pelo que se via
estampado na pele, foram inumeráveis as suas decepções amorosas. Viveu
intensamente, creio, e cedo morreu.
Hermes e Afrodite
Em minha juventude, sempre que eu e meu amigo
Raimundo íamos para o povoado Cantagalo, passávamos pela casa de uma sua tia,
onde morava uma moça muita feia e triste, sua prima. Era mais do que feia; na
verdade, era uma verdadeira assombração. E o que era pior, tinha um buço, que
lhe realçava a fealdade. Seu corpo magro era linheiro como uma estaca, e não
tinha nada que pudesse atrair um homem, nem mesmo o vestígio dos seios, que
parecia não ter. Fui morar em outra cidade e a esqueci. Três décadas depois, ao
reencontrar o meu amigo, perguntei-lhe por sua prima feiosa. Ele foi curto e
grosso: “Minha prima se tornou primo, e com certeza já comeu mais mulheres do
que nós dois juntos”. Creio esse rapaz fosse hermafrodita. E depois, com
cirurgia ou não, se tornou Hermes, libertando-se da Afrodite em que seus pais
tentaram transformá-lo.
Mistério
Era a mais bela rapariga do lugar. Contudo,
era um enigma; os homens só ficavam com ela uma única vez. E nunca nenhum dos
fregueses revelava o que acontecera na alcova. Alguns anos depois, um desses
clientes frustrados contou o segredo dessa linda mulher. Apesar de sua enorme
beleza e de sua anatomia perfeita e completamente feminina, com curvas
acentuadas e belos seios, tinha um avantajado clitóris, que provocava a repulsa
da clientela. Terminou se casando, alguns anos depois, com um freguês que lhe
apreciou o “defeito”.
Pompoarismo
Quando não se conhecia essa palavra e muito
menos se sabia existir o que ela significava, apareceu na cidadezinha uma
rapariga que arrebanhou enorme clientela. É que ela tinha uma importante
novidade; tinha o que passaram a designar como sendo “bezerro”. E era um
bezerro famélico, tal a voracidade e vigor como ele sugava e espremia o membro
masculino. Comentava-se que era um verdadeiro torniquete. Quando Possidônio
Vogado explicou que a mulher podia ser treinada na arte do pompoarismo, um seu
assíduo e ardoroso cliente explicou que o dela era natural, e acontecia quando
ela ficava excitada, e ela era muito fogosa. Vogado fez então magistral
trocadilho: “Ela não se excitava; se exercitava”.
Engate
Romildo passou a frequentar a casa de Dolores,
sua namorada. Muito formal e sisudo, ganhou a confiança dos irmãos e pais da
moça. Certo dia em que ambos ficaram sozinhos na casa, o namoro, que se não era
casto era pelo menos cauto, avançou muito, e os dois terminaram indo às vias de
fato, com uma completa conjunção carnal. Quando eles estavam no bem bom, já no
segundo ou terceiro round, os pais da moça entraram, de súbito, na sala. Com o
susto, Dolores teve uma rigorosa contração vaginal, e ensarilhou o sexo do
namorado. Não houve maneira de apartá-los, de sorte que foram levados ao
hospital da cidade, numa maca, cobertos por um lençol, onde foi providenciado o
desengate. O fato apressou o casamento dos jovens, para que a moça não ficasse
mal falada.
A papa-anjo
Cremilda era uma “moça velha”, como se dizia
na cidade. Não casara e nem tinha amantes. Ganhava a vida ensinando deveres de
casa aos pequenos alunos da redondeza. Comentava-se que tinha os seus
favoritos, que ela aliciava aos poucos, para os seus propósitos libidinosos. Só se interessava por menores de doze anos,
com medo de engravidar. Fazia o garoto jurar pela salvação de sua alma e pela
vida de sua mãe que não revelaria o que se passasse entre eles. Na primeira
vez, masturbava-o, para ter certeza de que ainda não tinha líquido seminal. Só
após se certificar disso, permitia que o infante a penetrasse, e só até o ponto
em que não lhe tirasse o cabaço. Ainda tinha o sonho de se casar virgem, de
branco, e com véu e grinalda.
Morcego
Foi o maior e melhor goleiro de Évora. Era uma
espécie de Higuita antes de Higuita. Em suas “voadas” espetaculares e
espetaculosas, parecia planar ou até mesmo levitar. Daí dizer que somente ele,
helicóptero e beija-flor paravam no ar. Mais louco que Higuita, inventou o
chute jornada nas estrelas, ao chutar a bola vertical e vertiginosamente para
cima, com o bico da chuteira. Num desses chutes, a bola venceu a barreira da
gravidade, e ganhou o espaço sideral; hoje, orbita a Lua, como satélite de
nosso satélite. Às vezes, deixava sua meta e ia para o campo adversário jogar
de atacante, chegando ao ponto de driblar e fazer gols.
Nas ocasiões propícias, simulava deixar a bola
passar, quando então saltava para trás para executar a defesa, o que deixava os
torcedores assustados e com os nervos em frangalhos. Vez ou outra, com a bola
encaixada nas mãos ou ao peito, fazia verdadeiras acrobacias, inclusive dando
saltos mortais e outras cambalhotas. Seu curioso apelido se devia ao fato de
que, não raras vezes, ao saltar para fazer uma defesa, conseguia ficar
dependurado no travessão, à imagem e semelhança de um morcego.
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