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João enganou-se com joão?
Antônio de Pádua Ribeiro dos
Santos (*)
Abismo: garimpei/ qual rude
garimpeiro/se mais não pude-errei. É este o último terceto do soneto de
introdução ao poema “Nas veredas do Grande Sertão”, onde o poeta transformou em
mais uma poesia alguns dos mil achados das páginas preciosas de João Guimarães
Rosa.
Também garimpei nos escritos
deste escritor invulgar, não à cata do poético que sempre existe na sua
produção fenomenal - obra capaz de abolir, como nos informam alguns críticos,
as fronteiras entre a prosa e a poesia - mas no objetivo de apreciar descrições
sobre os pássaros que reputo como verdadeiros encantos da natureza. Criaturas
que muitas vezes são presas e viram objeto de tráfico quando deveriam sempre
ser livres e protegidas para preservação do Cerrado Brasileiro. Procurei, com o necessário cuidado, comparar
o que encontrei em tão magníficos escritos com o que conheci pessoalmente, nas
minhas costumeiras andanças pelo sertão.
Iniciando pela obra-prima, Grande
Sertão: Veredas – livro deveras singular e de difícil leitura - pude constatar,
dentre outras descrições de rara beleza, as seguintes anotações: “Aquele
pássaro mede-léguas erguia voo de pousado no meio da estrada, toda vez ia se
abaixar dez braças mais adiante, do jeito mesmo, conforme de comum esses fazem.
Bobice dele – não via que o perigo torna a vir, sempre?” “...e os jacús voam
para outras árvores, se empoleirando para o sono da noite.” “Eu tinha uma lua
recolhida. Quando o dia quebrava as barras, eu escutava outros pássaros.
Tiriri, graúna, a fariscadeira, juriti-do-peito-branco ou a
pomba-vermelha-do-mato-virgem. “O birro
e o jesus-meu-deus cantavam” “...bandos
tão compridos de araras, no ar, que pareciam um pano azul ou vermelho,
desenrolado, esfiapado nos lombos do vento quente.” “Mas mais o bem-te-vi.
Atrás e adiante de mim, por toda a parte, parecia que era um bem-te-vi só.”
“Era o manuelzinho-da-crôa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa, eles
altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhos,
peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentação.
Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim – galinholagem deles.”
–“ É preciso olhar para esses com um todo carinho...” “De todos, o pássaro mais
bonito gentil que existe é mesmo o manuelzinho-da-crôa.”
E assim segue, livro afora,
curiosas observações sobre estas belezas que cantam, encantam e voam através das paragens deste segundo maior bioma da América do Sul, lugar
onde a seriema, nos finais de tarde, emite sua cantoria saudosa que é a voz do Serrado - rica savana que deve
ser resguardada para que possa continuar vivo um dos encontros mais agradáveis
da natureza: do homem com a avifauna.
Prosseguindo com minha garimpagem
através deste universal e infinito sertão rosiano, e depois de vasculhar
Sagarana, deparei-me com delicada e interessante, porém um pouco descuidada
observação sobre o joão-de-barro - parte do excelente conto Conversa de Bois.
Cito-a, para com cautela, comentar: “Um par de joãos-de barro arruou no
caminho, pouco que aos pés de Tiaozinho. Galinhando “aos pulos” abrem bico e
papo, num esganiço de alarido, mesmo de propósito, com rompante. Arrepicam e
voam embora, soprando penas. Marido e mulher.”.
Descuidada porque o
joão-de-barro, Furnarius rufous, descrito no parágrafo acima, onde coloquei
entre aspas o verbo pular, não pula. Não pula nunca! Ao contrário de outros
passarinhos, como o pardal, por exemplo – somente para citar um bem conhecido
que só se locomove aos pulos – o joão-de-barro somente sabe caminhar, depressa
ou devagar, usando sempre interessantes passadas, como que imitando as pessoas
que lhe observam. Já constatei isto pessoalmente, de vista e por intermédio da
leitura: “Quando não está empoleirado desce ao solo, onde passa boa parte de
seu tempo ‘caminhando de modo bem típico’, alternando pequenas corridas com
intervalos nos quais anda mais devagar”.
(http://www.wikiaves.com/joao-de-barro). (aspeio a frase “caminhando de modo
bem típico”).
E não somente minha observação
visual e a descrição da Internet. Veja-se Helmut Sick, ao descrever a mesma
ave, em Ornitologia Brasileira, talvez a mais completa produção sobre as aves
em nosso país - Editora Nova Fronteira, p.566: “... abundante nas fazendas
sulinas, parques e até nas cidades procurando mesmo a vizinhança humana;
atravessa pátios e ruas andando e correndo.” Note-se que o reconhecido mestre
diz: “andando e correndo”. Não fala em pulos. Por tudo isso, pergunto: Será que
João Guimarães Rosa viu, realmente, um joão-de-barro pulando? Acredito que não
e, portanto, penso que também os gênios se enganam. Senão, engana-se eu ao
tentar fazer reparos a um dos maiores de nossas letras. E se finalmente ele um
dia viu o nosso herói dando um pulinho, por menor que fosse, me desculpo por
não saber garimpar direito e digo, como disse Alcenor Candeira Filho, membro
das academias Parnaibana e Piauiense de Letras, no poema antes citado,
publicado no Almanaque da Parnaíba, edição de nº 61, 1994: “Abismo:
garimpei/ qual rude garimpeiro. / se
mais não pude – errei.”
(*) O autor do vertente ensaio é
poeta e escritor. É o presidente da Academia Parnaibana de Letras – APAL.
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