quinta-feira, 11 de maio de 2017

João enganou-se com joão?

Fonte: Google

João enganou-se com joão?

Antônio de Pádua Ribeiro dos Santos (*)

Abismo: garimpei/ qual rude garimpeiro/se mais não pude-errei. É este o último terceto do soneto de introdução ao poema “Nas veredas do Grande Sertão”, onde o poeta transformou em mais uma poesia alguns dos mil achados das páginas preciosas de João Guimarães Rosa.

Também garimpei nos escritos deste escritor invulgar, não à cata do poético que sempre existe na sua produção fenomenal - obra capaz de abolir, como nos informam alguns críticos, as fronteiras entre a prosa e a poesia - mas no objetivo de apreciar descrições sobre os pássaros que reputo como verdadeiros encantos da natureza. Criaturas que muitas vezes são presas e viram objeto de tráfico quando deveriam sempre ser livres e protegidas para preservação do Cerrado Brasileiro.  Procurei, com o necessário cuidado, comparar o que encontrei em tão magníficos escritos com o que conheci pessoalmente, nas minhas costumeiras andanças pelo sertão.

Iniciando pela obra-prima, Grande Sertão: Veredas – livro deveras singular e de difícil leitura - pude constatar, dentre outras descrições de rara beleza, as seguintes anotações: “Aquele pássaro mede-léguas erguia voo de pousado no meio da estrada, toda vez ia se abaixar dez braças mais adiante, do jeito mesmo, conforme de comum esses fazem. Bobice dele – não via que o perigo torna a vir, sempre?” “...e os jacús voam para outras árvores, se empoleirando para o sono da noite.” “Eu tinha uma lua recolhida. Quando o dia quebrava as barras, eu escutava outros pássaros. Tiriri, graúna, a fariscadeira, juriti-do-peito-branco ou a pomba-vermelha-do-mato-virgem.  “O birro e o jesus-meu-deus cantavam”  “...bandos tão compridos de araras, no ar, que pareciam um pano azul ou vermelho, desenrolado, esfiapado nos lombos do vento quente.” “Mas mais o bem-te-vi. Atrás e adiante de mim, por toda a parte, parecia que era um bem-te-vi só.” “Era o manuelzinho-da-crôa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhos, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim – galinholagem deles.” –“ É preciso olhar para esses com um todo carinho...” “De todos, o pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o manuelzinho-da-crôa.”

E assim segue, livro afora, curiosas observações sobre estas belezas que cantam, encantam e voam  através das paragens deste  segundo maior bioma da América do Sul, lugar onde a seriema, nos finais de tarde, emite sua cantoria saudosa  que é a voz do Serrado - rica savana que deve ser resguardada para que possa continuar vivo um dos encontros mais agradáveis da natureza: do homem com a avifauna.

Prosseguindo com minha garimpagem através deste universal e infinito sertão rosiano, e depois de vasculhar Sagarana, deparei-me com delicada e interessante, porém um pouco descuidada observação sobre o joão-de-barro - parte do excelente conto Conversa de Bois. Cito-a, para com cautela, comentar: “Um par de joãos-de barro arruou no caminho, pouco que aos pés de Tiaozinho. Galinhando “aos pulos” abrem bico e papo, num esganiço de alarido, mesmo de propósito, com rompante. Arrepicam e voam embora, soprando penas. Marido e mulher.”.

Descuidada porque o joão-de-barro, Furnarius rufous, descrito no parágrafo acima, onde coloquei entre aspas o verbo pular, não pula. Não pula nunca! Ao contrário de outros passarinhos, como o pardal, por exemplo – somente para citar um bem conhecido que só se locomove aos pulos – o joão-de-barro somente sabe caminhar, depressa ou devagar, usando sempre interessantes passadas, como que imitando as pessoas que lhe observam. Já constatei isto pessoalmente, de vista e por intermédio da leitura: “Quando não está empoleirado desce ao solo, onde passa boa parte de seu tempo ‘caminhando de modo bem típico’, alternando pequenas corridas com intervalos nos quais anda mais devagar”. (http://www.wikiaves.com/joao-de-barro). (aspeio a frase “caminhando de modo bem típico”).

E não somente minha observação visual e a descrição da Internet. Veja-se Helmut Sick, ao descrever a mesma ave, em Ornitologia Brasileira, talvez a mais completa produção sobre as aves em nosso país - Editora Nova Fronteira, p.566: “... abundante nas fazendas sulinas, parques e até nas cidades procurando mesmo a vizinhança humana; atravessa pátios e ruas andando e correndo.” Note-se que o reconhecido mestre diz: “andando e correndo”. Não fala em pulos. Por tudo isso, pergunto: Será que João Guimarães Rosa viu, realmente, um joão-de-barro pulando? Acredito que não e, portanto, penso que também os gênios se enganam. Senão, engana-se eu ao tentar fazer reparos a um dos maiores de nossas letras. E se finalmente ele um dia viu o nosso herói dando um pulinho, por menor que fosse, me desculpo por não saber garimpar direito e digo, como disse Alcenor Candeira Filho, membro das academias Parnaibana e Piauiense de Letras, no poema antes citado, publicado no Almanaque da Parnaíba, edição de nº 61, 1994: “Abismo: garimpei/  qual rude garimpeiro. / se mais não pude – errei.”


(*) O autor do vertente ensaio é poeta e escritor. É o presidente da Academia Parnaibana de Letras – APAL.

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